quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Incidente em Antares, Érico Veríssimo

 Incidente em Antares, Érico Veríssimo


Falava-se à época, década de 70, em “realismo mágico” ou “realismo fantástico”. Ao mesmo tempo, a realidade nada tinha de mágica ou fantástica: a ditatura perseguia, prendia, torturava e matava cidadãos e cidadãs que dela divergiam. E os ventos que sopraram de Antares, a mítica cidadezinha gaúcha, perdida na fronteira com a Argentina, trouxeram o espanto e o fedor da volta à vida de sete mortos ilustres, insepultos por causa de uma greve, que se reúnem no coreto da praça para desafiar as autoridades e apontar a corrupção, a violência da polícia, o falso moralismo daquele microcosmo de desigualdade e domínio de uma classe privilegiada sobre o povo pobre e faminto, acantonado na favela Babilônia, a maior da região, onde só faltava, na ironia de um cronista da época, os famosos jardins suspensos de sua homônima histórica. O livro causou furor. Não foi proibido porque possivelmente a ignorância dos mortos-vivos fedorentos que nos governavam não devem ter atinado muito bem com as mensagens “subversivas” que estavam subliminarmente implícitas na narrativa de Érico Veríssimo. Li-o, como milhares de outras pessoas, e reli-o agora, para comprovar a força da prosa do escritor, e para verificar a atualidade de suas palavras. O mal cheiro que desandava do ilustres defuntos do coreto, a atrair ratos e urubus, empesteando os narizes do prefeito, do juiz, do delegado e de todos o moradores, não só ainda está no ar, como muitos mortos-vivos, que deviam estar sepultados em suas casernas, fazendo ordem unida e tratando apenas de suas vidas medíocres, estão por aí, com seus dedos podres a apontar para nossas mazelas, como se fossem os “salvadores da pátria”, encastelados com suas estrelas e sua estupidez em postos de comando, a destruir nosso futuro. O “incidente” que, em Antares, foi varrido depois da memória de seus moradores, repete-se como farsa e, como farsa, tende à tragédia. Sem dúvida, um livro ainda muito, muito atual. E salve a literatura brasileira!



segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Luís Carlos Prestes, um revolucionário entre dois mundos, Daniel Aarão Reis



Luís Carlos Prestes, um revolucionário entre dois mundos, Daniel Aarão Reis



Nascido em 1898, o Cavaleiro da Esperança viveu integralmente o século XX. Não apenas viveu, mas participou de momentos importantes de nossa História. Militar, muito cedo se envolveu na política. Perseguido, foi um dos comandantes da famosa Coluna (que acabou ganhando o seu nome) que deu um baile nas forças do governo, com seus cerca de 1.200 homens (e mulheres) a percorrer de norte a sul o território brasileiro. Tornou-se comunista por força de suas ideologias: foi sempre um homem preocupado com o povo, com a miséria do povo, com a submissão do povo a governos submissos a potências estrangeiras. Perseguido, preso e exilado. Essas três palavras definem, talvez, a vida pública desse grande brasileiro. Luís Carlos Prestes, o nome que fazia e ainda faz arrepiar a gentalha da direita e, principalmente, os militares da direita. Desmistifiquemos a palavra COMUNISMO: se o Partido Comunista, desde suas origens na década de 40 até há alguns pregava a revolução armada, isso já não faz parte de seu ideário. E a luta armada tinha sua razão de ser, porque de armas não mão é que se governou esse País na maior parte de sua história republicana. O povo foi condicionado a votar como gado, desde a fundação da República, que não passou de um golpe de estado, em 1889. Daí até os dias de hoje, há sempre um milico de olho no poder, para tutelar o povo. Ou civis que impõem ditaduras, com a devida bênção militar. E foi contra essa corja de usurpadores (que ainda estão encastelados no poder e, cada vez mais, assenhoreiam-se do poder atual, comandado por um “capitão” fascistoide) é que lutou a vida inteira Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, sem dúvida um herói brasileiro, muito mais do que muitos e muitos militares condecorados e estrelados. Sua longa vida (morreu aos 92 anos) foi complexa e está o seu pensamento e a evolução desse pensamento ligados para sempre à história política brasileira do século XX. Deixou um exemplo de denodo e de honradez, e pode-se dizer que foi, sim, comunista, com muito orgulho. Um herói, sem dúvida, semelhante aos heróis de ficção, mas como a vida real é muito diferente, nosso herói não tem o final feliz: morreu praticamente isolado, embora ainda lutasse por eleições diretas e participasse ativamente da vida pública nos finais dos anos 80, quando o País experimentou, pela primeira vez, depois da ditadura, eleger um presidente da república e escolheu a triste figura de Collor de Melo. Mergulhei durante muitos dias na vida de Luís Carlos Prestes, para conhecer não só sua trajetória, mas, principalmente, suas ideias, neste longo relato muito bem escrito e muito bem fundamentado. Volto, agora, à ficção, na qual, quase sempre, o mocinho vence no final, beija a mocinha, vive feliz para sempre; na ficção em que os bandidos são exemplarmente punidos e não, como na vida real, ganham eleições e nos governam. Um grande livro, para uma grande vida, sem dúvida.


