quinta-feira, 29 de julho de 2021

Amados gatos, José Jorge Letria

 Amados gatos, José Jorge Letria



Coleção de crônicas do escritor, poeta e jornalista português José Jorge Letria, revela sua paixão pelos gatos e seu universo de liberdade e soberania. Reinventa, de forma saborosa, a biografia de gatos de famosos ligados à literatura, às artes e à política, de Richelieu a Lênin, de Hemingway a Anne Frank, passando por Churchill, Marilyn Monroe, Paul Klee, Zola e muitos outros. Uma deliciosa homenagem não só a esses homens e mulheres que amavam seus gatos, mas também aos felinos que, ao longo do tempo, apesar de muitas vezes serem associados a cultos demoníacos, conquistaram e conquistam os corações de tantas pessoas. Um livro para se ler de um só fôlego. E deliciar-se, depois, com uma releitura mais calma e mais atenta.



segunda-feira, 26 de julho de 2021

A mulher do viajante no tempo, Audrey Niffeneger

A mulher do viajante no tempo, Audrey Niffeneger




Um texto ficcional é uma espécie de jogo que o autor nos propõe. Se aceitamos as regras do mundo supra real a que ele nos leva; se, mesmo que aos poucos, conseguimos entender essas regras e jogar o jogo com ele, a leitura flui e podemos nos divertir, nos emocionar, nos transformar. Quando mergulhei de cabeça na leitura de “A mulher do viajante no tempo”, nada sabia sobre o livro ou sobre a autora. Entrei no jogo sem nenhuma informação, como se assistisse a uma partida de futebol, por exemplo, pela primeira vez, sem nunca ter sabido nada sobre futebol. Literalmente mergulhei e, quando saí, do outro lado, ao final da leitura, estava transformado. E encantado. A proposta do jogo da autora é absurda, para dizer o mínimo, mas deixa de sê-lo à media que as regras desse mundo para o qual ela nos transporta começam a ganhar coerência interna, não a coerência do nosso mundo real: o protagonista, Henry, tem uma síndrome que o leva a viajar no tempo. Sem controle. De repente, desaparece, deixando no lugar o montículo de suas roupas, e aparece completamente nu em algum lugar do seu passado e, às vezes, do seu futuro. Numa dessas viagens, conhece Clare, uma garota de doze anos, tendo ele na época vinte anos, que virá a ser sua companheira de vida e de complexas relações nas suas constantes viagens no tempo. O livro é narrado na perspectiva de ambos. Não digo mais sobre o enredo, a história. Só o que se precisa saber, para que você embarque também nesta aventura, é que não se sai ileso dessa longa reflexão – que é, no fundo, o tema do livro – sobre o tempo. Nunca havia pensado no tempo – algo sobre o qual sempre pensamos – sob essa perspectiva. Somos escravos dele e dele depende a nossa vida, que é uma linha temporal rumo a um final inexorável. Não nos detemos, no entanto, a aprofundar a nossa vivência em termos de um continuum em que passado, presente e futuro deixem de ser categorias lineares, para se tornarem uma espécie de presencialidade. Assim, a proposta do jogo, que parece absurda, ganha contornos de aprofundamento do que significa a nossa própria existência dentro de uma categoria que não temos ainda nenhuma perspectiva de vir a dominar – o tempo. Um livro, portanto, para ser degustado e apreciado com o prazer de descobertas e novas perspectivas, pela criatividade e, ao mesmo tempo, pelo rigor com a autora nos leva para esse jogo do qual ela parece ter muita consciência, já que, durante toda a narrativa, personagens aparecem jogando desde xadrez ou paciência, até jogos inventados por eles mesmos. Será que estamos sempre jogando xadrez com morte, como na famosa cena de Bergson, em “O Sétimo Selo”?


