sábado, 27 de janeiro de 2024

1968: o ano que não terminou, Zuenir Ventura



1968: o ano que não terminou, Zuenir Ventura



Não é um livro de história, mas uma longa crônica dos acontecimentos ocorridos no Brasil, no ano que a ditadura militar, através do milico de plantão no Alvorada, o marechal Arthur da Costa e Silva, decretou o famigerado Ato Institucional nº 5, o AI-5. Uma narrativa minuciosa, de alguém que foi testemunha dos fatos e, depois, vítima também do ato discricionário. Citam-se os principais acontecimentos, detalhadamente, com os nomes de todos os participantes ou, pelo menos, dos principais: gente da alta sociedade carioca, jornalistas, políticos, estudantes, escritores, compositores, artistas do teatro e da televisão, cantores, advogados etc. O ano começa com uma festa de réveillon na casa de Luís Buarque de Hollanda e sua mulher, a professora Heloísa Buarque de Holanda (um de seus livros, “26 poetas hoje”, já aqui mesmo comentamos). Foi uma festa de arromba, uma espécie de “baile da Ilha Fiscal”, o famoso baile que antecedeu a queda da monarquia. Por isso, emblemático: a queda da democracia, ou melhor, do que restava dela, não ocorreu imediatamente, como naqueles idos do Império, mas ao longo de todo o ano de 1968, quando a sociedade brasileira viu surgir para valer a incipiente oposição ao governo militar. No livro, estão relatados os preparativos, as motivações, as disputas e divergências internas da esquerda para as famosas passeatas que tomaram conta de várias capitais, principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo. Ao mesmo tempo que os estudantes lideravam esse movimento de oposição, com o apoio das classes artísticas e de alguns políticos e pessoas influentes da época, a repressão também se articulava para uma contraofensiva que se mostrou muito além do que se podia esperar, uma reação muitos pontos acima da ação de oposição que esses grupos podiam articular contra o governo. Estão relatados, por exemplo, acontecimentos emblemáticos, como a morte do estudante Edson Luís, na invasão do restaurante estudantil Calabouço, no Rio; a morte de outro estudante, mais tarde, em São Paulo, na destruição da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP, pelos estudantes do Mackenzie que formavam o CCC – Comando de Caça aos Comunistas; a prisão de centenas de estudantes no famoso XXX Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes) em Ibiúna, no interior de São; a depredação de teatros onde se levava a peça “Roda Viva” e o espancamento aos atores e atrizes que dela participavam, no Rio, em São Paulo e em Porto Alegre; o famoso discurso do deputado Moreira Alves, no Congresso, em Brasília, quando ele sugeriu, de forma até mesmo meio zombeteira e incosequente, baseado na greve de sexo das mulheres de Atenas, na peça Lisístrata (a que ele assistira), que a jovens brasileiras evitassem namorar oficiais do Exército etc. etc. etc. E foi esse discurso – uma bobagem, afinal – que irritou o oficialato e serviu de pretexto para AI-5, em 13 de dezembro de 1968, decretando o fechamento total do regime, com a prisão imediata de centenas de cidadãos e, mais adiante, com a tortura e morte de centenas de outros, opositores reais ou inventados da ditadura, numa das páginas mais negras da História do Brasil. Quando se leem os documentos e os depoimentos da época – e há um vasto material documental – não conseguimos, hoje, imaginar que “eles” foram capazes de promover tanta dor, tanta morte, tanta tortura, tanto desalento contra o próprio povo. E mais: se ligamos esse 13 de dezembro de 1968, uma aziaga sexta-feira, ao domingo 8 de janeiro de 2023, quando um bando de golpistas que estavam acampados em frente a um quartel, em Brasília marcharam contra os palácios do poder da República, depredando-os e pedindo a volta dos militares, desses mesmos militares que prenderam, torturaram, mataram centenas de concidadãos, pelo simples motivo de que não concordavam com o governo ditatorial, eu, pelo menos, passo a descrer na capacidade humana de compreensão da realidade e passo a acreditar que reina hoje, no Brasil – e no mundo – uma névoa de estupidez tão absurda, que não permite que tantas pessoas vejam no nazifascismo das ditaduras de direita o mal, se não absoluto, mas o mal mais poderoso e canalha que o um governo pode fazer contra seu povo ou contra qualquer povo. Por isso, conclamo: divulguem a literatura de narrativas dessa época, da época negra do regime militar. Quem sabe, um fósforo seja aceso na escuridão dessas mentes corroídas e corrompidas!

