terça-feira, 29 de novembro de 2022

Luxúria, Fernando Bonassi



Luxúria, Fernando Bonassi


Numa metrópole distópica, que se identifica com São Paulo, o metalúrgico e ferramenteiro especializado, que mora no subúrbio, num conjunto habitacional de casas exatamente iguais, onde as pessoas, os vizinhos, são exatamente iguais a ele, com bens iguais aos dele, tem a pretensão de construir no quintal uma piscina. Tudo quanto possui está penhorado em dívidas: a casa, o carro, os utensílios domésticos, mas ele não desiste de contrair mais uma dívida, na realização desse sonho burguês. Contrata uma empresa especializada que, para realizar a obra, faz uma série de contratos irregulares que permitam o empréstimo do governo para isso. Enviam uma retroescavadeira para iniciar a obra, mas as ruas irregulares e estreitas do bairro não permitem sua passagem, e isso provoca um imenso congestionamento, mais um na imensa metrópole de constantes e irritantes congestionamentos de trânsito. Então, enviam uma equipe de três operários, um mestre de obras e dois peões, para fazerem a escavação, que irá, é claro, provocar enormes transtornos na vida da família e dos vizinhos. Enquanto isso, o “homem de que fala o relato” (como é constantemente nomeada a personagem) continua sua vida complicada na fábrica, com faltas e atrasos constantes, com sua cooptação para dedurar colegas menos produtivos a serem demitidos; em casa, seu filho pré-adolescente se envolve com drogas e com amizades estranhas na escola e sua mulher se entope de comprimidos para dormir. A obra se arrasta e incomoda. O autor vai descrevendo, em capítulos específicos, a rotina e os perrengues de seu protagonista, da mulher, do filho e até da empregada. E há uma decisão importante a ser tomada: o cão da família precisa ser retirado do quintal, porque não haverá mais lugar para ele, com a construção da piscina. O homem tenta inutilmente doá-lo, mas não encontra quem o adote, na comunidade. E seu fim poderá ser trágico, assim como o da família. Interessante notar: nenhuma personagem tem nome. O autor usa circunlóquios para nomeá-los: “o homem, o operário, o marido”, etc.; a “mulher, a esposa”, etc. Somente o cão tem um nome: Thor. A crítica à classe média, às condições de vida de uma população entregue à exploração, a uma existência ou não-existência de seres desumanizados por um sistema devorador de vidas é o que transcende das páginas desse romance distópico de Fernando Bonassi.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

O acontecimento, Annie Erneaux

 O acontecimento, Annie Erneaux


Um pequeno grande livro. E denso. O assunto, mais do que polêmico: aborto. O enredo é simples: após 35 anos, a narradora relembra um acontecimento de quando tinha 23 anos, em Rouen, na França. Estudante universitária de origem humilde, engravida do namorado. Decide abortar. No entanto, na época, em 1963, o aborto não era apenas proibido na França, mas criminalizado, tanto para a mulher quanto para o agente. Depois de várias tentativas de encontrar quem lhe fizesse o procedimento, uma colega de faculdade indica uma “fazedora de anjos” de Paris, que usa um método “menos agressivo” e cobra 400 francos (mais ou menos 900 euros, em moeda atual). A mulher insere em seu útero uma sonda, que deverá provocar o aborto em dois ou três dias. E isso acontece em seu quarto, à noite, no alojamento da faculdade, assistido por uma colega. A descrição da cena é crua e brutal, principalmente porque ela já estava grávida há quase três meses. A situação, é óbvio, se complica e ela acaba tendo de ir para o hospital, onde lhe fazem uma curetagem. Depois disso, vida que segue. Não há remorso, não há qualquer julgamento moral. Ela apenas narra o acontecimento e suas consequências. Deixa a polêmica – ser a favor ou contra o aborto – para o leitor. É claro que ninguém, em sã consciência, é a favor do aborto. Mesmo sem qualquer julgamento moral ou religioso. Pelo sofrimento, pela perda de uma vida, por todo o trauma que ele carrega. No entanto, as mulheres abortam. Sendo crime ou não. Por inúmeros motivos. A mensagem que fica é esta: ser contra ou a favor é uma discussão que não se coaduna com a realidade. E a realidade é que qualquer política de saúde pública não pode ser moralista e condenar pura e simplesmente o aborto e deixar que as mulheres padeçam sofrimentos atrozes nas mãos de pessoas inescrupulosas. Afinal, mesmo que seja chocante – o leitor fica transido e arrepiado com a narrativa de Annie Ernoux – a decisão é pessoal e intransferível, algo que a sociedade deve respeitar e amparar. Mesmo que não concorde.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

