terça-feira, 27 de junho de 2023

A fórmula preferida do professor, Yoko Ogawa

A fórmula preferida do professor, Yoko Ogawa



Fórmulas matemáticas e beisebol: assuntos recorrentes na narrativa de Yoko Ogawa. Mas, não é necessário entender nem de matemática nem das regras do jogo, para apreciar essa bela história centrada em torno de apenas três personagens, no Japão de 1992. Uma empregada doméstica que trabalha para uma agência de empregos é designada para a cuidar de um Professor, em cuja ficha de cliente ela percebe que passaram inúmeras profissionais, o que indica uma pessoa de trato difícil. Ao se apresentar para o trabalho, é recebida por uma senhora idosa, que usa uma bengala, que lhe dita as regras: não levar nenhum problema para ela, cuidar do Professor e sua edícula, no fundo do quintal, cozinhando, lavando e limpando. O Professor tem mais de 60 anos. Sofreu em 1975 um grave acidente que praticamente “travou” seu cérebro nesse ano e não tem noção de nada do que aconteceu depois. Além disso, sua memória atual dura exatos 80 minutos. Depois, esquece. Vive isolado, resolvendo intricados problemas de matemática, propostos por revistas especializadas. Para tentar administrar sua vida, escreve lembretes que prega em seu paletó. A nova emprega tenta se adaptar às dificuldades da vida do Professor, mas a comunicação entre eles, embora amistosa, é difícil e ela tenta de várias formas entrar em seu estranho mundo de fórmulas matemáticas e cálculos complicados. A situação entre eles melhora consideravelmente quando ele conhece o seu filho de dez anos, por quem o velho matemático desenvolve um imenso carinho. O menino tem a cabeça achatada e, por isso, o Professor lhe dá o carinhoso apelido de Raiz, em referência ao símbolo da raiz quadrada. Entre fórmulas matemáticas e jogos de beisebol, as relações entre as três pessoas tão díspares se estreitam e se estabelece entre eles um processo de comunicação e uma história de amizade, consideração e tolerância, numa narrativa que nada tem de sentimentalismo, mas que nos encanta por mostrar que a convivência humana entre diferentes é possível, quando há respeito e um sentido de humanidade que ultrapasse os preconceitos de idade, de classe social e de nível intelectual. Sem dúvida, um pequeno grande livro, para ler e recomendar aos amigos, aos jovens, a todos que apreciem uma boa história.

sábado, 24 de junho de 2023

O estranho caso do cachorro morto, Mark Haddon

O estranho caso do cachorro morto, Mark Haddon



2... 3... 5... 7... 11... assim são numerados os capítulos pelo narrador do livro, um garoto de 16 anos, chamado Christopher, que mora numa pequena cidade perto de Londres. São números primos, porque ele adora números primos e porque ele é um gênio da matemática e porque ele é autista. Tem estranhas manias, como não admitir ser tocado por ninguém, não conversar com estranhos, comer uma comida “diferente” que, no prato, não pode uma ser encostada na outra, ou ainda ter como animal de estimação um ratinho. Mora com o Pai, assim, em letras maiúsculas, que lhe disse ter a Mãe morrido há algum tempo, no hospital, de ataque cardíaco. Frequenta uma escola para crianças excepcionais próxima à sua casa e, um dia, encontra no jardim de uma vizinha, amiga de seu pai, o cachorro assassinado por um forcado. Resolve investigar o crime. E, para isso, anota numa espécie de livro todas as pistas que vai encontrando ou desenvolvendo, como se fosse Sherlock Holmes, de quem é fã, embora não goste do autor, Conan Doyle. Essa “investigação” vai levá-lo a descobrir muitas coisas sobre sua própria vida e sobre si mesmo. Todos os capítulos do livro – cujo narrador, repito, é o jovem Christopher – são curtos, exceto o último, bem mais longo, quando há o desfecho da história. Temos, portanto, o relato sempre do ponto de vista do autista, com todo o seu raciocínio diferente, sua visão de mundo afetada por sua condição, mas de uma forma que o leitor vai aos poucos entrando nesse mundo estranho, sem qualquer dificuldade de aceitar que haja pessoas diferentes no mundo, por mais que suas atitudes e pensamentos extrapolem a lógica dos chamados seres “normais”. As descrições que ele faz das paisagens que seu cérebro cria ou analisa são quase sempre seguidas de desenhos e mapas que nos ajudam a entender o que ele está pensando ou imaginando. Também vamos desvendando seu raciocínio matemático até a prova avançada a que ele se submete no final, colocando como apêndice de seu livro – afinal o livro é escrito por ele, é dele – um exemplo de problema que ele resolve para ganhar grau máximo e se animar em se preparar para outros desafios, como fazer a prova avançada de física, outra paixão, e entrar numa faculdade. Realmente, uma obra excepcional que, voltada para o público adulto, obteve também sucesso com os jovens e, por isso, pode ser uma boa indicação para professores, principalmente do nosso ensino médio.


