domingo, 30 de maio de 2021

Sapiens - Breve História da Humanidade, Yoval Noha Harari



Sapiens - Breve História da Humanidade, Yoval Noha Harari




Impressiona a clareza do autor. Não basta ter erudição: é preciso saber escrever. E escrever bem. E isso Harari faz, e com brilhantismo. Cumpre o título do livro de forma esplêndida, narrando os primórdios da humanidade, desde as primeiras espécies humanas, discutindo suas culturas e realizações; leva-nos a uma viagem que nos faz refletir não apenas de onde viemos, mas também o que somos. Resultado de processos complexos, o ser humano passou por inúmeras fases, desde o caçador-coletor até os dias hoje, quando acumulamos nos últimos quinhentos anos mais conhecimentos do que em toda a história de milhões de anos anteriores. E o que somos realmente? Quase sempre vivemos sob um império e o que são impérios? Temos tecnologia para nos destruir e para nos salvar. O que podemos fazer? As questões levantadas, as hipóteses discutidas e as discussões que podem ser feitas a partir do conhecimento que temos de nós mesmos – e se esse conhecimento é imenso, por outro lado é só uma ínfima parte de tudo quanto viveu a humanidade desde que o primeiro primata pisou em terra firme – para onde vamos? Realmente uma leitura indispensável, para os dias de hoje. Uma viagem pelo conhecimento humano.


quinta-feira, 27 de maio de 2021

Coração Satânico, Willilam Hjortsberg

 Coração Satânico, Willilam Hjortsberg




Tive a fase do romance policial. Lia desesperadamente autores variados desse gênero. De vez em quando, tenho uma recaída. Gosto do gênero, com todos os seus clichês, deliciosos clichês, que tornam detetives e policiais um pouco mais divertidos, ante toda e qualquer trama tenebrosa de crimes e assassinatos requintados. A literatura policial é a que mexe mais profundamente no esterco das mentes humanas. E “Coração Satânico” não deixa por menos. Há um detetive, há um contratante misterioso e uma busca desesperada por um cantor desaparecido durante a década de quarenta, depois de voltar ferido e desmemoriado da segunda guerra. Como todo bom romance policial, não há grandes aprofundamentos psicológicos, mas quem precisa disso, quando o objetivo é o entretenimento, mesmo que macabro? Há sangue, bastante sangue, porque o detetive Harry Angel vai nos levar pelos meandros mais obscuros da Nova Iorque de 1959, para o submundo da magia negra e das pistas que se espalham sutilmente pela narrativa, até o seu desfecho inusitado, como deve ser sempre um bom romance policial.








segunda-feira, 24 de maio de 2021

O risco do bordado, Autran Dourado

 O risco do bordado, Autran Dourado




Uma viagem ao passado do escritor João da Fonseca Ribeiro, que volta ao cenário de sua infância, a mítica cidade de Duas Pontes, no sul de Minas Gerais. Ao encontrar antigos moradores da cidade, parentes e companheiros de infância, ele vai montando uma espécie de quebra-cabeças entre o vivido e o imaginado, completando e expandindo fragmentos de memória que são a narrativa de sua infância e adolescência. O principal interesse está no crescimento e desenvolvimento do protagonista, através do qual vai-se sabendo, aos poucos, como João se tornou o que é, sua dura trajetória na descoberta da sexualidade, da amizade, da traição e, também, da literatura. Prostitutas, jagunços, antepassados mortos, parentes velhos, figuras características de Duas Pontes cruzam o caminho de João que, desta forma vai enxergando, retrospectivamente, o risco sob o bordado que, afinal, é a sua própria história de vida. O bom e tradicional romance regionalista na pena de um mestre de nossa literatura, tão necessitada de revalorização, diante de tantos blockbusters de origem estrangeira, que nada acrescentam à cultura do País.