sexta-feira, 23 de julho de 2021

Memórias de uma gueixa, Arthur Golen

 Memórias de uma gueixa, Arthur Golen


Mundo das mulheres. Assim como em A COR PÚRPURA, aqui temos também a trajetória de uma garota de nove anos e sua irmã um pouco mais velha, de 14 anos, vendidas para se tornarem... gueixas. Isso, no Japão do início da década de 30 do século passado, uma época de depressão e, depois, de destruição do país imerso na segunda grande guerra. As irmãs, claro, se separam e, após um breve reencontro, frustram-se os planos de fuga. Nunca mais se veem. A menor vive numa casa de gueixas, em Quioto, no bairro de Gion, onde passa maus bocados pela maldade de uma gueixa mais velha, até ela mesma se tornar aprendiz de gueixa, com o rigoroso aprendizado de música, dança e a arte de entreter os homens, até ter sua virgindade leiloada aos 15 anos. Torna-se uma das mais belas e cobiçadas gueixas da região, mas a situação de calamidade do Japão leva-a a grandes vicissitudes na luta pela sobrevivência. Apaixonada desde muito jovem por um grande empresário, tem seus sonhos de um dia tornar-se amante desse homem protelado pelo rígido comportamento de sua condição. A história é narrada em primeira pessoa pela mulher já madura e residente nos Estados Unidos, há muitos anos, lembrando sua longa trajetória desde a aldeia de pescadores até a grande aldeia global de Nova Iorque. Uma narrativa lenta, detalhista, da condição e de todo o preparo e de toda a vida e relações que se estabelecem nesse mundo mítico e fechado das gueixas de Quioto, um mundo ao mesmo tempo cruel e fascinante, de prazeres e escravidão, de luxo e de intrigas, de paixões amordaçadas e gestos mínimos que significam aberturas ou fechamentos de caminhos para a prosperidade ou para a mais baixa prostituição. O autor fez uma longa e profunda pesquisa desse universo, para nos dar um retrato o mais exato possível dessa instituição tradicional do Japão, através da qual vislumbramos e acompanhamos o ocaso de um modelo tradicional de vida, calcada em valores ancestrais, para o nascimento do país moderno que hoje invejamos, embora ainda haja, ali, alguns poucos traços dessa milenar cultura. Um livro para ler e degustar com o prazer da contemplação de um lago de aparentes águas calmas que escondem um turbilhão de emoções e detalhes que nos prendem da primeira à última linha.



terça-feira, 20 de julho de 2021

A cor púrpura, Alice Walker

 A cor púrpura, Alice Walker




Mundo das mulheres. Aqui, das mulheres pretas nos Estados Unidos da América, no começo do século passado. Creio que, por mais tratados e ensaios feministas que se leiam, só se pode realmente entender a causa ou as causas feministas através da história de vida das próprias mulheres, principalmente se essas histórias estão emolduradas pelas cores e relevos da arte, da ficção. Duas irmãs, no sul racista do país do racismo, a mais velha, Celie, quatorze anos, estuprada pelo padrasto, a quem ela chama de pai e tem como seu pai verdadeiro. Seus dois filhos – um casal – são-lhe tirados e entregues à adoção por uma família de missionários, mas a menina não tem a mínima noção do que lhe aconteceu realmente. Só se preocupa em defender a irmã mais nova do mesmo destino. E a irmã mais nova, Nettie, está sendo negociada para ser entregue a um homem, a quem ela chama de Senhor, ou Sinhô, ou Dono. Mas o padrasto acaba entregando a filha mais velha, com o dote de uma vaca. As duas meninas vão morar com esse homem, mas Nettie consegue fugir e desaparecer. A história é contada por Celie, principalmente através de cartas que ela escreve para a irmã desaparecida. Não sabe que essa irmã foi para a África, em missão com a família que... Bem, chega de contar a história. O importante nesta obra é a discussão da condição das mulheres pretas naquele tempo, em que a escravidão, já abolida, permanece de formas variadas de submissão. E o preconceito, o racismo, a servidão, a luta pela sobrevivência dessas mulheres saltam aos nossos olhos numa narrativa de estilo moderno, numa linguagem que, no original, se diz bem popular, cheia dos erros condenados pela língua culta, mas que dão o tom de toda a obra e do verdadeiro sentimento de Celie e de todas as vicissitudes por que passa a protagonista. Os cortes narrativos são cinematográficos, o que levou esse livro às telas, mas o que fica realmente é esse grito – que se pretendeu sufocar – da luta de todas as mulheres do mundo contra todas as formas de submissão a uma sociedade machista, principalmente a luta das mulheres pretas. Não é um livro para se ler com um lenço para enxugar lágrimas, porque não é isso o que pretende a autora, mas sim com sangue nos olhos, com a visão crítica de quanto ainda há para se conquistar em termos de igualdade de gênero em nossa sociedade atual.