quarta-feira, 21 de junho de 2023

A morte de Virgílio, Hernann Broch

A morte de Virgílio, Hernann Broch



Plagio Fernando Pessoa: leio até me arderem os olhos o livro de Herman Bloch, “A morte de Virgílio”. Porque não há outra forma de mergulhar no mundo onírico criado pelo escritor, através de um discurso reiterativo – ad infinitum -, numa linguagem insistentemente metafórica, em que a poesia e o inefável poético são levados ao extremo, o que eleva a obra à literatura em sua forma mais profunda e lírica, embora em prosa, pura prosa poética. Vamos ao prosaico: o poeta Virgílio chega a Brundísio, a bordo de um dos navios do imperador romano Augusto, instado por ele a voltar à Itália. Está doente e pressente o fim. Desembarca e, conduzido numa liteira pelas ruas enlouquecidas pela presença do imperador, empodrecidas de pobreza, no meio do populacho em festa, sua comitiva é guiada pelas ladeiras e pelos becos sujos por um garoto, Lisânias, carregando a comitiva um baú com os originais da Eneida, até o palácio, onde, acomodado, mergulha pela noite afora num longo, longuíssimo pesadelo, em que nos revela seus mais íntimos e complexos sentimentos, principalmente a ideia de que a Eneida não está concluída, mas precisa ser destruída. Ao amanhecer, recebe a visita de dois amigos que tentam dissuadi-lo da ideia de destruir sua obra e, mais tarde, a visita do próprio Augusto, também com o propósito de levá-lo a desistir desse desatino e entregar-lhe a obra. Virgílio não destrói a Eneida, claro. Como é dissuadido disso? A discussão com o imperador é longa, muito longa, cheia de revelações, de filosofia, de lembranças, de teorias e de impressões sobre o próprio ato de escrever e, ao final, você saberá como Augusto consegue convencê-lo a entregar-lhe os originais, mas é preciso ler o livro (não é uma revelação que eu faça aqui). E vale todo o esforço mergulhar nas páginas de discussão entre o poeta e o imperador, até o delírio final de Virgílio, quando novamente o autor nos leva para um mundo absurdo e onírico de uma construção ao mesmo tempo desafiadora e reveladora, dificilmente alcançada por outros autores, mesmo que coloquemos Broch entre os grandes prosadores de todos os tempos, em companhia de Cervantes, de Hugo, de Flaubert, de Zola, de Proust, de Mann, de Machado de Assis, de Rosa... a lista não é extensa, mas pode o leitor acrescentar a ela o seu autor preferido. Sem dúvida, é preciso ler até arder os olhos, para obter a recompensa final, de apreender e sonhar, de sonhar e desbravar uma obra tão complexa, desafiadora e, ao mesmo tempo, tão fascinante.