sexta-feira, 21 de maio de 2021

Cova 312, Daniela Arbex

Cova 312, Daniela Arbex


Milton Soares de Castro. Talvez você nunca tenha ouvido esse nome. Atrás da morte desse jovem é que foi Daniela Arbex, repórter da Tribuna de Minas, jornal de Juiz de Fora. E escreveu uma longa narrativa, em forma de reportagem. Uma história que podia ser uma ficção de terror, mas foi uma história de terror verdadeira. Dentre muitas e muitas que marcaram os anos de ditatura, os anos do regime militar, a partir do golpe de 1964. Essa é a história do jovem guerrilheiro da Serra do Caparaó, no Espírito Santo, que, em companhia de outros quinze, ousaram desafiar a sanha dos militares. Capturados, foram levados para a Penitenciária Regional de Juiz de Fora, transformada num dos centros de tortura e morte por verdadeiros monstros fardados. Sim, não há outra palavra para designar o direito de torturar, de dispor do corpo e da vida de outra pessoa, sem julgamento, sem nenhum respeito à vida e à humanidade, apenas porque essa pessoa discorda politicamente do governo, seja ele qual for. Se o regime militar que nos assombrou por mais de duas décadas tivesse torturado uma única pessoa, já seria o suficiente para ser condenado ad aeternum. No entanto, foram dezenas, centenas, talvez milhares de cidadãos tão brasileiros quanto os que os torturaram e mataram sem julgamento, sem nenhum sentimento de humanidade, que foram capturados como animais e tratados como seres desprezíveis, seviciados, torturados, mortos, tendo seus corpos mutilados jogados em alto mar ou em covas rasas sem nenhuma identificação que não fosse um simples número. Sem que seus pais, irmãos, amigos tivessem oportunidade de velar seus corpos ou mesmo saber onde foram sepultados. Apenas desaparecidos. Cinzas jogadas ao vento pela estupidez de vis torturadores, verdadeiros criminosos, sem nenhuma compaixão. Quando se veem, nestes tempos bicudos em que vivemos, pessoas que elogiam, exaltam e querem transformar em heróis esses monstros, devíamos ler e reler relatos como o de Daniela Arbex, para que nos voltem a força e a resistência dos opositores do regime militar que nos permitam execrar também como criminosos esses indivíduos que exaltam a ditadura e elogiam torturadores. A busca da autora foi pela verdadeira história de um jovem – Milton Soares de Castro – e de sua sepultura, mas ela entrelaça essa história com a história de muitos outros – homens e mulheres – que também foram perseguidos, presos, torturados; alguns resistiram aos maus tratos e sobreviveram para contar; outros, nem seus corpos puderam relatar o que lhes ocorreu (como disse um médico legista, “um corpo conversa com a gente, conta sua história”). Enfim, mais um livro-reportagem que resgata nossa história recente, que não nos deixa enfiar a cabeça na areia e fingir que nada aconteceu durante os anos de chumbo.


terça-feira, 18 de maio de 2021

Trópico de Câncer, Henry Miller

 

Trópico de Câncer, Henry Miller


Retorno à Paris de “Os Miseráveis”, agora na década de 30 do século XX, para seguir a história de outros miseráveis, agora os americanos que moram e tentam sobreviver na mesma cidade de Victor Hugo, um século depois, sem as revoltas e as trincheiras, mas na antevéspera da segunda guerra mundial. O autor-narrador Henry Miller não nos poupa, em suas andanças pelas ruas de Paris, seus subempregos e sua luta pela sobrevivência, entre escritores e artistas frustrados, prostitutas e aventuras com mulheres de todos os tipos: sua literatura sempre mistura suas reflexões ao submundo e ao que há de mais sórdido e, ao mesmo tempo, ao que há de mais humano em suas personagens. Ler Henry Miller é fazer a catarse de nossos sentimentos, de nossas frustrações e desencantos. Não há meio termo: ou o leitor mergulha no caos de suas reminiscências, das mais escrotas às mais sublimes, ou abandona o livro nas primeiras páginas. Mas, se prosseguir, sua coragem será recompensada pela prosa de um dos autores mais emblemáticos do século passado, em língua inglesa. Considerá-lo pornográfico é fazer a leitura superficial de suas obras, sem perceber que, por baixo do erótico, se encontram as nossas mazelas. É deixar de fazer uma viagem fantástica porque a cor do navio não nos agradou. Gosto de voltar a ele de vez em quando, para me lembrar de que um escritor, um verdadeiro escritor, não pode temer as palavras, não pode temer a verdade, não pode temer mergulhar no poço, por mais profundo que ele seja, onde a verdade foi um dia se abrigar.



