quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

A redoma de vidro, Sylvia Plath

 A redoma de vidro, Sylvia Plath


Ao se matar aos 31 anos, em 1963, Sylvia Plath deixou uma consistente obra poética, de força confessional profunda e comovente. E um só romance, este “A redoma de vidro”, que revela uma prosa também consistente de uma escritora que teria um futuro promissor. Com pinceladas autobiográficas, narra a também breve trajetória de Esther Greenvood, uma jovem dos subúrbios de Boston que se deslumbra com um possível sucesso no mundo complexo de Nova Iorque, na redação de uma revista feminina e numa intensa vida social, num verão do pós-guerra, durante o governo de Eisenhower. Esse mundo deslumbrante de glamour e cobranças parece ser o gatilho que detona na jovem uma profunda depressão, que a leva a uma clínica psiquiátrica. Foi durante um verão de 1952 que a autora tentou o suicídio e também foi internada numa clínica psiquiátrica. Portanto, toda a vida da personagem a partir da internação reveste-se de uma verdade baseada numa dolorosa experiência. A protagonista vai aos poucos se distanciando da realidade, ao mesmo tempo em que vê a sociedade da época e seus valores com um olhar ao mesmo tempo amargo e crítico. Seu lento amadurecimento, na passagem da jovem inexperiente para a mulher que vai surgindo dos vários tratamentos a que se submete e das experiências, inclusive sexuais, vamos acompanhando com um misto de prazer e dor, resultante da prosa envolvente da autora. Não posso deixar de me referir, não como possibilidade de qualquer influência mútua, a outra narrativa semelhante, essa de uma autora brasileira, “O hospício é deus”, de Maura Lopes Cançado, também uma pungente história de depressão e internação psiquiátrica. Enfim, Sylvia Plath, neste livro, revela-nos apenas o dedo da grande romancista que poderia ter sido.

sábado, 21 de janeiro de 2023

Eu sou um gato, Natusme Soseki


Eu sou um gato, Natusme Soseki


“Wagahi wa neko de aru”. Assim, no original, apresenta-se o gato sem nome que dá título ao livro: “Eu sou um gato”. Explicar-nos o tradutor – Jefferson José Teixeira – em nota de rodapé: “Das muitas formas de dizer eu em japonês, Soseki optou pelo pronome de primeira pessoa “wagahi”, cujo uso era restrito a políticos, militares etc., e se revestia de certa arrogância”. Exatamente o que caracteriza o gato-narrador: uma certa arrogância e muita, muita ironia e até mesmo sarcasmo, ao desfilar diante de nossos olhos as personagens do livro, revelando todo o cinismo interior de cada um, seu mundo repleto de mesquinhez, mentiras, vaidades e de um total vazio de ideias e de visão de mundo. Esse gato-narrador apareceu num terreno baldio, num dia qualquer do ano de 1905, na cidade de Tóquio. Depois de algumas poucas adversidades, é acolhido por um professor mal-humorado e sem perspectiva de vida, chamado Chinno Kushami. Descobre logo que é superior, em termos de conhecimento, de vida, de filosofia, a esse professor e os vários amigos que frequentam sua casa. Mesmo limitado à visão e à movimentação de um felino, reproduz de forma hilária os diálogos malucos desses seres estranhos, misturando citações de autores, filósofos e artistas tanto ocidentais quanto orientais, num retrato mordaz dos costumes e da mentalidade da Era Meiji (1868-1912), quando o Japão passa por mudanças políticas, econômicas e sociais, que o projetam no mundo como uma grande nação. Uma narrativa longa e lenta, que se deve ler com a mente aberta a todas as ironias do gato e com o prazer de estar diante de um dos maiores escritores japoneses dos dois últimos séculos.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Um coração ardente, Lygia Fagundes Telles

 Um coração ardente, Lygia Fagundes Telles


São dez contos, para degustar o estilo e a verve da grande escritora. No conto que dá título ao livro, um relato “naturalista”, em que um rapaz se apaixona por uma moça, sem saber que ela é prostituta. Também em “Biruta”, a chave ainda é a realista, com a história da relação do menino órfão com seu cão. Já em “Emanuel”, o final é tipicamente surrealista. Em “As cartas”, um suspense de crítica social numa chave quase sarcástica. “Estrela branca” cai de novo no suspense, mas num teor dramático e profundamente humano, com pitadas surreais. “O noivo” brinca com o surreal, com um final aberto e surpreendente, embora o tom seja naturalista. “O encontro” cai no fantástico, no deliciosamente maravilhoso. Enfim, a escrita de Lygia é assim: leva o leitor para mundos de fantasia, para o seu mundo, e nos lega lições de humanidade, de compreensão do ser humano. Faz jus, sempre, mesmo em contos quase despretensiosos, à grandeza de seu nome no panteão dos grandes escritores brasileiros.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Romance de Cordélia, Rosa Lobato de Faria

