O voyeur, Gay Talese
A primeira reação, quando se começa a ler esse livro, é de repulsa. Afinal, expõe a intimidade de centenas, talvez milhares, de pessoas, de modo clandestino. Expliquemos: Gerald Foos é um homem casado, com dois filhos, que comprou um motel de 21 quartos, perto de Denver, no Colorado, Estados Unidos, e inventou uma espécie de “plataforma de observação” no sótão, para espionar os seus hóspedes, principalmente em suas atividades sexuais. Fez isso diariamente por mais de duas décadas. Viu de tudo e tudo relatou numa espécie de diário, onde não somente acompanha a evolução dos costumes sexuais dos estadunidenses entre os anos 60 e 80, como também observa detalhes de usos e costumes. E sobre tudo a que assistiu e ouviu faz comentários não apenas sobre sexo, mas também sobre o caráter dos hóspedes, observando que os seres humanos são, em geral, mentirosos, falsários, enganadores, com poucas noções de higiene, dizem uma coisa em público e outra em particular, o que tornou o voyeur, segundo ele mesmo, um indivíduo antissocial. Esse extenso relato é enviado, aos poucos, ao jornalista Gay Talese que, confiado nessa única fonte, e depois de muitos anos de correspondência e até mesmo de visita ao Manor House Motel, onde chegou a acompanhar Foos em sua plataforma de observação, escreveu e publicou o livro “The Voyeur’s Motel”, em 1916. O livro causou uma grande polêmica, em virtude de vários fatores, dois deles fundamentais: o aspecto ético e a confiança em uma única fonte. Foos relata que presenciou um assassinato em seu motel e não teve coragem de denunciar o assassino, um traficante. Esse fato não foi comprovado por registros da polícia local, gerando críticas à inconsistência da narrativa, além do debate ético sobre não apenas o assassinato, mas também sobre o crime de espionagem da vida alheia sem permissão. Enfim, mesmo que a polêmica tenha se amainado, com os atuais sistemas de espionagem eletrônica, que praticamente vasculham a vida de qualquer cidadão ao redor do mundo, fica o registro de uma história que parece inverossímil, quase uma ficção, mas que, apesar de algumas inconsistências, é verdadeira e é narrada por um dos maiores mestres do chamado “novo jornalismo” nos Estados Unidos, com textos baseados em fontes detalhadas e narrados em forma literária. Fatos reais transformados em boa literatura. A escrita elegante do autor e mesmo muitas observações do voyeur acabam por amenizar a repulsa inicial e torna a leitura desse livro uma aventura bastante interessante a respeito da complexa natureza humana.
Nota do blog:
Leia a reportagem sobre o livro e a polêmica neste endereço:
- Trapiche de bagatelas:
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