quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

O segredo dos flamengos - Federico Andahazi

O segredo dos flamengos, Federico Andahazi


Uma ficção desbragada, sem medo de inventar, iludir, seduzir, para contar uma deliciosa história – absurda – mas envolvente, ocorrida no século XV, com todas as tintas da época. Sim, tintas. Porque se trata da vida de pintores, num tempo em que a arte da pintura alça seus primeiros voos para o Renascimento, em que a busca pela perfeição a tudo justifica, até assassinar. E é também a misteriosos assassinatos que nos leva o enredo, que começa com o enterro do jovem e promissor pintor de 16 anos, Pietro Della Chiesa, encontrado morto, nu, degolado, o rosto sem pele, numa floresta de Florença, o aluno favorito do mestre Francesco Monterga. Enquanto isso, em Flandres, os irmãos Van Mander – um deles cego, mas responsável pela preparação dos pigmentos; o outro, pintor – são seduzidos por uma belíssima jovem portuguesa que os contrata para pintar o seu retrato. Os irmãos de Flandres e o pintor florentino são inimigos mortais e todos eles buscam um misterioso preparado que ajudaria a fixar os pigmentos e daria a eles a possibilidade das cores perfeitas, em suas pinturas. Quem encontrar a fórmula desse misterioso preparado pode, no entanto, pagar com a perda da visão essa suprema ventura, mas ganhará o poder de penetrar nas cortes e ganhar fortunas com sua arte. Esse o panorama dessa ficção, que considero deliciosamente desbragada e sedutora, em mais uma obra desse escritor argentino contemporâneo, que sabe dosar como ninguém um bom enredo com cores históricas, como no excelente e injustamente declarado escandaloso romance “O anatomista”.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Pedro Páramo, Juan Rulfo

 Pedro Páramo, Juan Rulfo


A memória pertence aos mortos. Pelo menos, é essa a sensação que temos, ao término de “Pedro Páramo”, o romance seminal da moderna literatura mexicana, quiçá, da literatura latino-americana. Praticamente inaugura, com seu estilo “seco”, mas extremamente poético, o realismo fantástico, em cuja fonte beberam quase todos os grandes escritores da América de fala espanhola e portuguesa. Seu enredo é simples: Juan Preciado cumpre a promessa feita à mãe em seu leito de morte de que procure o pai, Pedro Páramo, nas profundezas do interior mexicano, em vilas de miséria e violência, onde ele, o pai, pontificou como um tenebroso e lendário assassino. Preciado não encontra mais as pessoas que conviveram ou foram vítimas do pai, mas defuntos repletos de memórias, que lhe contam da crueldade implacável do pai. A narrativa é entrecortada entre muitos narradores e fatos que vão pouco a pouco construindo o perfil de Pedro Páramo, ao mesmo tempo que nos dá um retrato de um país, o México, mergulhado em pobreza, em revoluções sangrentas, em que, metaforicamente, só os mortos sobreviveram para narrar os horrores da história. Não é um livro para se deleitar num fim de semana, mas para ser lido com o arrepio da certeza de que nós, os cucarachas latino-americanos, ainda precisamos superar muitos complexos e, principalmente, a miséria e a desigualdade, para ganharmos dignidade. Longe está, portanto, de ser um romance “fácil”, em suas pouco mais de 120 páginas. Para concluir: Juan Rulfo publicou apenas dois livros – “Pedro Páramo” e um livro de contos. Por isso, é considerado o escritor mais silencioso da América. Acredito que ele disse tudo o que queria e precisava dizer só com esses dois livros, principalmente com o instigante “Pedro Páramo”.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Minha vida de rata, Joyce Carol Oates

 

Minha vida de rata, Joyce Carol Oates


O assassinato é um dos crimes mais terríveis que comete o ser humano contra outro ser humano. Em qualquer circunstância, exige que o assassino conheça a vítima ou tenha contato com ela. Não há justificativa para um assassinato, mesmo que haja circunstâncias juridicamente atenuantes. E não é sobre isso que quero comentar, ao escrever sobre o livro “Minha vida de rata”. Mas, ainda preciso dizer algo antes: na ocorrência de um crime de morte, o foco da polícia, da mídia, do judiciário recai sobre o assassino e também sobre a vítima e seus familiares e amigos, que são destroçados pelo ato insano. E sofrem. Esquece-se que o assassino também tem família e amigos, que também são, muitas vezes, destroçados. E também sofrem as consequências. No livro que comento, o foco é a família dos assassinos, principalmente a narradora, que inicia sua história com a idade de 13 anos. Um breve resumo: Violet Rue é filha de irlandeses, numa pequena localidade às margens do rio Niágara, nos Estados Unidos. Tem mais cinco irmãos, duas meninas e três rapazes, mais velhos. Dois desses rapazes, de 15 e 17 anos, respectivamente, cometem um bárbaro assassinato contra um jovem negro da comunidade. O crime só é desvendado, porque Violet viu seus irmãos tentar esconder as pistas, principalmente um taco de basebol do pai, que eles enterram próximo ao rio, e porque um deles, Lionel, não só a ameaçou, como a agrediu para nada contar à polícia. Ferida, assustada, a menina acaba confessando tudo o que viu. Seus irmãos são presos e condenados. Um deles acaba morto na prisão. O outro, Lionel, cumpre 13 anos de prisão, sem que nenhum recurso obtenha resultado para soltá-lo. Nem mesmo consegue liberdade condicional. A família se destroça, nos gastos com advogados. E o pior: passa a odiar a menina, considerada traidora, a “rata”, a “puta”. Violet é afastada dos pais, dos irmãos e vai viver longe, com um casal de tios, o que condiciona todo o resto de sua vida, sempre com a suspeita da ameaça do irmão que, ao sair da prisão, pode matá-la. O livro é a trajetória dessa garota, numa narrativa lenta, sufocante, terrível, até o desfecho final. Pouco se fala da vítima, o jovem negro, principalmente porque o ponto de vista do romance é sempre o de Violet, e ela pouco conheceu o rapaz barbaramente assassinado, embora leve para sempre o estigma de sua morte, no sobrenome de sua família. Realmente, um livro surpreendente, que foge ao estereótipo de “crime e castigo”, dessa grande autora estadunidense, Joyce Carol Oates, que nos leva aos mais recônditos escaninhos da maldade humana que se esconde no íntimo da base da sociedade, a família. E, claro, ao racismo estúpido e violento que aflora cada vez mais neste mundo ameaçado por forças reacionárias que deviam ter sido extintas há muito.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

