sábado, 18 de fevereiro de 2023

O Castelo, Franz Kafka

O Castelo, Franz Kafka

Josef K., ou simplesmente K., um agrimensor, chega a uma aldeia ao pé de um castelo, convocado para ali prestar serviços. A ele são atribuídos dois auxiliares. No entanto, essa ordem, foi emanada dos burocratas do castelo, que dominam o povoado, há muitos anos e, agora, ninguém sabe por que foi de novo expedida e para que servem os serviços de agrimensura de K. Visto como um estrangeiro, um indesejado, pelos donos das duas únicas pousadas e pelos habitantes da vila, K. tem sua vida ali transformada numa espécie de pesadelo, de estar onde não o querem, e de não saber o que fazer, já que os arrogantes burocratas do castelo não se decidem a determinar seu destino, afogados em montanhas de processos absolutamente inúteis sobre a vida de cada um dos moradores do povoado, sobre os quais têm pleno domínio. Apaixona-se por Frieda, amante de um dos burocratas do castelo, e com ela pretende casar-se, mas logo é abandonado e ela se une a um dos seus ajudantes, cujos serviços ele já dispensara. Mesmo o trabalho que lhe arranjam, de faxineiro da escola, não dura muito, principalmente pela oposição do professor e diretor do estabelecimento. Sua amizade se restringe a uma das moças de uma família execrada no passado pela população e pelos habitantes do castelo, sem que eles saibam exatamente o motivo, como aliás, acontece com todas as pessoas que têm processos que os burocratas acumulam sem suas repartições inúteis. Enfim, K. vive numa espécie de limbo, de não-existência, até o desfecho final do livro, que se encerra com uma frase não terminada. A longa trajetória de K. é toda construída através da linguagem, da força da linguagem – artificial e às vezes complexa – de Kafka. Todo um mundo de mistério, relatado de forma realista, descortina-se ante nossos olhos, formando um painel impressionista que possibilita inúmeras interpretações a que dezenas e dezenas de estudiosos têm-se dedicado, desde a publicação do livro, na primeira metade do século XX, lembrando que Kafka morreu em 1924, com 40 e poucos anos, quando o ovo da serpente nazista ainda estava em gestação. Digo isso, porque uma das possíveis interpretações da obra se relaciona ao pesadelo do regime hitlerista, mas, na minha opinião, não há qualquer vislumbre de tal profecia por parte de Kafka. O mundo que ele nos deixa é, sim, uma visão distópica de opressão e de falta de sentido da própria vida, uma visão pessimista da sociedade, recém-saída da primeira grande guerra, sem ainda um rumo definido para suas angústias. De qualquer forma, ler Kafka hoje deveria ser quase uma obrigação para aqueles que pensam sobre o ser humano, suas angústias e seus desatinos não resolvidos e, possivelmente, muito longe de que isso venha a acontecer.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Paisagens da Metrópole da Morte – Reflexões sobre a memória e a imaginação, Otto Dov Kulka

 Paisagens da Metrópole da Morte – Reflexões sobre a memória e a imaginação, Otto Dov Kulka



Inicio esta resenha com uma reflexão, ou melhor, com uma pergunta (talvez meramente retórica): como é possível que, diante de tantas provas, ainda haja no mundo pessoas que neguem o holocausto judeu sob o nazismo hitlerista, ou pior: que ainda haja pessoas no mundo que advoguem a ideologia nazista? Deixo a resposta à imaginação do leitor. Apenas suspiro e sofro ao pensar na maldade humana... Vamos ao livro. O autor, Otto Dov Kulka, é um respeitado historiador israelense, versado em história moderna, o que inclui o nazismo e o holocausto de seu povo. Aos onze anos de idade, em 1943, juntamente com sua família e centenas de pessoas oriundas da então Tchecoslováquia, foi enviado para Auschwitz, de onde sobreviveu por mero acaso. Adulto, passou décadas em silêncio sobre esse fato sombrio de sua infância. Então, durante 10 anos, de 1991 a 2001, gravou suas memórias, com fragmentos de sua passagem pelo terrível campo de concentração, evocando paisagens, pequenos acontecimentos, pessoas, e refletindo sobre aqueles momentos em que esteve várias vezes às portas dos fornos crematórios, mas, inexplicavelmente – pelo menos, para o menino – era poupado. Por acaso, foi enviado, juntamente com seus pais, para o campo anexo a Auschwitz, o “campo das famílias”, como era chamado, em Birkenau, onde os prisioneiros não eram separados entre os mais aptos – que eram enviados a trabalhos forçados na Alemanha – e os “outros”, que eram enviados aos fornos, que funcionavam a pouca distância, dia e noite. E ali, a poucas dezenas de metros dessas máquinas da morte, o menino de onze anos, ironicamente, aprendeu a cantar a “Ode à Alegria”, de Beethoven; viu sua mãe se despedir, para ser enviada a lugar longínquo e desconhecido, numa das cenas mais tocantes e fortes dessas memórias e registrou as paisagens magníficas – que ficaram em sua retina – dos campos e do azul do céu de Auschwitz. A partir desses fragmentos de memórias, o autor nos leva a reflexões sobre um dos momentos mais terríveis da história, motivo pelo qual iniciei esta resenha com o meu espanto diante do fato de que ainda haja pelo mundo grupos de neonazistas e neofacistas, advogando teorias racistas e supremacistas. Sem dúvida, uma pequena obra prima – já que é um livro de apenas pouco mais de 160 páginas – para se ler, reler e pensar. Pensar muito.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