O homem sem qualidades, Robert Musil

 O homem sem qualidades, Robert Musil


Mais do que o número de páginas – cerca de 1260 – o que nos levar a ler esse livro com calma e durante muito tempo (levei 45 dias) é o estilo do autor, ou talvez devêssemos dizer, suas extensas reflexões sobre a situação do ser humano no começo do século XX, às vésperas da primeira grande guerra, o que leva a que o livro seja classificado pelos críticos de literatura como um romance filosófico, seja lá o que isso significa. O que me chamou a atenção, além desse fato, foi a onisciência do narrador: ele não é apenas onisciente, ele super onisciente, ou seja, mergulha fundo na mente de todas as personagens, em longas digressões e nos diálogos todos do livro, discutindo questões complexas de suas realidades naquele momento. Dito isso, vamos a uma resenha bem reducionista do enredo do livro. Em 1913, num país imaginário chamado Kakânia, identificado como a Áustria, um matemático de 32 anos, Ulrich, busca um sentido para vida. No entanto, sua moral flexível à realidade e a falta de profundidade de suas ideias transformam-no num “homem sem qualidades”. A pedido do pai, um professor emérito do interior, procura a prima Diotima, a bela, opulenta e rica esposa se um diplomata, de quem se torna amigo e confidente. Com a aproximação de uma data cívica – os cem anos do imperador, a serem comemorados em 2018 – a prima e Ulrich se unem à sociedade burguesa para promover algum tipo de festividade ou de ação que marquem essa data e até mesmo interfiram nos destinos da Europa e do mundo. Criam a Campanha ou Ação Paralela, que passa a fazer reuniões nos salões elegantes da mansão de Diotima, agregando várias personagens para receber sugestões não só dos participantes, mas de todo o povo. Ulrich, no entanto, recebe a notícia da morte do pai e, ao viajar ao interior, para o enterro, reencontra a irmã,
Ágata, bela mulher de 28 anos, que está se separando do segundo marido. Entre eles renasce uma amizade tão profunda e uma identidade de pensamentos e ideias que levam a que irmã vá se reunir a ele na capital. Depois de algum tempo de vida em comum, essa amizade ganha contornos de uma paixão de irmãos siameses, como eles se autodesignam, e os dois irmãos se isolam da vida mundana. Um dia, Ágata encontra uma espécie de diário secreto de Ulrich, onde ele aprofunda suas reflexões a respeito do amor, em longos textos que indicam haver entre eles uma paixão incestuosa. O livro termina, ou melhor, permanece inacabado, já que o autor morreu sem poder concluí-lo. Há anotações apenas em dezenas e dezenas de páginas, de que o romance abordaria em seguida a guerra e o incesto dos irmãos que, concretizado, os levaria a um estado de complexos sentimentos de culpa e de catarse. São várias as personagens do livro, mas duas delas chamam a atenção do leitor: Moosbruger, um assassino e estuprador, condenado à prisão e Clarisse, a esposa neurótica do amigo de Ulrich, Walter, que se recusa a ter uma vida normal e tem fixação na figura na figura do estuprador. Concluindo esse breve comentário, devo dizer que, apesar da complexidade e da extensão do romance, quando cheguei ao final, queria mais, lamentando que tenha ficado incompleto o livro que teria, segundo alguns, mais de duas mil páginas. Mesmo assim, com justiça, uma obra prima da literatura alemã.

domingo, 13 de novembro de 2022

O coração disparado, Adélia Prado

 O coração disparado, Adélia Prado


Quando comento um livro de poemas, não busco a citação de versos ou trechos para ilustrar o que eu penso desses poemas: quero registrar apenas o que de poesia restou em mim, depois que fecho o livro e o devolvo à estante. Assim vou fazer com Adélia Prado. Não preciso dizer que ela é um fenômeno poético-literário, por ser uma mulher do interior de Minas, da cidade de Divinópolis, a encher o imenso teatro da PUC/SP (o TUCA) com pessoas que ali foram exclusivamente para ouvi-la, inclusive eu, há alguns anos. Adélia é poeta, mas acima da poeta está a mulher. Sente, pensa, escreve e se revela como mulher. Tem desejos e fantasias e os confessa. Sem pejo. O amor erótico está presente em toda a sua obra, de forma clara ou sub-reptícia. Não teme as palavras e desafia-as com sua franqueza. Adélia é, como quase toda mineira (e quase todo mineiro) católica e carola. Até já escrevi em um poema, uma vez, que o mineiro ateu comunga e vai à missa, pelo menos uma vez por ano. Mas sua “carolice” é crítica e assustadoramente – para os padrões interioranos – pessoal. Deus está ali, em cada poema, em cada verso, mas não é o deus bíblico furibundo, a condenar os pecados do mundo. Tenho a impressão de que, para a poeta, é um deus bonachão e... até um pouco erótico, mesmo quando se revela através de forças destruidoras da natureza. Mas, acima de tudo, é um deus que está no sangue quente de ardores eróticos, eróticos e femininos. Adélia é uma mulher comum e, como tal, em sua mineiridade e aparente simplicidade, desvela o cotidiano de sua cidade, de seu dia a dia e dos afazeres domésticos e do espanto diante das pequenas coisas comuns e dos pequenos acontecimentos comuns, das pessoas comuns. Sabe aquele velho adágio que diz que será universal quem canta sua aldeia? Pois Adélia é assim: deixa em nós não apenas as ricas metáforas, a construção literária de que sua arte é capaz, mas principalmente a verdade de sua poesia. Sem dúvida, uma voz a ser sempre ouvida, a da “santa” Adélia do “pau oco”, do erotismo sacralizado ou da santidade erotizada.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O amor natural, Carlos Drummond de Andrade