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

26 poetas hoje, Heloísa Buarque de Hollanda (Heloísa Teixeira)

 

26 poetas hoje, Heloísa Buarque de Hollanda (Heloísa Teixeira)


Heloísa Buarque de Hollanda não tem nenhum parentesco com a família de Chico Buarque. Esse sobrenome é de seu primeiro marido e, ao tomar posse na ABL, em 2023, Heloísa declarou que passaria a adotar o Teixeira, de origem materna. Dito isso, vamos à antologia 26 POETAS HOJE. Primeiro, esclareçamos que esse “hoje” refere-se a 1975, ano da publicação da primeira edição do livro. Também precisa ficar claro que, entre os 26 poetas escolhidos, não há nenhum “medalhão” da poesia brasileira, mesmo da época, mas são todos jovens na faixa de mais ou menos 30 anos e constituem o que se convencionou chamar de “poesia marginal” (aliás, um péssimo nome). Lembremos que estávamos naquele momento sob um regime militar que censurava e perseguia os artistas, principalmente da música popular e do teatro. Não tenho notícia de que esses poetas “marginais” tivessem sido censurados, já que publicavam seus livros com autofinanciamento e os vendiam em bares e portas de cinemas e teatros. No entanto, notamos em muitos de seus poemas – cuja temática era quase sempre social ou episódica – uma certa autocensura, principalmente porque usavam uma linguagem metafórica e enigmática, às vezes de entendimento um tanto difícil, a uma leitura rápida e superficial. Seguem uma estética de versos livres e de poemas-piada, na “tradição” dos poetas modernistas de 22, radicalizando, no entanto, o conceito de liberdade no uso do coloquial e, às vezes, no abuso do palavrão que, à época, devia chocar ouvidos mais sensíveis. Mesmo quando aparece – e não são muitos os poemas desse tipo – a poesia dita confessional, ou amorosa, perseguem uma linguagem mais crua e direta, sem muitas concessões ao lirismo. Numa edição de 1995, a própria organizadora da antologia, num prefácio bastante crítico, levanta alguns problemas relacionados tanto a essa estética quanto a um possível “envelhecimento” desses textos. Dentre os poetas compilados, vários deles se tornaram conhecidos e são, hoje, nomes bastante festejados da nossa literatura. Concluindo, podemos dizer que os poemas desse livro constituem uma forma de poesia desabrida, sem quaisquer freios ou regras, talvez datada, mas que ainda pode ser lida com o prazer da descoberta de uma estética que se estende desde aqueles tempos até os dias de hoje, mantendo-se todos os devidos cuidados quanto às diferenças sociais, políticas, econômicas etc. ocorridas nesses quase 50 anos da publicação desse livro que – não posso me furtar a dizer – li com muito prazer.


PS:

Participantes da antologia: Francisco Alvim, Zuca Saldanha, Antonio Carlos de Brito (Cacaso), Roberto Piva, Torquato Neto, José Carlos Capinan, Roberto Schwarz, Zulmira Ribeiro Tavares, Afonso Henriques Neto, Vera Pedrosa, Antonio Carlos Secchin, Flávio Aguiar, Ana Cristina Cesar, Geraldo Eduardo Carneiro, João Carlos Pádua, Luiz Olavo Fontes, Eudoro Augusto, Waly Sailormoon (Waly Salomão), Ricardo G. Ramos, Leomar Fróes, Isabel Câmara, Chacal, Charles, Bernardo Vilhena, Leila Miccolis e Adauto de Souza Santos.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

O idiota, Fiódor Dostoiévski

 

O idiota, Fiódor Dostoiévski


Em meados do século XIX, o príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin, aos 26 anos, retorna à terra natal, São Petersburgo, após passar muitos anos na Suíça, a tratar de sua epilepsia. Seu objetivo é reencontrar parentes distantes. Já na viagem de volta, no trem, conhece Parfión Rogójin, que será no decorrer da história uma espécie de amigo fraterno e rival no amor por uma dama belíssima, conhecida por sua vida não muito regular, chamada Nastássia Filíppovna. Mas o romance com essa mulher dura pouco e o príncipe propõe casamento a uma das filhas de sua parenta distante, a ciumenta, esquiva e temperamental Aglaia. Nada, porém, dá certo na vida do príncipe, envolto em tramas e uma multidão de personagens que participam de sua vida e lhe dão orientações, conselhos ou tentam compreender suas palavras às vezes desconexas, suas atitudes “fora da curva”. A narrativa das aventuras e desventuras do príncipe é lenta e detalhada, retratando com precisão cirúrgica a sociedade da época. Mas, o mais importante: o jeito alheado e simplório do príncipe, que praticamente nada estudou, leva a que todos o tomem por idiota, embora sua visão de mundo seja de uma pureza quixotesca, exsudando bondade e humildade. Não tem a maldade nem a malícia da complexa sociedade em que vive, e é esse o objetivo de Dostoiévski: o conhecimento da psicologia e a compreensão mais profunda do ser humano, ao contrapor seu anti-herói “positivamente bom” a uma sociedade de valores rígidos e materialista. Acompanhamos passo a passo e de forma sutil a deterioração da mente de Míchkin, até o seu trágico fim. Até onde vai a loucura e onde começa a “santidade” da personagem, é a pergunta que se faz o leitor. Não é um livro simples ou fácil de ler, porque longo e meio caótico na sua narrativa, o que é uma das características de Dostoiévski, mas, sem dúvida, um mergulho nas águas mais profundas da psique humana e na busca da compreensão do ser humano, através da ficção.