segunda-feira, 27 de março de 2023

Cidade nas nuvens, Anthony Doerr



Cidade nas nuvens, Anthony Doerr


Elaborado como um mosaico ou como um quebra-cabeças, “Cidade nas nuvens” traz em cada capítulo uma história com personagens e tempos completamente diferentes que, aos poucos, começam a fazer sentido e, quando isso acontece, descobrimos que estamos diante de uma história fantástica de amor ao livro. Assim, acompanhamos as seguintes histórias: uma adolescente, Konstance, viajando numa nave espacial no futuro mais ou menos distante, comandada por um inteligência artificial, em busca de um planeta que só será alcançado depois de mais de 500 anos de viagem, às voltas com o conhecimento reunido uma biblioteca digital fantástica; Zeno, um ex-combatente da guerra do Vietnã, tradutor de um livro antigo, cujas páginas deterioradas trazem apenas trechos e palavras soltas, numa cidadezinha do interior, Lakeport, estado de Idaho, ao mesmo tempo que dirige um pequeno grupo de alunos de uma escola pública nos ensaios de uma peça que tem como tema a história fantástica da personagem desse livro, um jovem grego chamado Ethos; neste mesmo tempo, 2020, e nesta mesma cidade, encontramos Seymour, um adolescente autista revoltado com a destruição de seu mundo, uma floresta ao lado de sua casa, por uma imobiliária; já em Constantinopla, entre os anos de 1439 e 1452, acompanhamos a vida de Anna, a garota que vive num ateliê de costura que conhece um copista que a ensina a ler e, então, ela e um amigo descobrem num castelo antigo tesouros da literatura antiga, entre eles um livro que ela levará e conservará para sempre, em sua vida, as aventuras fantásticas de um jovem grego chamado Ethos; na mesma época, na Europa, numa aldeia perdida nas montanhas, temos a história de Omeir, um menino que nasce com lábio leporino e cuja desconfiança dos habitantes de sua aldeia em relação a seu defeito físico o leva a isolar-se e, depois, a participar da marcha dos exércitos do sultão que vão sitiar Constantinopla. Todas as vidas são contadas de forma intercalada, alinhavadas pela história desse livro antigo, chamado “Cuconuvelândia” de Antônio Diógenes, cujos trechos permitem-nos saber da vida de Ethos, um jovem e ambicioso grego que deseja um sortilégio que o transforme num pássaro que o leve a conhecer a cidade nas nuvens, mas o feitiço dá errado e ele se transforma num burro e vive uma série de aventuras absurdas. É essa história fantástica, afinal, que vai unir todas as vidas díspares e todas as trajetórias desses personagens, ou seja, o livro, o fólio sobrevivente por séculos, por artes e artimanhas impossíveis e improváveis, torna-se, na verdade, o grande protagonista desse livro imenso, de 720 páginas, que nos prende a atenção desde o início e cujo final lamentamos que aconteça, talvez numa lembrança de histórias infinitas como as de mil e uma noites. E, se me permitam meus raros leitores um desabafo pessoal, termino esse comentário confessando minha paixão por livros e histórias que nos contam histórias de livros. Esse livro, o autor o dedica aos bibliotecários, mas, na verdade, é uma ode a todos os leitores e bibliófilos do mundo.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Torto arado, Itamar Vieira Júnior