sábado, 15 de maio de 2021

Os Miseráveis, Victor Hugo

 Os Miseráveis, Victor Hugo


Romances são como as águas. Existem aqueles que são como lagos banhados à luz da lua, claros e belos. Outros são como rios e aí há várias subcategorias, desde riachos calmos a rios caudalosos e encachoeirados. Vastos como o Amazonas ou breves como o rio da aldeia de Fernando Pessoa. E há romances que são mares de águas profundas e calmas ou de águas turvas e revoltas; exigem os primeiros a paciência do explorador, exigem os segundos a argúcia e persistência do navegador; alguns, nem conseguimos neles mergulhar totalmente, por toda a sua complexidade. E há os romances oceânicos, imensos. Alguns nos levam em quase constante calmaria e pedem o olhar atento para os detalhes e as correntes, para se chegar a porto seguro. Outros, porém, podem exigir de quem os navega a coragem para os momentos de borrascas e a argúcia para os momentos de calmarias; agilidade para enfrentar correntezas e o olhar atento para as águas turvas. Enquadra-se nesta categoria o romance oceânico de Victor Hugo. Não há remissão para quem solta a imaginação por suas páginas: a viagem será longa, mas inexorável. Desde as primeiras páginas, as personagens, os acontecimentos, as peripécias nos envolvem e nos arrebatam. Mesmo nos momentos de calmaria, quando emergem apenas as diatribes ou as longas considerações do autor, não há como despregar os olhos dos instrumentos de navegação ou do mar ao redor. Impossível esquecer Fantine, Dom Bienvenu, os rapazes inconsequentes e românticos das farras juvenis; e depois, os Thénardier, Gavroche, Mabeuf; e principalmente, Marius, Cosette, Javert... E o herói, o protagonista, talvez o mais romântico dos heróis do século XIX, Jean Valjean, enviado às galés por roubar um pão, preso por 19 anos, perseguido por um inimigo implacável, acusado de roubo e assassinato, o homem que enriquece melhorando a vida de toda uma comunidade, mas que é obrigado a mergulhar de novo na clandestinidade, que resgata da morte o amor de sua filha adotiva, incapaz de fazer o mal e que, por fim, por isso mesmo leva à morte aquele que o perseguiu durante toda a vida. Jean Valjean é o herói que nos conduz por um amplo panorama da vida na França na metade do século XIX e abre para a literatura e para todo o mundo o olhar do autor – às vezes ainda "ingênuo", sem, talvez a perspicácia de Marx – sobre os miseráveis, os perseguidos, os injustiçados, até então esquecidos tanto pela burguesia ascendente quanto pelos governos mais ou menos despóticos de reis e imperadores só preocupados com sua própria grandeza. O povo sai do esgoto, como Jean Valjean num dos momentos mais impactantes do livro, ao carregar o corpo semimorto de Marius pelos subterrâneos de Paris, para assumir a protagonia da história, ainda que não sua redenção nos tempos que se seguiram, de lutas acirradas por melhoria de vida, num combate de trincheiras e de guerrilhas que continua desde o final do século XVIII, acirra-se no século XIX e XX e permanece aceso até agora, em pleno século XXI, quando os miseráveis de Victor Hugo ainda clamam por terra, por trabalho e salários dignos e até mesmo por sobrevivência, não só nos campos, mas principalmente nas favelas e periferias de cidades de todo o mundo.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

O coração das trevas, Joseph Conrad

 O coração das trevas, Joseph Conrad


Um livro denso, embora curto. Exige do leitor atenção total, para a fruição dessa busca – de si mesmo? Do ser humano em toda as suas qualidades e defeitos? A personagem principal, Marlowe, conta para um grupo de marinheiros sua viagem por um rio selvagem, comandando um barco precário, que o leva ao “coração das trevas”, ao coração da África, para encontrar uma pessoa que é um extraordinário desbravador, um indivíduo especial, Kurtz, que vive e comercia marfim entre os nativos. Apesar da visão colonialista do autor, fato que tem sido criticado por muitos escritores africanos, o romance tem profundidade e beleza, sendo um dos livros mais estudados da literatura inglesa. Uma curiosidade: sua história inspirou o filme Apocalipse Now, do Coppola. Embora transposto para a Ásia e para o cenário de guerra, o diretor manteve o eixo básico da história, com toda a sua complexidade.


