sexta-feira, 28 de julho de 2023

Antes que o café esfrie, Toshikazu Kavaguchi

Antes que o café esfrie, Toshikazu Kavaguchi


Gosto pessoal: aprecio obras que tratem de viagem no tempo. Porque exigem do leitor um total mergulho na ficção, uma aderência ao mundo suprarreal imaginado pelo autor. Só essa aceitação das regras propostas leva o leitor ao prazer da leitura. Num café existente há mais de cem anos, numa ruazinha estreita e silenciosa de Tóquio, diz uma lenda urbana que seus frequentadores podem viajar no tempo, dentro de algumas regras bastante restritivas. E muito criativas. O fenômeno só acontece se a pessoa se sentar numa determinada cadeira. O problema é que essa cadeira é ocupada o tempo todo pelo fantasma de uma mulher de vestido branco. E esse fantasma só se levanta uma vez por dia para ir ao banheiro, o que é já bastante inusual. As demais regras: no passado, só se pode encontrar pessoas que já frequentaram ou estiveram no café; nada do que se fizer no passado irá modificar o presente; não é possível levantar-se durante a viagem (senão vira fantasma, como a tal mulher); e talvez a mais importante: a viagem começa quando uma atendente serve ao pretenso viajante uma xícara de café quente e a pessoa tem que voltar antes que o café esfrie. Essas regras são reiteradas a cada vez que quatro pessoas precisam viajar no tempo, por algum motivo. E são essas quatro histórias – de perdas, de recordações, de arrependimentos e de desejos irrefreáveis – que iremos seguir durante a leitura do livro: a da jovem cujo namorado foi para os Estados Unidos; a da esposa que vê seu marido amado perder a memória para o Alzheimer; a da garota que fugiu da família para não assumir sua posição no hotel dos pais e que precisa reencontrar a irmã caçula que morreu; e, finalmente, a esposa grávida do dono do estabelecimento que sabe que vai morrer no parto e quer conhecer, no futuro (uma viagem que ainda não fora tentada, mas que é possível), a filha ou o filho que vai nascer. São histórias humanas, muito humanas, que exploram sutilmente o paradoxo da impossibilidade de uma viagem no tempo não poder alterar o que já aconteceu, mas poder alterar a vida, o pensamento e o futuro dessas pessoas. Os três relógios do estabelecimento – cada um marcando uma hora diferente, coisa que os frequentadores não conseguem entender – representam bem essa metáfora de possibilidades de alterar não o que já aconteceu, mas o interior e a visão de mundo de cada um que enceta essa maravilhosa viagem no tempo, através desse livro delicioso de ler e até mesmo de reler.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Risíveis amores, Milan Kundera

Risíveis amores, Milan Kundera


Os sete contos que compõem este livro trazem como marca comum a visão do autor de que o amor, no caso o amor erótico, não é trágico nem cômico, mas tragicômico. São histórias que provocam no leitor aquele riso envergonhado de quando percebemos quanto de futilidade há na conquista amorosa, quando seu objetivo é só mesmo a satisfação carnal do conquistador. Ressalte-se que todos os protagonistas são homens, machos no sentido não exatamente donjuanesco do termo, mas conquistadores colecionadores, predadores que não temem o ridículo para chegar a bom termo suas intenções de conquistas, na maioria das vezes, vazias e sem perspectiva. A mulher é vista sempre como algo que tem que ser belo, o mais belo possível. As feias ou são desprezadas ou humilhadas, como a diretora feia e quase idosa de um colégio do interior, obrigada pelo professor bem mais novo e conquistador a se ajoelhar nua e rezar um pai-nosso, apesar de não professar nenhuma religião, para obter seu quinhão de prazer carnal. Ou o caso do protagonista bem mais velho casado com uma belíssima e desejada atriz, o qual, em tratamento numa estação de águas, exerce seu narcisismo na conquista de outras mulheres, mesmo que a esposa lhe declare um imenso amor e fidelidade. No mercado da carne, há sempre mentiras e subterfúgios, jogos que levam a descobertas de que há ali, naquela situação, apenas desejo e nada mais. Mais do que risíveis amores, são amores ridículos, por parte de machos que parecem estar sempre em busca de algo que não sabem bem o que é através da conquista amorosa, já que as mulheres são apenas e tão somente objetos de cobiça e nada mais. O estilo irônico e detalhado do autor não consegue disfarçar, na minha opinião, a misoginia e a visão de uma época – entre 1959 e 1968, quando foram escritos esses contos – em que à mulher cumpria ser apenas um complemento do homem, mesmo sob o regime comunista, também ele conservador quanto aos costumes.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