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Sobre heróis e tumbas, Ernesto Sábato


Sobre heróis e tumbas, Ernesto Sábato



Uma obra-prima, sem dúvida. Um romance de múltiplos focos narrativos, em que presente e passado se entrelaçam para traçar um retrato da Argentina dos anos 50 com personagens históricos de seu passado de lutas pela independência. A história já começa com o anúncio publicado na imprensa da morte da protagonista, a jovem Alejandra que mata o pai e põe fogo na casa e em si mesma. A primeira parte, portanto, narra a paixão de Martín, de apenas dezessete anos, por Alejandra, seus encontros e desencontros, e a misteriosa vida da jovem apenas um ano mais velha, mas já tendo uma vivência torturada e tortuosa, de uma família de antigos combatentes das lutas da independência e familiares com tradição de loucuras e desatinos. Um segundo foco é a narrativa de Fernando, pai de Alejandra, um homem atormentado por visões, que persegue e se diz perseguido por uma misteriosa e poderosa Seita de Cegos. Um grande momento de delírio e de encontro da personagem com seus fantasmas. Um terceiro foco tem o ponto de vista de Bruno, um apaixonado pela mãe de Alejandra e sua relação com a família da moça. Toda a narrativa é mesclada com fatos da história argentina, em que uma coluna de soldados se desloca em fuga para o norte, para a Bolívia, para que seu comandante não seja morto e, após a sua morte, a condução de seu cadáver através da Cordilheira dos Andes, para que ele não seja capturado e tenha sua cabeça exposta por seus inimigos em praça pública. Enquanto isso, Buenos Aires dos anos 50, com seus tipos característicos, seus bares, sua música, seu futebol, vive e pulsa ao longo de toda a narrativa. Não é um romance otimista, já que ressumbra a visão trágica que tem o autor em relação à vida, mas o final parece apontar para uma espécie de esperança nas regiões remotas da Terra do Fogo, como se a redenção do homem pudesse acontecer através de uma espécie de fuga, não a fuga da realidade, mas a através da busca de si mesmo, de suas raízes e de sua história, por mais terrível que ela seja. Sem dúvida, uma obra-prima.