Torto arado, Itamar Vieira Júnior


Uma narrativa lenta, deliciosamente lenta. Destacam-se várias vozes narrativas: na primeira parte, a voz é de Bibiana; na segunda, Belonísia; e na terceira, são os “encantados”, os espíritos do jarê, a religião de matriz africana típica da Chapada Diamantina, onde se passa a história. Bibiana e Belonísia são irmãs e têm pouca diferença de idade entre si. Mais ou menos aos sete anos, desafiam proibições e abrem o baú da avó Donana, onde encontram um afiadíssimo punhal de cabo de madrepérola que lhes provocará um acidente que mudará suas vidas: uma delas se fere na boca e a outra perde a língua, ficando muda para sempre. Na longa narrativa de Bibiana, não se sabe qual das duas é a muda e esse fato só se esclarece na segunda parte, quando toma a voz de narradora a irmã Belonísia. Contam ambas suas vidas na comunidade negra nas terras de Águas Negras, a pobreza, a exploração da população pelo dono ou pelos donos da fazenda, as relações familiares, as práticas de encantamento do jarê do pai, Zeca Chapéu Grande, uma espécie de líder comunitário que, ao mesmo tempo que protege os habitantes dessa espécie de quilombo, mantém todos eles na situação de um certo conformismo com sua situação de semi-escravizados. Embora não haja um tempo definido, a narrativa se desenrola ao longo da primeira metade do século XX. Essa situação de conformismo será quebrada com a vinda de família de parentes de Zeca, da qual faz parte um jovem que irá se casar com uma das irmãs. O casal buscará uma nova vida longe dali, ao mesmo tempo que encontrarão novos conhecimentos e a aproximação com ideias de igualdade e liberdade. A outra irmã permanecerá na comunidade, passando por todas as dificuldades de sua situação de mulher e de trabalhadora braçal. Quando o casal faz o caminho de volta para a comunidade e as duas irmãs se reencontram, encetarão uma luta contra a situação de injustiça e servidão que há décadas é imposta à família e aos demais negros da região. Costumo plagiar Machado de Assis: “ao cabo, só existem histórias antigas caiadas de novo”. Se o tema do livro de Itamar Vieira Júnior não traz novidades, pode-se afirmar com absoluta certeza de que é preciso contar e recontar sempre a histórias de injustiça, não importa onde sejam cometidas, pois o mundo precisa dessas narrativas para que, quem sabe um dia, possam todas essas vozes unidas – cada uma lançando seu protesto – formar a grande correnteza da construção de uma sociedade melhor. Um belo livro, sem dúvida.

domingo, 12 de março de 2023

O lugar, Annie Ernaux

O lugar, Annie Ernaux


Apreendi o conceito de micro-história, ao ler “O queijo e os vermes”, de Carlo Ginzburg; depois, ampliei meus conhecimentos (parcos) de História, ao ler alguma coisa sobre os historiadores e algumas obras da Escola dos Annales, principalmente a teoria da “história das mentalidades”. Hoje sei que toda biografia importa e não apenas as vidas de “autoridades” ou de “heróis”. Reflete, cada vida, um momento histórico, com suas características, sua mentalidade. E mais: eu acho, ou melhor, tenho certeza de que, por mais que nos consideremos “modernos”, nossa época ainda guarda resquícios muito fortes da Idade Média, reverberados em pequenos gestos ou expressões e até mesmo em grandes solenidades e rituais (deixo ao leitor a pulga atrás da orelha, para identifica-los: é relativamente fácil). O pequeno grande livro de Annie Ernaux nos apresenta a biografia de seu pai, um “matuto” francês da primeira metade do século XX. Ela “descobre” a personalidade paterna a partir de sua morte, ao pensar sobre como foi sua vida e nos traz um retrato pungente e magnífico desse homem obscuro e, através dele, retrata a mentalidade de uma época de grandes mudanças sociais, principalmente com a grande guerra e suas consequências, mas que, na verdade, conserva muito do pensamento, das ideias, dos gestos, das expressões e do modo de vida estratificados na mente humana através dos séculos, tudo isso ainda influenciando até mesmo seu estilo de vida de mulher moderna e independente. Como diz a canção de Belchior, na magnífica interpretação de Elis Regina” “ainda somos os mesmos, como nossos pais”... Eu escrevi que esse é um pequeno grande livro, porque é um romance curto, que se lê, como se diz, “numa sentada”, mas que nos leva a grandes reflexões.

