sexta-feira, 5 de abril de 2024

O jardim de cimento, Ian McEwan

 

O jardim de cimento, Ian McEwan



“Não matei meu pai”: é a frase inicial de Jack que, na última linha do livro, nos fala, de forma quase abrupta, da chegada da polícia. Entre essas duas afirmativas, há toda uma história narrada em primeira pessoa por esse jovem de aproximadamente 15 anos, sobre os acontecimentos de sua família após a morte do pai, ao fazer um grande esforço físico para cimentar um caminho no jardim da casa onde ele mora com a mãe e mais duas irmãs, Sue, de 13 anos, Julie, de 17 e o irmão excepcional Tom, de 6 anos. Algum tempo após a morte do pai, a mãe, após uma longa enfermidade, também morre. Os quatro irmãos ficam sozinhos na enorme casa isolada num subúrbio qualquer. De Londres? Não há nenhuma indicação, apenas o fato de que as casas ao redor foram derrubadas para a abertura de uma rodovia cujas obras ainda não começaram. O sentimento de solidão e isolamento percorre a narrativa detalhada da vida dos irmãos: suas rotinas, suas incertezas, suas brincadeiras, suas brigas e rixas próprias de crianças e adolescentes, num crescendo de angústia que toma o leitor, mas não as personagens. Tudo é narrado de forma leve, até com uma certa irresponsabilidade. São jovens e aproveitam como podem o sentimento de liberdade que desfrutam, isolados naquela casa, até que chega um elemento estranho: um jovem, Derek, namorado de Julie, de 23 anos, jogador de sinuca e, na visão dos moradores da casa, muito rico. A estrutura familiar estranha e um tanto disfuncional criada por eles vai pouco a pouco desabando, sem que eles se deem conta, criando um suspense existencial e complexo que termina... bem, termina com a chegada da polícia. Por quê? O que eles fizeram? E por que o fizeram? Tudo fica para a imaginação do leitor, diante de mais uma pequena obra de impacto desse grande escritor moderno da velha Inglaterra, Ian McEwan, nesse romance de cores góticas, num enredo sem qualquer concessão a emoções ou ao lirismo.

terça-feira, 2 de abril de 2024

Traficantes evangélicos – quem são e a quem servem os novos bandidos de deus, Viviane Costa



Traficantes evangélicos – quem são e a quem servem os novos bandidos de deus, Viviane Costa


O fenômeno do crescimento das igrejas pentecostais, ou evangélicas, no Brasil, é conhecido por todos. Há muitas explicações para isso, desde a mudança de mentalidade de uma parcela do povo, que era católico e se desencantou com a Igreja, até a agressividade de pregação dos tais “pastores evangélicos”, com sua capacidade de acolhimento e convencimento. Um fenômeno que se espalha por todo o país, mas que se torna mais evidente em dois estados: Rondônia e Rio de Janeiro, principalmente a cidade do Rio, antes reduto de um sincretismo entre catolicismo e as religiões afro, principalmente nos morros e nas favelas, ou comunidades. E não é novidade para ninguém que os traficantes sempre se associaram a esse sincretismo, como forma de se assimilarem às populações e não serem repelidos por elas. Portanto, a nada a estranhar se, a partir dos anos 90, com a ascensão do pentecostalismo, também eles pouco a pouco migrassem para as novas práticas religiosas, pelos mesmos históricos motivos. O que este livro – Traficantes evangélicos – investiga é justamente como o surgimento de facções criminosas ligados aos cultos pentecostais modificou o comportamento das chamadas comunidades. É obvio que a carência dessas populações, abandonadas pelo poder público, torna-as reféns do poder paralelo exercido pelas organizações criminosas. Não importa que essas organizações adotem essa ou aquela crença religiosa: os métodos de dominação, de cooptação e de uma certa “proteção” ou de uma falsa impressão de segurança que os bandidos oferecem aos moradores continuam os mesmos. Quando substituem símbolos, outrora ligados às religiões de origem africana, por símbolos do novo cristianismo pentecostal, observa-se que isso é apenas uma tática de aproximação, de convencimento dessa população de que as “situação mudou” sob a bandeira de Israel, hasteada no alto do morro, ou sob a proteção de Jesus, que não admite que se venda mais a droga mais barata, o crack. Estamos falando do conjunto de favelas no norte da cidade que se constitui no Complexo de Acari, objeto de estudo da autora. Não sou crítico e não gosto de fazer crítica dos livros que aqui comento, mas estranho, e muito, quando a pesquisadora descreve com uma certa satisfação ufanista (nas entrelinhas) o fato de a bandeira de Israel tremular bem no alto do morro, e até publica uma bela foto do evento. Também estranhei quando diz que a pesquisa para o livro levou-a humanizar a figura do traficante-mor de Acari, um tal de Peixão, cujo nome não vou dizer aqui, mas está no livro. Ora, os traficantes também são seres humanos, o que nem sempre é reconhecido pelas polícias assassinas que sobem às comunidades com o único intuito de matar, de acordo com as políticas dos governos neopentecostais que – pasmem! – professam a crença de que “bandido bom é bandido morto”, algo paradoxal, na minha opinião. E só para encerrar, a autora é doutora em sociologia, com vários cursos, portanto altamente qualificada para ter feito a pesquisa que fez, e é também pastora evangélica na comunidade de Acari, o que lhe dá o lugar de fala, por viver e conviver com os moradores, principalmente os que frequentam, com certeza, os seus cultos. Um pós-escrito: embora se refira à perseguição que os neopentecostais fazem aos terreiros, aos símbolos e às imagens dos cultos de origem afro, não há no livro nenhuma palavra de condenação a tais atos, apenas a constatação objetiva de que o Rio de Janeiro é a cidade onde mais se pratica o preconceito religioso, no Brasil. Enfim, um livro para ler e refletir muito mais sobre as muitas perguntas que ele não responde...