domingo, 11 de junho de 2023

As coisas que perdemos no fogo, Mariana Enriquez

As coisas que perdemos no fogo, Mariana Enriquez


O uso do terror com pitadas de humor negro e de elementos surreais ou, às vezes, do realismo fantástico fazem parte dos doze contos dessa escritora contemporânea argentina. Não é possível ficar indiferente à sua prosa incisiva e irônica, com personagens e lugares comuns que ocultam o insólito, o absurdo da existência, como um garoto assassino, a menina que arranca pedaços de si mesma em sala de aula, adolescentes que buscam emoções numa casa assombrada, mulheres que ateiam fogo a si mesmas, enfim, tudo quanto parece fazer parte de mentes conturbadas por mitos e superstições numa Argentina ainda assustada e devastada por anos e anos de desgovernos, por assassinatos promovidos por ditadores e presidentes despóticos. A crueldade humana de seres aparentemente comuns é a metáfora desse país, talvez da própria América Latina, que ainda não encontrou caminhos sadios de desenvolvimento e de superação de seu passado sombrio de colônias dominadas pelo europeu destruidor e demolidor de sua cultura milenar, pelo genocídio de seus povos originários, pelo escravismo e atualmente por preconceitos e racismos absurdos. Talvez a autora não quisesse escrever sobre tudo isso, mas seus contos não deixam de nos remeter a essa triste história de nosso continente, em metáforas perturbadoras e emocionantes. A moderna literatura latina, tão pouco valorizada no momento, após o boom de grandes autores como García Marques, Jorge Amado, Jorge Luís Borges etc., etc., etc. saúda o surgimento de uma escritora que tem o poder de trazer novos olhares para uma ficção de precisa urgentemente conquistar de novo um lugar na mente dos leitores, pela sua tradição e pela sua qualidade. Um livro de contos para se ler com arrepio, mas também com o prazer de uma prosa que encanta e emociona.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Crônica da casa assassinada, Lúcio Cardoso

 Crônica da casa assassinada, Lúcio Cardoso



Um romance todo construído em overlap, isto é, cada capítulo nos remete a uma parte do enredo, como se seguíssemos, numa corrida de automóveis, um carro por vez, sabendo que há vários veículos em posições diferentes dessa corrida. E mais: cada overlap, ou seja, os capítulos não só se alternam, mas têm vários narradores, cada um com uma perspectiva própria da história, das personagens, dos possíveis acontecimentos. Um verdadeiro mosaico, que desafia a imaginação do leitor, com revelações que nos envolvem na vida de uma família do interior de Minas Gerais, um clã antigo e conservador que está num momento de total decadência de seus bens, de sua chácara/fazenda, com os valores morais carcomidos não só pelo tempo, mas também pela própria inércia e inatividade de seus membros. São três irmãos: o mais velho, Demétrio, está casado com Ana, uma jovem que foi preparada para ser a esposa exemplar desse herdeiro dos Meneses; o irmão do meio, Valdo, conhece no Rio de Janeiro sua futura mulher, Nina, que irá abalar toda a relação familiar e desencadear a ruína da casa senhorial; finalmente, Timóteo, o irmão mais novo, que vive trancado num quarto, vestido com as roupas antigas de sua mãe, morta há muito tempo, uma mulher que deixou na vida de todos uma marca indelével de liberdade que eles, os irmãos, não sabem como administrar, assim como não conseguem conservar seus bens e levar adiante a riqueza da família. São muitos os segredos, as desavenças, as intrigas, os amores interditos e os sentimentos de ódio ou de frustração que o autor, através dos depoimentos e cartas de vários personagens, envolvidos ou não na saga da família, vão desvelando aos nossos olhos de leitores cada vez mais mergulhados numa trama construída com a maestria dos grandes escritores. Não é, com certeza, um romance fácil de se ler, com suas mais de seiscentas páginas, mas, à medida que viramos cada página, torna-se impossível não se envolver cada vez mais no estilo rebuscado e poético do autor, no mergulho de amores proibidos, desvelados logo no primeiro capítulo, narrado pelo filho de Nina, André, talvez a personagem mais emblemática do livro, aquela que nos leva a pensar mais seriamente sobre a capacidade do ser humano de levar suas emoções ao clímax não sei se da maldade ou da incapacidade de não reconhecer seus erros. Uma obra prima, sem dúvida nenhuma, de nossa literatura.