sexta-feira, 10 de março de 2023

A lenda do Fantasma, Lee Falk

 A lenda do Fantasma, Lee Falk


Criado como tira de jornais em 1936, será que “o espírito que anda” ou “o homem que não pode morrer” ainda pode seduzir os jovens destes tempos de super-heróis em filmes de superprodução e de roteiros surpreendentes? Não tenho resposta. Mas posso dizer que li com prazer a história desse herói de histórias em quadrinhos que tem por ideal de vida “combater os piratas e a maldade do mundo”, fazendo justiça com seus punhos poderosos e sua lenda de imortalidade. É um “super-herói” que não tem superpoderes. Neste livro, conta-se a história da vigésima primeira geração do herói, ou seja, a história de Christopher Walker, nascido na selva e enviado aos Estados Unidos, para completar sua educação, aos doze anos. A lenda do Fantasma, que mora numa caverna num país fictício, Bengalla, protegido por uma tribo de pigmeus, temidos por suas flechas envenenadas, começa no século XVI, quando o primeiro Fantasma jura vingar a morte do pai, assassinado por piratas. A partir daí, vinte gerações acumularam fortuna e fama, através do combate à injustiça, com os rostos cobertos por uma máscara, usando uma roupa colada ao corpo, aparecendo e desaparecendo misteriosamente, criando assim a aura de imortalidade. Nas tiras e nas revistas, o Fantasma vem encantando gerações desde a sua criação, mas não sei se sobreviveria hoje em filmes ou mesmo em reedições ilustradas. De qualquer modo, reitero o meu prazer de relembrar a história de um herói de minha adolescência, quando as revistas de quadrinhos começaram a fazer sucesso por aqui. Se já não tenho a mesma paciência para ler essas revistas, a história em livro, sem ilustrações, permitiu que todas as façanhas desse improvável mas fascinante herói trouxesse de volta para mim um tempo em que ainda tateava no terreno da busca por uma filosofia de vida, de valores éticos e, mesmo que meio ultrapassados, os valores do Fantasma e sua luta por justiça e pelo direito calaram fundo no meu pensamento, como os valores de outros super heróis atuais devem influenciar as novas gerações.

terça-feira, 7 de março de 2023

Medicina dos horrores - A história de Joseph Lester, o homem que revolucionou o apavorante mundo das cirurgias do século XIX, Lindsay Fitzharris

Medicina dos horrores – A história de Joseph Lester, o homem que revolucionou o apavorante mundo das cirurgias do século XIX, Lindsay Fitzharris