sexta-feira, 29 de março de 2024

A casa verde, Mario Vargas Llosa



A casa verde, Mario Vargas Llosa



A isolada e pequena cidade de Piura, no Peru, recebe um dia a visita de um cavaleiro, dom Anselmo, cuja capacidade de tocar harpa e cuja simpatia vai aos poucos conquistando a amizade de todos os seus cidadãos, mesmo desconhecendo sua origem e seus interesses. Um dia a população desperta com a movimentação de materiais de construção e de operários e acompanha, curiosa, num local um pouco afastado da cidade, perto da ponte, a construção de uma casa de dois andares dividida em vários cômodos e depois toda pintada de verde. Aos poucos, os habitantes do vilarejo descobrem que a casa nada mais é do que um prostíbulo, cujo movimento cresce dia a dia. Frequentam-no os militares, os corruptos, os criminosos e uma imensidão de seres em busca de companhia, de prazeres, de boa música e de comida. Torna-se a Casa Verde motivo de desespero para uma parte conservadora da cidade, liderada pelo padre da paróquia local. A história desse prostíbulo perdido no interior do país, já quase em meio à selva amazônica, serve de pretexto para o autor nos levar a uma viagem complexa pela vida de dezenas de personagens, desde as freiras de um convento próximo e suas noviças, até os contrabandistas de peles de animais e de látex; as prostitutas e os políticos corruptos, os indígenas e os preconceitos relacionados à sua condição de “selvagens”, num mosaico fantástico em que se misturam presente, passado e futuro; em que se entrelaçam as vozes do narrador e das personagens, num cipoal barroco de intrincadas relações, num fluxo contínuo que exige do leitor a atenção de quem vai compondo aos poucos um quebra-cabeças literário de tirar o fôlego. Não é, por isso, um romance de leitura fácil, mas quem se aventura em suas páginas encontra a prosa rica e complexa de um dos maiores nomes da literatura latino-americana.


terça-feira, 19 de março de 2024

De moto pela América do Sul, Ernesto Che Guevara

 