sábado, 17 de julho de 2021

A noite de meu bem, Ruy Castro

 A noite de meu bem, Ruy Castro



Uma crônica – talvez a mais longa já escrita – sobre um gênero musical, uma época e uma cidade. A cidade, o Rio de Janeiro. A época, a década de 50, especialmente entre os anos de 1945 e 1964. O gênero musical, o samba-canção, com seus autores, cantores, músicos intérpretes e toda uma geração de ricos e outros nem tanto, na sua relação com um fenômeno da época: a criação de inúmeras boates, na cidade do Rio de Janeiro. Sem dúvida, um dos livros mais musicais que já li: cita o autor dezenas, talvez centenas, de canções compostas nessa época, que foi uma espécie de belle époque tardia da cidade maravilhosa, quando se vivia um tempo de euforia, de deslumbramento numa região específica da cidade, o bairro de Copacabana e adjacências. Nomes endinheirados da sociedade carioca rivalizavam em termos de glamour e de fama com cantores, compositores e músicos, cuja geração talvez tenha sido uma das mais profícuas e inspiradas da história da música brasileira. O próprio título do livro nos remete a um dos mais belos sambas-canção de toda a safra até hoje produzida, obra inspirada de Dolores Duran. Não é ela o eixo do livro, mas uma de suas personalidades marcantes dentre tantas. Dolores trabalhava muito, fumava muito, bebia muito, namorava muito e, dentre todas essas atividades exageradas, só a última não lhe fazia mal ao frágil coração: morreu aos 29 anos, de um infarto, enquanto dormia, depois de mais uma noitada de tudo quanto mais gostava. É o símbolo, portanto, dessa gente que vivia perigosamente numa espécie de limbo esfumaçado das boates e casas de show, retrato de um país que se transformava. Não há espaço na longa obra para muitos dos aspectos políticos e, principalmente, sociais, mas eles estão lá, principalmente nas entrelinhas. A partir da eleição de Dutra, em 1945, com o consequente fechamento dos cassinos, a saída criativa da sociedade carioca foi a proliferação das boates, pequenas, aconchegantes e caras, aonde se ia para namorar, dançar às vezes, beber, fumar e ouvir os grandes cantores e músicos. De 45 a 64, um momento de grande efervescência política, com a volta de Getúlio e seu suicídio, a eleição de Juscelino Kubistchek para a presidência, as armações golpistas de Carlos Lacerda e da UDN, o país deslanchava, apesar de tudo, apesar da imensa desigualdade social. Brasília, com seu projeto urbanístico futurista que parecia um avião, pode ser bem a metáfora do País que taxiava e já tirava as rodas do solo para voos mais altos, quando foi covardemente abatido pela sanha estúpida do povo fardado, a destruir qualquer possibilidade de um progresso e do futuro que se desenhava. Outras tentativas de voo serão futuramente abatidas, em outras circunstâncias, mas naquela época, quando os militares tomaram o poder em 64, quando as boates cariocas foram fechando gradativamente, quando toda uma geração se recolhia e passava o bastão para a geração seguinte, a minha e talvez a sua, você que me lê, uma geração frustrada em seus sonhos de justiça e de igualdade social, quando, repito, os militares tomaram o poder, não se podia nem sonhar que, um dia, em plena democracia, os mesmos arautos do retrocesso iriam retomar o poder, em 2016, para estender mais uma vez a sua asa negra de corvos em busca de carniça, para começar a frustrar os sonhos de mais uma geração. Enfim, ler este livro, que não é absolutamente saudosista, nos remete a uma profunda reflexão sobre os últimos 75 anos de história desse pobre País que não precisa de heróis, mas precisa da “paz de uma criança dormindo”, como diz a letra de Dolores Duran, para encontrar o seu destino tantas vezes interrompido pela estupidez de ideologias liberais, fascistas ou meramente fascistoides, ou por interesses inconfessáveis e mesquinhos de elites estúpidas e entreguistas.