A fabulosa história do hospital – da Idade Média aos dias de hoje, Jean-Noel Fabiani

 A fabulosa história do hospital – da Idade Média aos dias de hoje, Jean-Noel Fabiani


Não é preciso ser médico ou atuar na área médica, para gostar de ler sobre a história da medicina. E essa história tem história... Já que “de médico e louco todos temos um pouco”, não foram poucos os loucos que se arvoraram a curar as doenças da humanidade. E também foram muitos os médicos e cientistas que, ao longo do tempo, imbuídos da melhor boa vontade, cometeram, no entanto, barbaridades com seus doentes, por ignorância, preconceitos, religiosidade. Mesmo com a perda de inúmeras vidas, não é possível levar a sério, sem um tanto de humor, ironia e até sarcasmo, certos tratamentos que se prescreveram desde os gregos até nossos dias. Nesse livro, uma série de textos que nos contam a história do hospital, ou seja, de como surgiram e como se desenvolveram esses estabelecimentos que fazem parte de nosso dia a dia, cheios de aparelhos modernos que perscrutam os corpos, realizam exames fabulosos, curam doenças que há pouco tempo seriam como sentenças de morte. Surgidos como depósitos de miseráveis, de indesejáveis e de incuráveis, na Idade Média, sob o comando de organizações religiosas, principalmente freiras, os hospitais serviram, ao longo da história, aos mais diversos interesses políticos, sociais ou religiosos, e acompanharam o desenvolvimento da medicina, que foi lento, muito lento. Conceitos simples, como assepsia, ou técnicas hoje corriqueiras, como a anestesia, são descobertas recentíssimas. Pode-se dizer que a medicina moderna – essa de cujas maravilhas nos beneficiamos – tem menos de cem anos e a maioria das técnicas e a maioria do conhecimento médico atual têm sido desenvolvidos nos últimos cinquenta anos. Diz-nos o autor, a certa altura, que o conhecimento médico dobra a cada sete anos. E preocupa-se, aliás durante todo o livro, com o preparo e atualização do corpo médico, historiando também o surgimento e o desenvolvimento da ensino da medicina, desde os famosos barbeiros-cirurgiões até as modernas escolas atreladas a hospitais de grandes recursos tecnológicos e de acolhimento dos pacientes. Concluo essa breve resenha, chamando a atenção do leitor para o fato de que o autor é professor-doutor na faculdade René Descartes, onde ensina história da medicina. Dirige o departamento de cirurgia cardiovascular e de transplantes de órgãos do Hospital Europeu Georges-Pompidou, em Paris. Por isso, toda a história que ele, com bom humor e com leveza, apesar de alguns temas pesados, nos conta tem o ponto de vista francês. Mas, o que aconteceu na França deve ter ocorrido de forma semelhante em toda a Europa e, depois, também nos demais países do ocidente. E sacia muito de nossa curiosidade sobre a história da medicina e de como surgiram organizações como Médicos sem Fronteira, ou de medicamentos como o viagra.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

O sorriso do lagarto, João Ubaldo Ribeiro



O sorriso do lagarto, João Ubaldo Ribeiro


Um romance sobre a maldade humana. Talvez devesse dizer sobre o Mal, como os metafísicos e quejandos gostam de falar. Mas, como não acredito em categorias abstratas, como o Mal x Bem, prefiro dizer que o livro de João Ubaldo Ribeiro é um tratado da maldade humana, ou, pelo menos, uma tentativa de nos fazer ver que o ser humano tem capacidades inauditas de fazer o mal não só a si mesmo, como a todos os outros seres viventes. Assim, o autor nos relata casos de caça a pardais com requintes de crueldade, na parte inicial do livro, preparando-nos para aquilo que seria a crueldade maior: o uso de seres humanos em estranhas experiências genéticas. Toda a história se passa, em contraste com essas crueldades, na paradisíaca ilha de Itaparica, na Bahia. A história é conduzida por um biólogo que abandonou a ciência para se tornar peixeiro, João Pedrosa, que além das desconfianças sobre as crianças deformadas, cujas fotos borradas são destruídas pelo médico responsável pelas tais pesquisas genéticas, consegue superar sua proverbial timidez para manter um tórrido romance com a mulher do capitalista do povoado, o que levar a consequências trágicas, claro. Há personagens interessantes, como um misterioso curandeiro, que foi o primeiro a descobrir as mutações e a tentar protegê-las e denunciá-las. E também o padre que tem crises de consciência em relação ao romance de seu amigo peixeiro com uma mulher casada, sem, no entanto, se envolver como devia no caso das crianças mutantes, por puro preconceito contra o denunciante, o tal curandeiro. Mas tudo fica sem solução, ao final, pois os prováveis responsáveis pelas experiências inescrupulosas conseguem abafar o caso e destruir todas as provas. Paro por aqui, nesta breve resenha, para não precisar aprofundar na análise do romance, já que não é esse o intuito desse blog. Acrescento apenas que esse livro serviu de inspiração para o roteiro de uma minissérie bastante prestigiosa da Globo, em 1991, escrita por Walther Negrão e Geraldo Carneiro, com direção de Roberto Talma.