 O amor natural, Carlos Drummond de Andrade


A poesia erótica sempre teve cultores entre grandes poetas e entre poetas “menores”. Os chamados “grandes poetas”, no entanto, sempre a abordaram com cuidados de erudição e de tecnicismos literários, para expressarem o lado mais cru e real dos seres humanos, o sexo, um tabu para muitos e, por isso, as metáforas e as elipses e todo um arcabouço de circunlóquios, desde os autores bíblicos até hoje. Assim, quando topamos com um poeta da grandeza de Drummond a destilar erotismo explícito e sem meias palavras, mas com a erudição e a potência poética que lhe é peculiar, nesse livrinho curto, que se lê e se goza em pouco tempo, não podemos deixar de registrar que o erotismo na poesia atinge em nossas letras um patamar bastante elevado de prazer erótico e literário. Aborda o poeta, de forma às vezes irônica, às vezes brincalhona, todos os aspectos do amor carnal entre dois seres que se amam e se jogam aos jogos eróticos sem nenhum filtro. Suas preferências sexuais, a bunda, o sexo oral e anal, por exemplo, são exploradas sem pejo. As aliterações e as invenções lexicais, num jogo ao mesmo tempo erudito e popular, transmitem toda a ludicidade do prazer e do erotismo como uma troca não apenas de fluidos, mas também de alegria de viver profundamente uma experiência que é a própria essência da vida. Se, às vezes, o poeta maduro olha no retrovisor e recorda tempos passados, a leveza e essa ludicidade não têm nenhum ranço saudosista, mas a certeza de que o que se viveu, embora não volte, está presente de novo na lembrança e no olhar arguto de quem gozou aqueles momentos com a delicadeza e ao mesmo tempo a força da juventude. Se esses poemas, da maturidade do poeta, trazendo à tona um erotismo aparentemente impensável à figura hierática e reservada de Drummond, surpreendeu a crítica, não deve surpreender o leitor amante da boa poesia erótica e os verdadeiros amantes do amor e das suas delícias. Um “livrinho” que vale por muitos tomos de educação sexual, se lido e relido em suas linhas e entrelinhas. Delicioso.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Poemas - Konstantinos Kaváfis (tradução de José Paulo Paes)

 

Poemas - Konstantinos Kaváfis (tradução de José Paulo Paes)



Para mim, ler ou reler Kaváfis sem me lembrar de “O quarteto de Alexandria” é impossível. Embora Durrel não o nomeie explicitamente, se me lembro bem, mas refira-se a ele sempre como “o velho poeta”, sua presença nas ruas ficcionais de Alexandria são como uma sombra a nos lembrar aquele seu peculiar helenismo sem saudosismo. Sim, Kaváfis escreve sobre tempos antigos, embora tenha vivido no começo do século passado, mas seus poemas gregos trazem lições de vida e de sensibilidade dos dias de hoje. A posição do poeta nas letras é singular: escreveu pouco, mais ou menos uma centena de poemas, nunca publicou nada em vida, mas se torna uma figura emblemática da poesia do século XX, quando redescoberto, lido e traduzido para várias línguas, e principalmente admirado por muitas comunidades. Difícil falar sobre seus poemas, principalmente os históricos. Para lê-los e entendê-los, é preciso um pouco de conhecimento do mundo greco-romano dos últimos anos do Império Romano e do princípio da cristianização. Mas, para senti-los de forma mais profunda, basta a sensibilidade e a fixação da nossa mente em certos detalhes e mensagens, que há sempre uma pérola ali escondida entre aqueles gregos antigos, entre aquelas reflexões sobre beleza, sobre vida e morte, sobre conquistas e derrotas. Não posso julgar a tradução, mas os poemas que agora terminei de reler são diferentes daqueles que li há muito tempo e, se voltar a lê-los no futuro, serão sempre diferentes os mesmos poemas. Essa a beleza, o encanto da poesia, e o prazer que ela nos traz quando convivemos com os grandes poetas, através de sua obra; ou, até mesmo, com poetas medíocres, se é que eles existem.