quarta-feira, 14 de julho de 2021

Palomar, Italo Calvino

 Palomar, Italo Calvino




O Senhor Palomar tem o nome de um famoso observatório astronômico. Não sabemos sua profissão, apenas que ele é um observador. Um observador de tudo, de todas as coisas. E mais: a partir de suas observações, ele tira reflexões para sua vida. Ele observa com detalhes as ondas do mar, a curva do seio da banhista nua, as tartarugas no jardim fazendo amor, a estrelas e seus movimentos, a lagartixa no vidro da janela, o voo dos pássaros sob o céu de Roma, os animais no zoológico de Paris ou de Barcelona... Ele viaja e observa. Sabemos também que ele é casado e tem uma filha. Mais nada. Todo o livro, em capítulos mais ou menos curtos, divididos por títulos e subtítulos, traz apenas as reflexões do senhor Palomar sobre as coisas, sobre a vida, sobre si mesmo. Parece enfadonho. No entanto, não é. Viajamos com ele, com o prazer da descoberta de cada uma de suas reflexões e observações, de maneira leve, apesar das profundezas do ser humano a que ele nos leva. Graças à prosa articulada, às vezes poética, com pitadas de humor e profundamente humana desse autor nascido em Cuba, criado, vivido na Itália. Li quase numa sentada, como se diz, com calma, navegando com delícia pelas suas páginas surpreendentes, ouvindo boa música, como complemento. Altamente recomendável para esses dias de confinamento, quando a televisão já nos cansou com suas notícias repetitivas e seus programas reprisados ad aeternum. Italo Calvino na veia, para espantar o tédio e nos voltarmos para nós mesmos.


domingo, 11 de julho de 2021

A peste, Albert Camus

 A peste, Albert Camus



Talvez o mais denso estudo do ser humano diante de uma catástrofe natural, diante de algo que ele não entende, não consegue combater e para a qual não há solução a curto prazo. Passa-se a história em Orã, na Argélia, em 1947, quando a cidade tinha cerca de 200 mil pessoas (hoje tem mais de um milhão). Intrigados, os moradores começam a encontrar ratos mortos em suas casas, nas ruas, nas praças, em número cada vez maior, aos milhares. Até que parece que não há mais ratos. Então, algum tempo depois, um morador tem febre alta, gânglios e problemas respiratórios e morre. Depois outro, e mais outro e mais outro. Aos poucos, a peste vai tomando conta, e quando as autoridades se apercebem do tamanho do problema, ele já tomara proporções epidêmicas. A cidade é isolada. Os doentes se multiplicam. O sistema de saúde entra em colapso. Seguimos, então, a luta de alguns desses moradores em sua tentativa de salvar vidas, principalmente o médico Bernard Rieux. Solidão, solidariedade, desespero, vida e morte perpassam pelas páginas magistrais de Camus. Os seres humanos desnudam-se em seus sentimentos mais nobres, mas também em seus momentos mais torpes, quando desafiados pelo desconhecido e tremendamente mortífero vírus. Conviver com o isolamento, com a morte de pessoas próximas, com a saudade das pessoas distantes, esse o desafio da população cercada e sem perspectivas de curto prazo. Sem dúvida, um livro para se ler num momento como o que passamos, não para nos desesperarmos, mas para entender o ser humano, em suas múltiplas faces e compreender que, por mais pessimista que possa parecer a mensagem, ainda temos muito que aprender para sairmos do estado de barbárie em que ainda nos encontramos, apesar de todo o avanço científico e tecnológico, que muitos insistem em ignorar ou, até mesmo, a combater, presos aos mesmos paradigmas do retrocesso e da ignorância de tempos passados.