terça-feira, 21 de setembro de 2021

Jane Eyre, Charlote Brontë

 Jane Eyre, Charlote Brontë


A chamada era vitoriana está toda lá, neste romance com pinceladas góticas, que trata, em primeiro lugar, do amor incondicional e, em segundo lugar, da manutenção de princípios rígidos de moral e de conduta. Jane é a protagonista que conta em primeira pessoa sua trajetória de órfã (um quase clichê da literatura romântica, mas não só), enjeitada pela madrasta e mandada para uma escola de meninas, como muitas que existiam na Inglaterra da primeira metade do século XIX, cuja função era preparar as moças sem família para terem uma educação rigidamente convencional, voltada para algumas matérias específicas que as preparem para servirem depois como preceptoras e governantas nas casas da alta burguesia inglesa, com seus casarões imensos e uma grande quantidade de empregados. Uma burguesia rica e quase sempre ociosa, que tem na herança de seus antepassados, o conforto e a grandeza atual, sem perceber que uma nova ordem social começa a despontar e sua decadência será lenta, gradual, mas inexorável, com o surgimento de uma nova burguesia capitalista. Assim, nossa heroína, que para essa instituição vai aos dez anos de idade e ali passa oito anos de sua existência, adquire essa casca rígida de princípios inabaláveis que a vão levar da condição de governanta a noiva do ricaço burguês Edward Rochester e, depois, a quase mendiga e faminta a vagar pelas estradas, ao descobrir que seu noivo já era casado com outra mulher, uma louca que vive nos desvãos de Thornfield, a imensa casa que terá um final trágico. Várias reviravoltas acontecem na vida de Jane, até o desfecho final (para o qual não vou dar spoiler, embora seja uma história de muitos conhecida), quando, é mais uma vez a crença em princípios rígidos e numa espécie de destino traçado por ser superior que leva a protagonista a tomar suas decisões. Sem dúvida, um dos grandes romances da era romântica, com todo o sabor de drama e melodrama, de sofrimento e redenção que foi capaz de criar esse movimento literário que reinventou o amor e levou-o a paroxismos. E ao mesmo tempo, fez o ser humano voltar-se para si mesmo e buscar não só a redenção pelo amor ou pela fé, mas também pela justiça social, ao descrever e cantar com tanta profundidade as mazelas humanas.


sábado, 18 de setembro de 2021

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, Maya Angelou

 Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, Maya Angelou



“Ao cabo, só existem ideias velhas caiadas de novo”, dizia nosso Machado de Assis. Talvez todas as histórias já tenham sido contadas, talvez. Isso não importa. Mais do que uma trama, uma história, sempre está em jogo o modo como ela é contada, com maior ou menor perícia. Como duas toalhas bordadas por mãos diferentes: uma é bela, porque está bem feita; a outra é obra-prima, porque tem o toque do gênio nos dedos que a bordaram. Então pense neste cenário: primeira metade do século XX, uma garota negra nos Estados Unidos. Enredo óbvio: pobreza, abandono, abuso, luta pela sobrevivência e... racismo. Pois, é praticamente esse o roteiro da história da garota negra e seu irmão que chegam no começo dos anos 30 a uma cidadezinha de Arkansas, para viver com a avó, dona de um armazém para negros. Mãe envolvida com uma carreira de artista e com muitos maridos e amantes; pai, ausente. E agora, a avó protetora, que provê, no entanto, a falta dos pais e a subsistência das duas crianças. Que não escapam, no entanto, ao tentarem viver de novo com a mãe, do velho problema do padrasto abusador da menina que mal saíra da infância. Bem, fiquemos por aqui, para não contar a história toda, já mais ou menos vislumbrada, nessas poucas linhas. Como disse, se a história não é nova, a forma de narrar da autora nos leva ao prazer de dizer: ah, quando crescer, quero escrever como essa mulher Negra (com letras maiúsculas, como ela usa para se referir a todos os Negros). Sim, estamos diante de uma obra prima, numa narrativa que nos enreda não só pela história que, em si não é improvável, mas principalmente pela elegância do estilo e pela visão de uma sociedade injusta, contra a qual ela se insurge sem piedade e também sem autopiedade, numa análise de quem sabe do que está falando e tem autoridade, capacidade e, sobretudo, agudeza de observação para nos enredar. Sim, Maya Angelou sabe por que o pássaro canta na gaiola, e o diz com a precisão e a beleza cirúrgicas de uma grande escritora e uma grande mulher (para quem chegou até aqui, sugiro que busque por sua biografia).


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

A teus pés, Ana Cristina César

A teus pés, Ana Cristina César



A obra revela o olhar de uma escritora que se colocou na vanguarda de seu tempo e marcou definitivamente a moderna poesia brasileira. Textos curtos, poemas fragmentados, cartas, páginas de diário criam um jogo com o qual a poeta brinca e celebra a vida. Ana Cristina Cesar quebra regras, ousa além da frase, mistura sombra e luz, não hesita em se apropriar da fragmentação do mundo para, em seguida, recriar a seu modo imagens que sensibilizam o leitor. 