De moto pela América do Sul, Ernesto Che Guevara


Confesso que tenho pouquíssimos ídolos dentre os líderes mundiais de todos os tempos. Um deles, sem dúvida, é Che Guevara. Por sua vida, por seus ideais e por suas ideias. Quando me propus a ler seu famoso diário, em forma de narrativa, é óbvio que não espera encontrar o mito, o guerrilheiro que lutou ao lado de Fidel Castro para libertar Cuba nem o ministro e depois o homem que abandonou tudo para levar seus ideais de liberdade à África e à América do Sul, até ser covardemente morto numa emboscada na Bolívia. No entanto, apesar da pouca idade – tinha apenas 24 anos, ao empreender a longa viagem da Argentina até a Venezuela, a bordo de uma motocicleta, com seu amigo Alberto – lá está o embrião do homem idealista que deu sua vida pela liberdade. A narrativa é linear, sem digressões literárias, contando os perrengues por que passaram os dois jovens nessa jornada, relatando fatos e comentando aqui e ali a situação das pessoas que viviam (e vivem ainda) em situação de miséria e de dificuldades, nas aldeias e pequenas cidades andinas, principalmente os povos originários daquelas regiões do Chile, da Colômbia, da Venezuela e da região amazônica. O interesse maior dos dois estudantes de medicina se concentra na leprologia, quando essa doença tinha ainda o estigma do abandono e do preconceito. Há em toda a narrativa um olhar crítico e ao mesmo tempo humano, ressaltando sempre a multiplicidade de aspectos tanto geográficos quanto humanos da América retratada nos diários e a receptividade e acolhimento das pessoas que eles encontraram em todos os lugares por que passaram. Há muitas lacunas, como, por exemplo, a falta de recursos financeiros da dupla e de como, muitas vezes, conseguiram dinheiro para prosseguir viagem; também não nos relata o motivo da ausência – lamentada – do companheiro Alberto Granado, na parte final da viagem. A narrativa se encerra na selva amazônica, quando ele chegou a entrar em território brasileiro, não havendo qualquer relato da esticada até Miami, nos Estados Unidos, onde permaneceu por quase um mês, fato relatado por seu pai, num apêndice.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Big Sur, Jack Kerouac

 Big Sur, Jack Kerouac


Impossível separar a ficção, ou pretensa ficção, de Kerouac de sua vida pessoal, marcada, principalmente pelo alcoolismo. Neste livro, Big Sur, o autor volta a escrever sobre seus temores e seus fantasmas, durante o período em que ele passou em retiro numa cabana do amigo e poeta beat Lawrence Ferlinghetti, na região de Big Sur, na costa da Califórnia. Na verdade, ele relata dois períodos: no primeiro, sozinho, convivendo apenas com suas neuroses e sua mente conturbada pelo álcool; no segundo, ele volta à cabana em companhia da amante Billie e seu filho, uma criança apegada à mãe e muito birrenta, e também um casal de amigos. A decadência física e mental do autor é retratada por ele mesmo na forma de uma escrita até mais radical do que no romance que o consagrou, On the road: um processo pensadamente caótico, em que o fluxo da consciência se abre para todos os seus dramas pessoais, suas dúvidas existenciais, seus temores e até mesmo uma certa religiosidade confusa e mal resolvida. Muitos nomes da geração beat comparecem na narrativa, com nomes inventados, como Neal Cassady (Cody Pomeray), Carolyn Cassady (Evelyn), Gary Snider (Jarry Wagner), Lenore Kandel (Romana) etc. Em seus delírios, na busca de algo que ele não sabe mais o que é, quando não mais tem domínio de si mesmo, perdido em litros e litros de vinho e outras bebidas, há uma verdade profunda e corajosa, até mesmo aterrorizante, na sua capacidade de autoflagelação literária, sem meias palavras, num dos documentos mais audaciosos da capacidade de um escritor de se desnudar diante de seus leitores, talvez só comparável a Henry Miller, em sua trilogia da Crucificação Encarnada (Sexus, Plexus e Nexus). Ao final do livro, há um longo e também caótico poema onomatopaico e cheio de invenções léxicas que ele escreveu durante seus dias de solidão em Big Sur, para dar sua interpretação do mar, presença constante na obra, assim como o riacho onde ele bebe água, muita água. A água, do mar e do riacho, como uma espécie de metáfora de sua tentativa de se purificar. Sem dúvida, um livro para se ler com a comoção de encontrar não só um grande escritor, mas principalmente um ser humano complexo e extremamente corajoso em sua prosa confessional.