quinta-feira, 8 de julho de 2021

A assustadora história da medicina, Richard Gordon

 A assustadora história da medicina, Richard Gordon





Publicado em 1993, não incorpora, claro, os avanços da ciência médica dos últimos 25 anos, o que daria ao autor, possivelmente, mais combustível para o incêndio que ele provoca, com sua história da medicina. Claro, também, que o autor era médico, embora se dedicasse – e muito – à “literatura médica”, ou algo assim, ou seja, a histórias ligadas à medicina. Seu estilo tem um profundo “humour” britânico, tão britânico que, possivelmente, até os próprios britânicos devem ter tido alguma dificuldade em entendê-lo ou, até mesmo, em rir com suas ironias e sarcasmos demolidores. Porque a história da medicina não é para rir, muito pelo contrário: exige espíritos fortes e estômagos mais fortes ainda. Quando se diz que de médico e de louco, todos temos um pouco, na verdade os médicos e suas práticas loucas é que são mais loucos do que poderia até mesmo imaginar o velho bardo inglês, também ele possivelmente sobrevivente da medicina de sua época. Perpassa a obra – que se concentra, principalmente, na história da medicina europeia e inglesa dos últimos quinhentos anos – a ideia de que se ministravam remédios de cujos efeitos os médicos não tinham a menor ideia, para curar doenças de que eles não tinham absolutamente nenhum conhecimento. Curandeirismo, bruxaria, ideias extravagantes, remédios improváveis, cirurgias absurdas, modismos e muitas outras práticas absurdas perfilam esses tempos de ignorância não só do próprio corpo humano, mas também do motivo por que adoecemos. Uma lista infindável de “heróis” da medicina, figuras que hoje são consideradas luminares da arte médica, por terem feito descobertas importantes no terreno da ciência, foram também useiros e vezeiros em experiências e práticas que hoje fariam corar qualquer estudante de primeiro ano de medicina. Somente a partir do final do século XIX, com a descoberta dos organismos invisíveis – bactérias, vírus, fungos etc. – é que se pôde dar passos decisivos para superar o medievalismo e as práticas obscurantistas. Há que se ressaltar ainda, com toda a verve do autor, que muitas descobertas importantes só se realizaram por obra e graça do acaso, e muitas histórias desses feitos são realmente dignas de filmes de pastelão ou estão eivadas de interesses escusos e de objetivos inconfessáveis. Mesmo hoje, com todo o avanço da ciência, com o desenvolvimento da genética, do avanço da indústria farmacêutica, com a inclusão de técnicas operatórias impensáveis há alguns anos, com a possibilidade de uso de máquinas e robôs em cirurgias e detalhamentos do ocorre em nosso organismo, com exames laboratoriais sofisticados, a medicina ainda tateia em vários aspectos, como na atual pandemia do novo corona vírus. Em pleno século XXI, em que essa pandemia ameaça nos jogar de volta para o século XIII, há ainda muita gente descrente da medicina e dos médicos, mas todos, absolutamente todos nós, corremos para os braços de nossos médicos assim que algum mal nos assola. Porque não há saída: ou confiamos na medicina – que é feita por seres humanos falíveis – ou não termos saída para a atual situação. Mesmo que nos arrepiemos com essa assustadora história da medicina, e que talvez daqui a um século haja um outro escritor a zombar de nosso atual estágio científico e médico, é a ciência que nos pode devolver a fé no ser humano e garantir que um organismo unicelular, invisível a nossos olhos, não nos devolva a momentos trágicos do passado da humanidade, quando os corpos empilhados nas ruas e as práticas que prometiam curar mais matavam do que realmente curavam. Sem ironia, vou ler, ou melhor, reler, em seguida, “A Peste”, de Albert Camus.