Texto extraído do site LÊLIVROS: 

http://lelivros.love/book/baixar-livro-a-teus-pes-ana-cristina-cesar-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/

domingo, 12 de setembro de 2021

Barteleby, o escriturário - Herman Melville

 Barteleby, o escriturário - Herman Melville



Há livros que se leem com grande prazer. Há livros que causam um grande impacto em nossa vida, em nosso pensamento. Há livros que têm personagens incríveis, que permanecem por muito tempo em nossa memória. Todos, no entanto, em algum momento deixam de ser lembranças vívidas e passam ao terreno das boas recordações, recordações esmaecidas embora prazerosas. Mas há livros e personagens indeléveis: vieram para ficar. E acredito que Bartleby, esse escriturário de um pequeno texto de Melville, quase um conto alongado, é um desses personagens. O mais incrível é que Bartleby tem uma existência praticamente nula. Sua força está em praticamente não existir, e sim em resistir. “Prefiro não fazer”, o seu mantra de desobediência passiva, certamente ressoa e permanecerá para sempre em nossa memória. Expliquemos: Bartleby é contratado pelo narrador, proprietário de cartório, em Wall Street. Sua função: fazer cópias de documentos, como aliás é a função dos outros dois personagens do livro. Mas, num determinado momento, ele, sempre arredio, silencioso e apenas seguidor das ordens do patrão, deixa de cumprir aquilo que não lhe é devido, entregando-se cada vez mais a um isolamento que angustia o dono do cartório que, no entanto, movido por não se sabe se por compaixão, medo, interesse, curiosidade, não o despede. E Bartleby – o mistério – continua ali, até que, um dia, sem coragem de mandar embora aquele ser imóvel e imobilizado, que parece morar no próprio local de trabalho, o dono do cartório resolve mudar-se daquele local cercado de edifícios, mal ventilado, e deixar para trás o empregado, como se fosse apenas um móvel sem mais utilidade. Acossado, no entanto, pelos antigos vizinhos, que lhe cobram responsabilidade, vai encontrar o empregado numa prisão, agora não apenas mudo, mas também anoréxico, completamente alheado do mundo. Bartleby, com seu mutismo, sua não existência e sua resistência, talvez simbolize todos os “estranhos” do mundo, os indivíduos inadaptáveis, e também aqueles que resistem ao sistema e a ele se opõem de forma passiva, numa luta surda e muda, mas de grandeza e ascetismo. Há ecos de Bartleby em Gandhi? Não sei. Sei que, na literatura, há muitos personagens icônicos, filhos, netos, tetranetos de Bartleby, como o Gregor Samsa de Kafka, ou o Quincas Berro d’Água, de Jorge Amado, para citar apenas dois, temporal, geográfica e culturalmente distantes, ambos igualmente inesquecíveis.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