A Cidade e os Cachorros, Mario Vargas Llosa

 A Cidade e os Cachorros, Mario Vargas Llosa


Inicialmente, duas informações: a ação do romance se passa num colégio militar na cidade de Lima, no Peru; e os cachorros do título referem-se, não aos animais, mas aos internos recém-chegados, ou seja, aos calouros. Os protagonistas e os personagens são quase todos garotos entre 13 e 16 anos, enviados a esse colégio por seus pais autoritários, que os querem transformados em “homens”, muitos de origem humilde, com problemas enormes de sobrevivência, de pequenos atos de delinquência ou simplesmente de conflitos familiares. No tal colégio, sob rígida disciplina militar, constituem, no entanto, códigos próprios para burlar essa disciplina, ao mesmo tempo que os mais novatos, os calouros, ou “cachorros”, são humilhados e tratados com crueldade pelos mais velhos. Nesse meio hostil, alguns rapazes se reúnem para formar um grupo de oposição a esse tratamento ameaçador dos veteranos, o Círculo. Mas, num meio violento, a violência acaba se normalizando, e mesmo os membros desse grupo também se tornam violentos. E será essa violência levada ao extremo, quando códigos de conduta rigidamente adotados por eles parecem ser quebrados e os jovens passam por duras provas de amadurecimento. A estrutura do romance é construída em overlaps: as histórias de cada personagem, inclusive suas vidas pregressas, são intercaladas, formando um mosaico que vai levando o leitor a compor pouco a pouco em sua mente um quadro de relações complexas de amizades, de ódios, de amores frustrados, de encontros e desencontros, de dramas familiares, sob vários pontos de vista, com vários narradores ou várias narrativas. Sem dúvida, uma crítica contundente ao regime de internato, principalmente quando comandado por militares que só se preocupam com a disciplina e não exatamente com a formação de cidadãos responsáveis, cuja leitura deveria ser feita por todos aqueles que (extrapolando as lições do romance para nossos dias e nosso país) defendem a criação e manutenção de escolas cívico-militares. Que essa gente fique longe de nossos jovens, não têm nada a ensinar a não ser a disciplina inútil de ordem unida e marchas sem sentido. Quando são colocados diante de dilemas éticos, como acontece em relação a um fato crucial do romance, os militares colocam seus interesses e sua sobrevivência acima de qualquer prurido humanitário. Como primeiro romance do grande escritor peruano, esse é, sem dúvida, um cartão de apresentação que não deixa nenhuma dúvida de que já estamos diante da revelação de um escritor que alcançará grande projeção internacional.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak

Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak


Da vida pré-cabralina de nossos povos originários quase nada conhecemos, porque não dominavam eles a escrita. Podemos apenas deduzir, a partir de pouquíssimos indícios e, depois, através das narrativas provenientes dos primeiros contatos com os europeus, quando os usos e costumes estavam preservados. Não tinham eles o que chamamos de “civilização”, ou seja, não construíram cidades nem se organizaram em impérios, como, por exemplo, os maias, na América Central. Talvez por isso mesmo (e isso é algo que eu penso), preservaram rios, florestas e animais, num processo de integração total com a natureza, ao contrário dos maias, que ergueram cidades e impérios, exaurindo a natureza de tal modo, que acabaram se tornando vítimas exemplares do que, num microcosmo, a região central da América, pode acontecer ao ser humano, em termos globais, se não cuidar da casa onde vive. E é essa a preocupação dos remanescentes de nossos indígenas, em alertas de sabedoria com relação ao meio ambiente. Ailton Krenak, nascido no vale do rio Doce, onde ocorreu um dos maiores crimes ecológicos de nossa história, sabe muito bem da potência da sabedoria dos ancestrais, quando diz que a humanidade não é algo separado da natureza, que a ela estamos integrados, a tal ponto que precisamos reconhecer que, “quando um rio está em coma, é ele o nosso avô que está morrendo, e nós estamos morrendo com ele. Para ele, o desastre ambiental de nossa era, chamada de Antropoceno (que, segundo alguns, em se tratando de era geológica, pode ter tido seu início com o homo sapiens), está na nossa resistência em não perceber essa integração, em privilegiar o consumismo, em não ressignificar nossa existência e refrear essa marcha absurda para o abismo. Diz ele: "Nosso tempo é especialista em produzir ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta e faz chover. [...] Minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história." Diante disso, de tudo quanto nossos povos ancestrais nos legaram de sabedoria, não posso dizer que tenha ficado surpreso ao ler esse livro, pelo contrário, devo afirmar que tudo quanto ali está escrito me encantou e me deixou orgulhoso de que há ainda povos, grupos e pessoas que nos alertam para as besteiras que andamos fazendo com nossa casa, com essa casca de noz em que vivemos. Devo acrescentar que, sim, a Terra pode se regenerar sozinha, mas provavelmente só depois que se tiver livrado de nós. Em alguns séculos ou milênios, os rios, as florestas, muitos animais, o clima, tudo poderá ganhar nova vida. Apenas, não estaremos lá para testemunhar, para “contar mais uma história”. A luta, portanto, não é apenas para preservar o meio ambiente, mas para nos salvar enquanto humanidade.

O Processo Civilizador 2 – Formação do Estado e Civilização, Norbert Elias

O Processo Civilizador 2 – Formação do Estado e Civilização, Norbert Elias


No primeiro volume de “O processo civilizador”, Norbert Elias foca a evolução ou mudança dos costumes nas cortes e sua contaminação para outros estratos da sociedade, num lento processo que começa nos séculos X e XI. Neste volume, bem mais complexo, o assunto é como se formou o estado moderno, a partir de reinados que se disseminavam por toda a Europa, sem ainda qualquer noção de país ou nação, em que os reis que conquistavam porções de território, através do uso da força, tinham de premiar seus principais seguidores com porções de terra, tornando-os suseranos de vários feudos. O problema é que esses senhores feudais acabavam por se tornar também poderosos e ameaçavam a autoridade real, o que levou muitos soberanos a distribuir terras somente a parentes e amigos, o que também não resolveu o problema, já que parentes e amigos eram também os que o traíam e conseguiam, muitas vezes, não só ameaçar seu território mas tomá-lo e, por sua vez, também ser engolidos por outros reis mais fortes num processo complexo de guerras e lutas não só intestinas, mas também contra inimigos externos. Lentamente, a partir dos séculos IX, X e XI até praticamente o século XIX, foram-se fixando os reinados absolutistas, em que o poder se concentrou cada vez mais sob um único rei de vastos territórios, formando o que hoje conhecemos como nações. As cortes desses reis ganharam, também pouco a pouco, relevância cada vez maior, no processo de transformação dos cavaleiros armados e dispostos sempre a tomar o que queriam através da força, do assassinato, do estupro, em homens da corte, onde as lutas se restringiam a intrigas para ganhar prestígio junto ao soberano, e o que valia eram os quesitos de polidez – la societé polie. A divisão de classes é clara na máxima de um autor da época: “existem os que trabalham, existem os que rezam e existem os que gozam” – os vassalos, o clero e a nobreza -, numa economia baseada exclusivamente no escambo. No entanto, a partir do século XI, surge uma nova classe, a dos burgueses, moradores das cidades que começam a ganhar relevância e a modificar não só economia, com o aumento paulatino do uso de moeda, e não só do escambo, mas também os costumes, pela sede de ascensão social de muitos de seus membros, que se tornam “especialistas” em algum dos processos administrativos, para os quais os nobres torciam o nariz (trabalho, para eles, era um total desprestígio) e começam a tomar lugar de destaque nas cortes. O sistema civilizatório, que não depende de nenhuma vontade, como deixa claro o autor, trança suas complexas engrenagens para a formação de um novo ser humano e de uma nova teia de relações sociais e políticas que emergem lentamente desde os primórdios da alta idade média, passa pelo renascimento e chega ao século XIX e XX. Mas, alerta ainda Norbert Elias, a civilização, ou melhor, o ser humano realmente civilizado, ainda está muito distante de existir, porque, embora tenhamos evoluído durante todos esses séculos, ainda há muitos estranhamentos na convivência humana, e ainda estamos distantes de que esse processo chegue ao menos a um nível daquilo que possamos chamar de civilização. Enfim, o assunto é bastante complexo, a leitura do livro é lenta e, às vezes, penosa, para quem, como eu, que não conhece a fundo a história política e social da Europa, e tem do assunto apenas o básico. No entanto, mesmo com todas as dificuldades de compreensão total das ideias e hipóteses a respeito do processo civilizador – pessoal, político e social – do ser humano, aprendemos muito sobre nós mesmos e conseguimos estrair muitas lições para compreender o momento em que vivemos, lembrando sempre que o texto foi escrito na década de 30, durante a ascensão do regime nazista.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