segunda-feira, 5 de julho de 2021

A história da humanidade contada pelos vírus, bactérias, parasitas e outros microrganismos, Stefan Cunha Ujvari

 



A história da humanidade contada pelos vírus, bactérias, parasitas e outros microrganismos, Stefan Cunha Ujvari




Investigar por que adoecemos, ao longo do tempo, tem sido um desafio da ciência. A evolução da tecnologia e de conhecimento proveu os cientistas de instrumentos capazes de desvendar segredos e mistérios até então inimagináveis no terreno da medicina. Malária, sífilis, tuberculose, ebola, gripe, aids, sarampo e outros males que atacam a humanidade revelam muito mais da nossa história do que imaginamos. Os passos do homem ao longo das épocas, pelos continentes, o início da utilização de vestimentas, a convivência com diversos animais, o encontro com outros seres humanos: tudo isso pode ser desvendado agora com o estudo microscópico de vírus, bactérias e parasitas que cruzaram – e cruzam – o nosso caminho. Esses pequenos seres têm sido protagonistas centrais e narradores, não meros coadjuvantes, do processo histórico. Por meio do DNA dos microrganismos, podemos saber quando e como as epidemias atuais se iniciaram e de que forma elas condicionaram a existência humana, dizimando populações, estimulando conflitos, infectando combatentes, promovendo êxodos, propiciando miscigenação, fortalecendo ou enfraquecendo povos. Este livro, escrito por um brilhante médico infectologista brasileiro, em estilo agradável e de fácil leitura, traz a genética definitivamente para a área das ciências do homem.


sexta-feira, 2 de julho de 2021

Nome de Guerra, Almada Negreiros

Nome de Guerra, Almada Negreiros




O enredo é simples: um jovem inexperiente de 30 anos, filho único de pais ricos, do interior, tem a preferência de um tio solteirão, e também rico, de ser o seu sucessor no comando dos negócios da família. Envia-o a Lisboa, para ganhar experiência social e sexual, mas o rapaz se apaixona por uma “garota de bar” - eufemismo, claro. No entanto, a partir disso, constrói Almada Negreiros, mais conhecido por sua obra pictórica, principalmente um famoso retrato de Fernando Pessoa, uma verdadeira catedral literária, através de suas elucubrações sobre o ser humano, suas motivações, seus desejos, frustrações, livre-arbítrio, ao mesmo tempo que nos dá um breve panorama da sociedade lisboeta nos anos 20. Um romance que, diríamos, mais filosófico do que de enredo. O tema da iniciação sexual, no caso, tardia, da personagem Antunes, não é novo (Amar, verbo intransitivo, do nosso Mário de Andrade já havia tratado desse tema), mas há, aqui, uma outra chave de compreensão: o homem que é levado ao arroubo sexual por uma mulher mais jovem, porém muito mais experiente, que toma consciência disso, sabe que tudo aquilo é ilusão, mas utiliza a experiência para um mergulho no mais profundo do seu ser, para se descobrir diante da sociedade como um... bem, não é possível dizer o que ele descobre, sem revelar o final. Há, além, disso, o que foi para mim motivo de intenso prazer: a linguagem. Todo o delicioso sotaque da “Terrinha”, com suas palavras inusuais para nós, alinhavado num estilo moderno e envolvente tornou-se, sem dúvida, um deleite a mais na leitura, aliás, releitura, desse romance.