O livreiro de Cabul, Âsne Seierstad

 O livreiro de Cabul, Âsne Seierstad



Sultan Khan é o livreiro de Cabul. Classe média quase alta do Afeganistão, um homem que já leu muitos livros, que negocia livros, que viaja a vários países em busca de livros para suas livrarias. Teve problemas com o Talibã, que queimou seus livros, quando dominou o país entre 1996 e 2001. É liberal, na política. Só na política. Agora, depois que o Talibã foi alijado do poder pelos Estados Unidos, que caça o terrorista Bin Laden em cada canto das longínquas províncias e cavernas do país, tem uma situação estável, embora viva numa casa pequena com uma família numerosa, a mãe, os irmãos, as duas esposas, os filhos e sobrinhos. É com essa família que a autora do livro convive durante três meses, na primavera de 2002. Registra o dia a dia dos componentes da família. Conta histórias ouvidas em longas conversas com as mulheres da casa. Acompanha-as em seus afazeres e constata que, apesar da mudança do regime, Sultan, embora se diga um liberal que até incentive que as mulheres da casa não mais usem a burca, ainda conserva todo o machismo patriarcal sedimentado ao longo dos séculos de doutrinação islâmica. As mulheres que, sob o regime do Talibã não podiam frequentar a escola, agora podem fazê-lo, mas continuam dominadas e escravizadas no regime doméstico. Não têm voz, não têm domínio sobre suas vidas. Não podem escolher o homem com quem queiram se casar: os casamentos continuam sendo arranjados pela família, de acordo com os interesses do clã, principalmente interesses econômicos e de manutenção da situação vigente dentro do ambiente familiar. Aliás, os homens também não têm o direito de escolha, devem obediência ao chefe do clã, ao pai ou ao irmão mais velho. Os noivos só se conhecem no dia da festa de noivado e raríssimamente obtêm licença para um mínimo de convivência. No entanto, homens mais ricos conseguem até mesmo dormir com a noiva antes do casamento, com o suborno dos sogros, contrariando a lei, a lei islâmica. Que proíbe o sexo antes do casamento, para homens e mulheres, que proíbe bebidas alcoólicas e drogas, que proíbe... a lista é grande. E a autora vai desfiando histórias de pequenas e grandes contravenções da lei islâmica; de tristezas e decepções por amores contrariados; de casamentos arranjados; de mulheres que têm muitos filhos, para se valorizarem; de filhos que são doados para mulheres que não conseguem parir; de vinganças, até com o assassínio, por pequenas traições; de pequenos furtos que, descobertos, levam o ladrão para a prisão por longos anos e a família à miséria absoluta; de viagens pelo interior do Afeganistão, em regiões conflagradas por conflitos étnicos e por disputas de poder por clãs inimigas, todas, no entanto, colaboracionistas dos espiões e dos soldados dos Estados Unidos... Enfim, o retrato de um país paupérrimo, onde poucos conseguem trabalho, destruído por anos e anos de guerras e revoluções, mergulhado no fundamentalismo islâmico que nos leva a pensar que, apesar de todas as mazelas do cristianismo ocidental, temos nós a sorte de ter um Cristo como o profeta máximo e não Maomé, cuja doutrina continua a mesma, com todos os seus princípios de há mais de quinhentos anos, mais aterrorizante que todos os terroristas que se explodem para matar dezenas, centenas de infiéis, como se a vida humana não valesse absolutamente nada. O islamismo fundamentalista foi mitigado, mas não eliminado pela ocupação militar estadunidense. E pior: quase vinte anos depois, de novo o Afeganistão mergulha no terror sanguinário do Talibã, cujas vítimas principais são as mulheres, para mais um ciclo de miséria, de ódio, de assassinatos e escravização de todo um povo a um grupo de terroristas que, sob a inspiração de um livro “sagrado” impõe sua lei, sua vontade e seus costumes bárbaros, como se fossem donos da vida e senhores da morte.


segunda-feira, 6 de setembro de 2021

A vegetariana, Han Kang


A vegetariana, Han Kang



Da Coreia, esse livro denso, complexo, mas que se lê com prazer e tensão. Divide-se em três partes, três pontos de vista, para contar a história de Yeonghye. A primeira parte é narrada pelo marido, Jeung, um homem comum, que gosta de coisas simples e, por isso, escolhe por esposa uma mulher que não é feia nem bonita, que não é alta nem baixa, que é o exemplo da média da mulher coreana, Yeonghye. Levam uma vida comum, sem paixões e sem brigas, até que um dia, encontra a mulher na cozinha jogando no lixo toda a carne estocada na geladeira e dizendo que, a partir daquele dia, não mais comeria carne, porque tivera um sonho, e é só isso o que ela diz como motivo para sua decisão. Tudo muda na vida do casal. Até que num fatídico almoço na casa da irmã de Yeonghye, o pai, um militar reformado, quer obrigar a filha a comer carne e acaba agredindo-a, o que a leva a cortar os pulsos com uma faca, na frente de todos. Sobrevive. O marido pede o divórcio. Vive, agora, sozinha num pequeno apartamento. A segunda parte é narrada do ponto de vista do marido da irmã, um artista plástico que está em crise de criatividade. Ao dar banho no filho de cinco anos, pergunta à esposa por que o menino ainda tem uma mancha mongólica nas nádegas. Ela lhe diz que isso pode ou não desaparecer, que sua irmã, Yeonghye, tinha essa mancha até os vinte anos e deve tê-la até hoje, quando já tem mais de trinta. O marido entra num delírio erótico de desejo pela irmã da esposa e recomeça a ter ideias para novas obras, mas com a participação dela. Isso leva a uma tragédia, que vai se refletir de forma visceral na terceira parte da narrativa, agora do ponto de vista da irmã. Paremos por aqui, para não antecipar os acontecimentos ao leitor. Não é uma longa história, tem apenas 162 páginas de nos tirar o fôlego. Não cai a autora em psicologismos, mas abre pequenos clarões do passado das irmãs, que nos permitem vislumbrar os motivos que levaram Yeonghye ao estado a que chegou. A violência implícita – muito mais terrível – entrega-nos uma história de quase terror, de que são vítimas tantas mulheres pelo mundo afora, motivações de traumas ocultos por crimes que nunca serão punidos. Enfim, um livro surpreendente, não só pelo exotismo, para nós, do ambiente e de sua origem, a Coreia, mas principalmente pela maestria com que a autora nos conduz pelos caminhos de uma história complexa, tensa e, sobretudo, humana.