sexta-feira, 8 de março de 2024

O gigante enterrado, Kazuo Ishiguro



O gigante enterrado, Kazuo Ishiguro


A literatura inglesa prodigalizou obras que abordam os tempos do lendário Rei Arthur. “O gigante enterrado”, desse ótimo escritor inglês de origem nipônica, Kazuo Ishiguro, bebe nesta fonte inesgotável, para narrar uma deliciosa história do ciclo arturiano, abordando um tema bastante interessante: a perda coletiva da memória. Vamos a um resumo bem rápido do enredo: numa aldeia medieval, um casal de idosos tem a intenção de viajar para uma terra mais ou menos distante, em busca do filho, de cuja memória eles guardam apenas pequenos traços. Aliás, ninguém naquelas terras guarda lembranças dos acontecimentos, mesmo os mais recentes. Um mistério ocasionado, na visão dos aldeões, por uma espécie de névoa que perpassa a região e apaga da mente das pessoas todas as suas memórias. Na corajosa aventura de sua viagem, o casal de idosos chega a uma aldeia vizinha, onde conhece um cavaleiro que tem uma missão, a de matar uma dragoa que, dizem, seria a responsável por essa névoa. E também um garoto que havia sido sequestrado pelos ogros e, resgatado, voltou com uma ferida de mordida na barriga, o que o torna maldito pelos aldeões e deve ser morto. Para salvá-lo, o tal cavaleiro aceita levá-lo em sua jornada que ele deve reiniciar, agora acompanhando o casal de idosos, para protegê-los. A partir daí, acompanhamos a jornada dos quatro, em várias aventuras, até o desenlace final da história. Então, meus caros leitores e leitoras destas linhas, embarcamos no mundo fantástico e lírico das aventuras instigantes do ciclo arturiano. Embora, à época da história, o lendário rei já estavisse morto, sua influência e o sopro da dragoa, resultado de um feitiço de Merlin, povoam a narrativa até o final. Sem dúvida, uma leitura deliciosamente fácil, que traz, porém, uma mensagem bastante clara de que a memória dos fatos passados nem sempre é a melhor conselheira para os acontecimentos do presente, ao abordar temas como o envelhecimento e a permanência do amor, a guerra e, principalmente, o tema central, a memória. Para ler com prazer e, se você tiver filhos ou filhas adolescentes, pode ter certeza de que eles também apreciarão essa narrativa.

 

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O olho mais azul, Toni Morrison

 

O olho mais azul, Toni Morrison


O belo está no olho de quem o vê, e não no objeto contemplado. No entanto, as sociedades humanas tendem a estabelecer padrões de beleza principalmente para as pessoas, num autoritarismo funesto e excludente, causando sérios transtornos a todos aqueles que fogem a esse padrão. No romance de Toni Morrison, Pecola Breedlove é uma garota negra que deseja ardentemente ter olhos azuis, como forma de ser aceita pela sociedade branca e superar o conceito de que é feia por ter a pele mais escura e o cabelo muito crespo. O olho azul num rosto negro inverteria a lógica do olhar para o que se considera belo, numa metáfora do que pode a opressão da norma e do preconceito causar numa pessoa mais do que vulnerável, sendo criança, negra e do gênero feminino, numa sociedade machista e preconceituosa. Dito isto, voltemos ao livro: já a primeira página nos revela praticamente toda a história. Duas irmãs, também negras, plantam sementes de cravos-de-defunto como forma de ajudar de alguma forma mágica a menina de doze anos, Pecola, que vai ter um bebê de seu pai. Mas, por terem enterrado muito fundo as sementes, as flores não brotarão. O bebê de Pecola vai morrer e também o pai do bebê, o pai de Pecola. Daí em diante, o livro vai nos revelando todo o contexto da vida da garota que desejava ter a cor de seu olho mudada para o azul, e somente o que há de cronológico na história é a passagem das estações, porque o painel de sofrimentos e de dificuldades da menina e de todos os demais personagens vai se compondo aos poucos, em histórias e dramas que nos levam, através da linguagem quase sempre poética e, em certos momentos também coloquial, da autora, a uma narrativa impactante, de força literária e de aprofundamento nas raízes do preconceito e da discriminação, numa sociedade do interior dos Estados Unidos, na década de 1940. Devo dizer que não levei muito em conta, incialmente, o fato de ser a autora muito elogiada pelo ex-presidente Barak Obama, mas confesso que ele tem muita razão e bom gosto, pois realmente, dentre os inúmeros autores e autoras da negritude que tenho lido com imenso prazer, Toni Morrison ganha, em minha modesta opinião, status de escritora de primeira linha, em todos os sentidos. Sem dúvida, uma obra prima.