Um livro tão fascinante, que não se como iniciar este comentário. Poderia começar falando que o atual uso de máscaras por quase toda a humanidade, para tentar conter a pandemia de Covid-19 – o que salvou inúmeras vidas – está diretamente ligado a um médico do século XIX, Josph Lester, o biografado nesse extraordinário relato. Mas, acho que vou iniciar a minha resenha com esta citação do livro: “A erisipela era uma das quatro grandes infecções que infernizavam os hospitais do século XIX. As outras três eram a gangrena hospitalar (úlceras que levavam à putrefação da pele, dos músculos e dos ossos), a septicemia (envenenamento do sangue) e a piemia (desenvolvimento de abcessos purulentos)”. Não havia como tratar essas infecções. E quase todos os hospitalizados, principalmente os amputados, acabavam morrendo. Por isso, os hospitais eram chamados de “casas da morte”. Em meados do século, já o processo de industrialização na Inglaterra atingia altos picos, o que levava a uma quantidade absurda de acidentes de trabalho, por prensas e outras máquinas que mutilavam os operários, além do trânsito infernal de veículos ainda puxados a cavalos, mas cada vez mais pesados e mais velozes, que atropelavam as pessoas, fruto do crescimento urbano. Uma fratura levava fatalmente à amputação do membro, coisa que até mais ou menos 1848 era feita a sangue frio, não havia anestésicos. Além do sofrimento da cirurgia, a recuperação quase sempre levava a infecções e à morte. A descoberta do clorofórmio como anestésico aliviou a dor da cirurgia, mas não trouxe melhoria na recuperação, já que as salas cirúrgicas e os hospitais eram tão imundos quanto as próprias cidades – Londres, na Inglaterra; ou Glasgow e Edimburgo, na Escócia, onde viveu Lester – eram cidades sujas, fedidas, sem nenhum saneamento, com esgoto correndo a céu aberto e lixo acumulado nas ruas. Os cirurgiões nem as mãos lavavam entre uma amputação e outra. Esse estado de coisas desesperava um jovem médico, Joseph Lester. Suas tentativas de melhorar as condições dos hospitais esbarravam na tradição (sempre foi assim), na ignorância (as doenças eram causadas por miasmas) e na estupidez (durante a guerra de secessão nos Estados Unidos – 1861-1865 – os médicos enviados para os campos de batalha chegaram usar até mesmo terra – você leu direito: terra! – para cobrir os tocos dos amputados!). Coube a um químico francês, o grande Louis Pasteur, a descoberta dos germes. Baseado nas experiências de Pasteur, Lester desenvolve a teoria da assepsia, ou seja, da desinfecção dos instrumentos cirúrgicos, do ambiente hospitalar e do próprio cirurgião, a partir de novas técnicas operatórias, que incluíam o uso do ácido carbólico, ou fenol, que era utilizado principalmente nos fétidos matadouros e beiras de rio, para diminuir a fedentina. Foi uma longa luta para convencimento de seus pares, e Joseph Lester – que morreu em 1912, já bem idoso – teve uma trajetória extraordinária, digna de figurar entre os grandes benfeitores da humanidade. Uma biografia surpreendente, detalhada, num retrato vívido de um tempo – a segunda metade do século XIX –, da situação de um país – a Inglaterra –, e de um momento do desenvolvimento da ciência médica. Sim, um livro fascinante.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Uma História da Leitura, Alberto Manguel

 Uma História da Leitura, Alberto Manguel


Enquanto estamos lendo um livro, somos seu escravo; depois, tornamo-nos senhores do conhecimento que ali está depositado, seja através de qualquer gênero – literário, histórico, filosófico etc. Um livro é, portanto, sempre uma fonte de conhecimento – do mundo e de nós mesmos. Talvez por isso a fascinação da leitura, talvez por isso é que nos lançamos sempre em busca de novos livros: não importa o formato, desde as tábuas de argila, até os modernos leitores digitais. E carregamos os livros – nós, os aficionados da leitura – para onde quer que vamos, como o grão-vizir da Pérsia, que carregava sua biblioteca, quando viajava, no lombo de quatrocentos camelos treinados para andar em ordem alfabética. Essa e centenas de outras histórias, envolvendo a leitura através dos tempos, é o que nos conta Alberto Manguel, neste livro fantástico, “Uma história da leitura”. Sem dúvida uma obra para encher os olhos e as mentes de todo apaixonado por livros. São muitíssimos os fragmentos de experiências de todo o tipo de leitor, através dos tempos, desde o encantamento com o aprendizado da leitura até a leitura compulsiva de tudo que cai diante dos olhos desses seres especiais, que são os leitores. Um livro para se ler devagar, apreciando cada caso, cada situação levantada através de seus longos capítulos, degustando as histórias e as lições que nos trazem, e até lamentando quando o final se aproxima. Mas, não tenhamos pressa, que o ato de ler - talvez a mais civilizada das paixões humanas - não se arrefece quando chegamos ao ponto final de um livro, mas se renova na busca de mais uma obra, de mais um autor, de mais conhecimentos – do mundo em que vivemos e de nós mesmos – através desses sinais misteriosos que inventamos para viver vidas e tempos que não apenas as nossas vidas e o nosso tempo. Ler, afinal, é celebrar a liberdade de sonhar, de pensar, de viver.