Romance de Cordélia, Rosa Lobato de Faria


Podia ser um romance picaresco. Podia. Porque tem a estrutura semelhante aos romances em que se descreve um herói popular e malandro a sobreviver numa sociedade corrupta. Com pitadas de humor ou sarcasmo. Sem dúvida, alguns elementos estão presentes: uma heroína que passa por inúmeros perrengues, desde o seu nascimento: feia, depois coxa, desprezada por uma mãe meio amalucada, só encontrando abrigo junto à avó paterna. Paramos por aí, se é possível alguma comparação com o herói pícaro. Mas há outro elemento literário presente: o romance de cordel de tradição lusitana, que tem na narrativa do cotidiano a sua principal inspiração. A narradora, Cordélia, Lili, Guita Coxa ou Concha dos Pobres, conta sua história de dentro da prisão, onde está por um crime que não cometeu, ou diz que não cometeu, como todas as demais prisioneiras. Suas aventuras e desventuras, numa longa trajetória de dores, sofrimentos, enganos, desenganos, em que é sempre passada para trás, têm traços de humor e resignação. Alternam-se com as breves narrativas da vida de outras prisioneiras e também – o que é significativo, em matéria de estrutura romanesca – com a leitura de livros cordelistas que têm sempre o mesmo enredo: uma jovem se casa com milionário, torna-se vítima de elocubrações de invejosas, tem uma filha roubada e é acusada de algum crime; sai da prisão muitos anos depois, disfarça-se de uma bela mulher, reconquista o antigo amante ou marido e se vinga. Com Cordélia, no entanto, esse enredo fica apenas no sonho: sua vida tem altos e baixos, mais baixos do que altos: em todos os momentos em que podia “se dar bem”, com alguma herança, deixa-se enganar resignadamente. Mesmo quando acusada de um crime, aceita a pena e a cumpre resignadamente. Quando sai da cadeia e podia recuperar seus bens, sua casa, resignadamente busca subempregos dos quais é sempre despedida, pelo seu passado de ex-detenta, e sua vida degringola irremediavelmente. Se o final da longa narrativa tem uma descaída para a resignação cristã e para um drama meloso e triste, como uma metáfora da própria “alma, ou melhor, da mentalidade sofredora das mulheres portuguesas, o enredo todo nos encanta pela prosa realmente fascinante da autora. Um livro para se ler com uma pitada de paciência, para saborear o sotaque lusitano, e outra pitada de paciência de dias chuvosos, para enfrentar as reviravoltas e todas as vicissitudes da vida de Cordélia, talvez o nome feminino de “cordel”.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Sul da fronteira, oeste do sol, Haruki Murakami

Sul da fronteira, oeste do sol, Haruki Murakami



Um livro cheio de mistérios, não os mistérios policiais, mas os mistérios da vida, pela escrita sempre magistral de Murakami. E, à medida que os mistérios se acumulam, vamos nos envolvendo em nuvens de beleza de uma narrativa que tem início, tem um meio e não tem um fim, porque é assim a vida, como disse o bardo, “cheia de som e fúria”, ainda que o som seja de jazz americano (como é a trilha sonora desse romance) e a fúria seja apenas desaparecimentos, fugas, detalhes fugidios, finalmente, uma noite quente de amor com a pessoa amada. O enredo não é complexo: Hajime, o narrador, cujo nome significa “início”, nasceu numa província japonesa na primeira semana do primeiro mês do primeiro ano da segunda metade do século XX, como filho único, fato que o incomoda durante muito tempo. Durante o seu período escolar, faz amizade com Shimamoto, também ela filha única, inteligente e que puxa uma perna. Juntos, estudam, leem e ouvem música, principalmente Nat King Cole, de quem a canção “South of the Border, West of the Sun” dá título ao romance. Mas, no começo da adolescência de ambos, Shimamoto se muda para outro bairro e, aos poucos, eles deixam de se ver. O jovem Hajime segue sua vida, conhece e namora outras garotas, vai para Tóquio, onde se forma, e anos depois se casa com Yukiko, cujo pai é um rico empresário do ramo de construções, e com ela tem duas filhas. Graças ao empréstimo do sogro, abre dois bares de sucesso e segue sua vida de empresário, sem grandes ambições. Uma vez, tem a impressão de ver Shimamoto na rua e chega a segui-la, mas algo acontece que o impede de se aproximar dela e esse acontecimento é só mais um mistério na sua vida. Uma noite, no entanto, ele a encontra sentada à mesa de seu bar, tomando um coquetel. Reatam a amizade e o amor renasce para ambos, um amor que parece trilhar o platonismo, já que ela não lhe diz absolutamente nada de sua vida, até que, um dia, faz-lhe um pedido inusitado, o que lhe abre uma pequena cortina de seu passado. Mas... outro mistério será o definitivo da vida de Hajime, novamente se separam, num final aberto, que deixa ao leitor o sabor não só do mistério, mas principalmente do término de uma narrativa que nos dera um grande prazer.