A bagaceira, José Américo de Almeida



A bagaceira, José Américo de Almeida


A literatura brasileira viveu um boom do romance regionalista, iniciado na década de 30, exatamente com este livro de José Américo de Almeida, “A bagaceira”. Levando ao extremo uma nova forma de narrar, em que não apenas os aspectos regionais, no caso, o Nordeste, são o elemento central da trama, mas, e principalmente, um trabalho de pesquisa do linguajar típico da região, o regionalismo obteve sucesso de crítica e de público. A obra máxima dessa tendência foi alcançada com Guimarães Rosa, em “Grande Sertão Veredas”, com inovações em todos os aspectos da linguagem, e não apenas no léxico, como ocorre com a maioria dos romances do ciclo nordestino. No entanto, a trama de “A bagaceira” traz-nos, sob uma linguagem às vezes complexa, mas sempre poética, uma história de amor, traição, vingança e redenção familiar, num cenário de miséria e exploração do ser humano, no limite de sua capacidade de resistência a um período especialmente trágico de secas, entre 1898 e 1915. As personagens principais, Dagoberto, dono do engenho, seu filho Lúcio e a retirante Soledade formam um triângulo amoroso de cores dramáticas, envolvendo outras personagens, nessa trama que, principalmente, busca denunciar os problemas crônicos do Nordeste brasileiro, nos seus aspectos sociais, políticos, econômicos, que são a raiz das desigualdades e da exploração exercida secularmente pelos latifundiários e políticos que dominam a região. Talvez não seja um livro muito fácil ao leitor atual, pelo estranhamento que causa o léxico empregado pelo autor, mas, sem dúvida, vencida essa dificuldade inicial, depois de nos acostumarmos com o linguajar típico daquela época, podemos mergulhar com emoção e até com uma certa exasperação numa aventura ainda muito atual, pois, repito, vamos encontrar um mundo que só aparentemente parece distante, porque a luta pela sobrevivência, em qualquer parte do planeta, ainda rende ótimos exemplos de como o ser humano, mesmo em situações adversas, consegue ultrapassar as dificuldades e continuar lutando. E é o que se espera, hoje, quando a ganância de um sistema mundial de exploração das reservas do planeta coloca a humanidade numa encruzilhada entre continuar gastando os parcos recursos que nos restam e comprometer o seu futuro ou frear essa gastança absurda e buscar novas formas de vida e sobrevivência. Encerro esse meu breve comentário convidando ou até mesmo incitando os novos leitores a retomarem a leitura de nossos grandes escritores do século XX, como José Américo, Graciliano, Rosa, Amado, Veríssimo (o pai e também o filho), Clarice, Rachel, José Lins etc. etc. A lista é longa e, pode ter certeza, são autores poderosos, de que podemos e devemos nos orgulhar.

domingo, 3 de dezembro de 2023

O juiz e seu carrasco, Friedrich Dürrenmatt

 

O juiz e seu carrasco, Friedrich Dürrenmatt


Do suíço de língua alemã Friedrich Dürrenmatt, conhecia a peça “A volta da velha senhora” que, aliás, é uma obra prima. Agora, leio essa pequena novela de crime e mistério. Trata-se do assassinato de um policial exemplar, numa cidadezinha suíça. Encontrado morto dentro de seu carro, com a porta direita aberta, sem praticamente nenhuma pista do assassino, o mistério parece insolúvel. Não, porém, para o velho e doente comissário, Bärlach, o protótipo do detetive cerebral e desleixado, mas fascinante, que ama cigarros, vodca e a boa mesa. A história se complica, quando o velho detetive tem sua própria vida ameaçada, já que está às voltas com policiais oportunistas e carreiristas, com figurões locais e também com pretensos embaixadores estrangeiros. Tudo conspira contra o velho detetive, e a história se desenvolve de forma a que temos de degustá-la lenta e calmamente, apesar do suspense, das reviravoltas, para compreender toda a discussão sobre o bem e o mal, no jogo proposto pelo assassino. E, é claro, o autor nos reserva uma grande surpresa para o grand finale, como sói acontecer nesse tipo de estrutura narrativa policial, mas que, na escrita de um mestre, tem sabores bem mais interessantes. Sem dúvida, um pequeno grande livro (apenas 112 páginas), para se ler num fim de semana, degustando um bom vinho.