 


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O jardim secreto, Frances Hodgson Burnett


O jardim secreto, Frances Hodgson Burnett



Ao estudar literatura, aprendi que a ficção cria uma espécie de mundo paralelo, com leis próprias e coerência interna que, refletindo o mundo real, leva-nos, através da imaginação e da reflexão, a compreender melhor o ser humano e o próprio mundo em que vivemos. Por isso, o seu poder. Por isso, ao mergulhar nesse mundo “inventado”, aceitamos que as pessoas viagem no tempo, penetrem por espelhos mágicos, voem pelo espaço sideral. Aceitamos suas regras e nossa imaginação preenche os chamados “vácuos sintagmáticos” que, mesmos nos filmes ou histórias desenhadas, tudo ou quase tudo nos revelam, também contêm. Se, na vida real, ao sair de casa para ir até a padaria da esquina, precisamos que nossos pés pisem a calçada, um passo após o outro, num filme, por exemplo, vemos a personagem em casa e, num corte abrupto, essa mesma personagem em outro lugar. Esse “vácuo” é preenchido pela nossa imaginação: ela pode ter ido a pé ou num possante carro movido a energia atômica ou voando. Enfim, tudo isso para dizer que mergulhei, depois de muitos anos lendo apenas a chamada literatura “adulta”, num romance voltado para jovens. E que delícia perceber que minha sensibilidade estava intacta para acompanhar a aventura de três crianças, em sua trajetória de busca, de crescimento, de conhecimento. A primeira, uma garota de 10 anos, nascida e criada na Índia, sob extremos cuidados que a levam a ser egoísta, arrogante e tirana, mas, ao perder os pais, é levada para a Inglaterra, sob a tutoria de um estranho tio que vive numa imensa casa perdida no meio de bosques, jardins e de um pântano, um tio totalmente ausente, que tem um filho, e essa é a segunda personagem, de 10 anos, cuja mãe morreu ao nascer e é criado afastado do mundo, isolado de tudo, como destinado a morrer cedo, por condições físicas cridas e aceitas como inevitáveis, também ele uma criança irascível, arrogante e egoísta. A terceira criança é um pré-adolescente de 13 anos, criado livre pelos bosques e pelo pântano, totalmente integrado ao ambiente, a ponto de conversar com os bichos e saber tudo de árvores e plantas, oriundo de uma família de 12 irmãos. São esses três amigos improváveis que nos vão levar para um jardim secreto que mudará suas vidas para sempre. E mudará também nossa percepção de mundo, para a crença em valores que, num livro escrito em 1909, surpreendem, como o respeito pela natureza. Sem dúvida, uma leitura que se recomenda que todos os pais e professores sugiram aos jovens, pois, através da ficção, desse mundo paralelo que nos leva a refletir sobre nós mesmos, eles farão, como eu, adulto e já corrompido por tantas vicissitudes, a deliciosa viagem de descobertas e de prazer na leitura de um bom livro, de um ótimo livro, o melhor parceiro para as horas, tão necessárias, quando estamos a sós com nós mesmos.