domingo, 9 de maio de 2021

Os testamentos, Margareth Atwood

 Os testamentos, Margareth Atwood


A República de Gilead já se chamou Estados Unidos da América. Agora (num futuro incerto) tornou-se uma república teocrática fundamentalista, governada por homens autoritários e corruptos que se dilaceram na busca do poder. Isso está implícito no segundo volume de O Conto da Aia: Os Testamentos. Quinze anos após a história de Offred, a aia que teve o seu destino não revelado no final do primeiro livro, retornamos a Gilead para a saga de duas irmãs de pais distintos, criadas distantes uma da outra e de idades distintas (uma no Canadá, no meio de um grupo terrorista que deseja a desestabilização de Gilead; a outra, criada em Gilead e sendo preparada para cumprir uma das funções que são reservadas às mulheres, na estrutura repressiva desse estado. A primeira foi levada de Gilead ainda bebê e o estado autoritário torna-a um símbolo do combate a seus inimigos, por meio de uma grande campanha publicitária, exigindo seu retorno. Através de três narradoras, acompanhamos a trajetória não só dessas duas meninas/mulheres, mas também de uma personagem fundamental para o destino de Gilead, a misteriosa Tia Lydia. Dentro da estrutura de poder desse estado, ela convive com poderosos e tem o conhecimento dos meandros da política e de todos os seus podres, o que será decisivo quando o destino das três mulheres se entrelaça, na luta subterrânea contra o regime. Não há dúvida de que, mesmo com toda a complexidade da trama, o livro nos prende e mantém nosso interesse da primeira à última página. Se você leu os CONTOS DA AIA, não pode perder essa espécie de epílogo àquele romance genial da canadense Margareth Atwood.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

O conto da aia, Margaret Atwood



O conto da aia, Margaret Atwood



Escrito em 1995, o livro da canadense Margaret Atwood cria uma distopia fantástica. Os Estados Unidos, num futuro não muito distante, sofre um golpe de estado e transforma-se numa república de fanáticos religiosos chamada Gilead. Tudo é proibido. Qualquer transgressão às regras leva à morte. Não há mais arte, não há mais a palavra escrita. Tudo foi destruído. Uma catástrofe nuclear tornou estéreis quase todas as pessoas. Por isso, as mulheres, vítimas preferenciais da opressão, são divididas em castas e as que são férteis tornam-se aias, ou seja, ficam à disposição dos poderosos para a procriação, até serem também descartadas. A heroína do livro é uma dessas aias e é sob o seu ponto de vista que o “conto” se desenvolve: aos 33 anos, era casada e tinha uma filha, mas não tem mais notícias de nenhum dos dois. Sua rotina é a de todas as demais aias. Não pode sair, é vigiada o tempo todo, não pode exibir nenhuma parte do corpo (daí as túnicas que as cobrem), não pode ler nem escrever. Seu nome de aia é Offred (of Fred = de Fred, pertencente a Fred, assim como todas as demais, que ganham o nome de seus “donos” com a precedência do “of”). Ela descreve sua rotina diária, a adaptação a essa vida terrível, os abusos, as tentativas de manter a sanidade. Através dela, a autora discute temas fundamentais de nossa civilização, como totalitarismo, liberdade, feminismo etc. Um romance fabular e fabuloso e, ao mesmo tempo, assustador.


segunda-feira, 3 de maio de 2021

Abaixo as verdades sagradas, Harold Bloom

 Abaixo as verdades sagradas, Harold Bloom


Não há concessão: a erudição do autor nos leva por trilhas insondáveis e inimagináveis da análise literária, com profundidades abissais. Os seis ensaios que constituem o livro – A Bíblia hebraica; De Homero a Dante; Shakespeare; Milton; Iluminismo e Romantismo; Freud e além – cobrem pelo menos dois milênios de literatura e, principalmente, de poesia. Em torno da Bíblia hebraica, Bloom disseca não só os escritores titulados nos ensaios, mas também seus seguidores ou opositores, seus assemelhados e negadores, para nos trazer um oceano de informações, de análises, de detalhes que só a sua capacidade de leitura atenta e de estabelecer relações complexas seriam capaz de nos transmitir. Não é um livro fácil, exige conhecimento literário e histórico, e também um pouco da erudição do autor. Quando terminei de ler, estava exausto e, para buscar um pouco de descanso, enquanto me recompunha, só me restou ouvir Brahms.