O processo civilizador - volume 1: Uma Historia dos Costumes, Nobert Elias

 O processo civilizador - volume 1: Uma Historia dos Costumes, Nobert Elias


Se você algum dia já se perguntou: o que é civilização? Ou, diante de tanta barbárie: somos realmente “civilizados”? Então, você deve ler Norbert Elias. Talvez não encontre em suas obras respostas definitivas, porque, na verdade, não há nunca respostas definitivas. Mas, com certeza, começará a encontrar o caminho para responder a essas dúvidas e a muitas outras. Esse sociólogo alemão, talvez devamos dizer sociólogo-historiador ou historiador-sociólogo, ou ainda, um filósofo, considera o ser humano inserido profundamente na sociedade em que vive, influenciando e sendo por ela influenciado, ou talvez devamos dizer mais apropriadamente construindo a sociedade em vive, não num processo estático, mas num processo dinâmico de aprendizagem dolorosa, mas em progressão sempre para o que ele chama de algum sentido, mesmo que não se saiba exatamente qual é esse sentido. Mesmo diante de todas as barbáries já cometidas pela humanidade – e ele circunscreve essa humanidade ao europeu que contamina todos os demais seres humanos, seja por que meios lícitos ou ilícitos – o autor de “Uma história dos Costumes”, primeiro volume de uma obra maior, em que pretende discutir o conceito de civilização, transmite um certo otimismo quanto às conquistas do ser humano. Neste primeiro volume, ele analisa o comportamento humano desde a idade média, nos seus detalhes mais comezinhos, como o comportamento à mesa, por exemplo, que disseca por que começamos a usar talheres ou por que não mais cuspimos na mesa ou escarramos durante uma refeição. Foi um longo condicionamento, mais do que aprendizado, em que o ser humano – no princípio, a “nobreza” europeia – aos poucos vai interiorizando um certo “nojo” a esses comportamentos, até que eles sejam abandonados e começa-se, então, a cultivar atitudes mais condizentes com o que chamamos de “civilização”. Esse livro foi escrito na década de 30, antes, portanto, da segunda guerra. Por isso, algumas ideias pareçam datadas, mas não o são, de forma alguma. No posfácio, que na verdade é um prefácio à edição de 1969 do livro, o autor deixa o historicismo para abrir o seu pensamento e assentar as bases da sua pesquisa e da sua visão de mundo, com uma crítica fundamentada a uma certa sociologia que vê o ser humano separado da humanidade, como duas entidades distintas, como se ele, o ser humano, estivesse “envelopado” por espécie de “pele” que tem um conteúdo que o protege da sociedade em que vive, numa visão absurdamente metafísica. Se pensarmos no ser humano e na sociedade como algo intrinsecamente inseparáveis, dentro de um processo histórico de dura e sofrida aprendizagem em busca de um “sentido” civilizador, podemos ver em funcionamento nos dias de hoje esse processo, quando pensamos em aspectos tenebrosos do “anima” humano, como o racismo (para dar um só exemplo), que precisa ser extirpado através da repetição exaustiva de que não basta não sermos racistas, que é preciso ser antirracista, além de aplicação de penalidades severas a quem comete atos de racismo. É um aprendizado doloroso – para os racistas –, mas necessário, mesmo que demande um tempo que não podemos calcular. Enfim, se você, leitor dessas linhas, preocupa-se com o “homo sapiens”, você precisa ler Norber Elias. Talvez esse “homo” não seja tão “sapiens” quanto imaginamos, mas está a caminho de sê-lo.