segunda-feira, 29 de abril de 2024

A livraria dos pequenos milagres, Mónica Gutiérrez



A livraria dos pequenos milagres, Mónica Gutiérrez

De Barcelona para Londres, a jovem Agnes Martí busca emprego em sua área, a arqueologia. Mas, mesmo na grande cidade, as portas não se abrem. Desanimada, já pensando em voltar para sua terra, entra numa pequena livraria, a Moonlight Books, de propriedade de um excêntrico e mal-humorado livreiro, Edward Livingstone, que lhe oferece um emprego de assistente. Não é o emprego de seus sonhos, mas será o emprego que mudará sua vida. Frequentam a livraria clientes típicos e estranhos, além do garoto de 8 anos de nome literário, Oliver Twist, filho de uma advogada que o deixa todos os dias à tarde sob os cuidados do livreiro, e um escritor que faz da loja o seu escritório. Parece ser a senha para um passeio pela literatura inglesa, com muitas citações de escritores e livros, num roteiro que enche de curiosidade um leitor mais atento. Mas, voltemos ao enredo: um dia, um livro histórico, de um desbravador inglês, antepassado de Livingstone, desaparece. Surge, então, a figura de um jovem detetive da Scotland Yard, que vai mudar a vida de Agnes. Paremos por aqui. O leitor dessas linhas já pode adivinhar o romance que irá acontecer. Não adivinhará, no entanto, como se desenrolará a história. O importante é que não é um livro em que aconteçam fatos mirabolantes, nem que se conte uma história absolutamente inédita, mas o encanto está justamente na forma divertida e, às vezes, irônica com que a autora manipula suas personagens num delicioso passeio por uma Londres distante dos romances de Charles Dickens, mas com alguns ecos do grande escritor. Mais duas observações, antes de encerrar. Primeiro, uma escritora catalã que escreve com propriedade um romance cuja história se passa em Londres nos diz muito sobre a União Europeia que os ingleses recusaram, em um plebiscito absurdo e manipulado. Segundo, a tradução que li vem de Portugal, com todo aquele delicioso sotaque lisboeta e com todo aquele léxico típico, como chamar de “montra” a vitrina da loja e tantos outros termos desconhecidos e divertidos, para nós, brasileiros, como devem ser divertidas para eles as palavras que usamos para designar as mesmas coisas. Portugal e Brasil, unidos pela mesma língua, separados pelo sotaque e pelo léxico!

quinta-feira, 25 de abril de 2024

A casa soturna, Charles Dickens

 A casa soturna, Charles Dickens



Dickens é um escritor que gosta de escrever. Isso parece algo idiota de se dizer de um escritor, mas a frase justifica a própria forma de o autor de “A Casa Soturna” desenvolver seu enredo: não economiza palavras, não “edita” o texto e leva o leitor através de suas mais de 1.300 páginas a desvendar um mundo complexo, na Londres da primeira metade do século XIX, com dezenas e dezenas de personagens que se interrelacionam. Há muitas leituras possíveis desse romance oceânico, que tem seu eixo central num processo judiciário, o caso Jarndyce e Jarndyce referente a uma disputa em torno de uma herança, de uma propriedade, que se arrasta nos tribunais há várias gerações, envolvendo os implicados, sejam herdeiros ou advogados, a uma espécie de “delírio jurídico” de falsas esperanças que leva a todos à ruína, a ódios imotivados, numa crítica ácida ao sistema jurídico inglês. Para contar essa história mirabolante, o autor usa dois narradores. Um que conta a história “de fora”, isto é, de forma mais racional e distanciada, com um profundo mergulho não só nos meandros jurídicos de advogados e juízes, mas principalmente pelas ruas sujas, lamacentas, escuras e cobertas de neblina de uma Londres povoada de seres humanos destituídos de quaisquer possibilidades de ascensão social, uma gente miserável e esquecida, envolvida em mistérios, em assassinatos e superstições. Leva-nos também às mansões, aos salões e aos hábitos de uma nobreza ainda poderosa, mas já decadente, diante da revolução industrial, cujas chaminés fuliginosas e criadoras de novas classes sociais já começam a dar seus ares de mudanças profundas. O outro narrador é uma narradora, Ester, uma jovem aparentemente órfã, cujas origens vão sendo pouco a pouco desvendadas, através de suas relações com um nobre – no sentido mais amplo da palavra - que, embora tivesse o sobrenome Jarndyce, não quer se envolver no famoso processo. Romance, crime, mistério, queda social, redenção e relações humanas complexas povoam a vida e a narrativa da jovem, até o desenlace nem sempre feliz de suas histórias e das personagens que com ela convivem. A destacar, ainda, nesta minha breve resenha, a mordacidade com que o autor trata a sociedade londrina, um humor às vezes ácido, às vezes complacente, mas sempre com um olhar crítico, neste que é considerado um dos romances mais complexos e perfeitos desse grande escritor inglês do século XIX, aquele que eu considero o século dos grandes romances da literatura ocidental. O leitor que se propuser a desbravar suas páginas não terá nada mais nada menos do que literatura de primeiríssima qualidade, que se lê com o vagar e o prazer que todo bom romance merece.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

O jardim de cimento, Ian McEwan

 

O jardim de cimento, Ian McEwan



“Não matei meu pai”: é a frase inicial de Jack que, na última linha do livro, nos fala, de forma quase abrupta, da chegada da polícia. Entre essas duas afirmativas, há toda uma história narrada em primeira pessoa por esse jovem de aproximadamente 15 anos, sobre os acontecimentos de sua família após a morte do pai, ao fazer um grande esforço físico para cimentar um caminho no jardim da casa onde ele mora com a mãe e mais duas irmãs, Sue, de 13 anos, Julie, de 17 e o irmão excepcional Tom, de 6 anos. Algum tempo após a morte do pai, a mãe, após uma longa enfermidade, também morre. Os quatro irmãos ficam sozinhos na enorme casa isolada num subúrbio qualquer. De Londres? Não há nenhuma indicação, apenas o fato de que as casas ao redor foram derrubadas para a abertura de uma rodovia cujas obras ainda não começaram. O sentimento de solidão e isolamento percorre a narrativa detalhada da vida dos irmãos: suas rotinas, suas incertezas, suas brincadeiras, suas brigas e rixas próprias de crianças e adolescentes, num crescendo de angústia que toma o leitor, mas não as personagens. Tudo é narrado de forma leve, até com uma certa irresponsabilidade. São jovens e aproveitam como podem o sentimento de liberdade que desfrutam, isolados naquela casa, até que chega um elemento estranho: um jovem, Derek, namorado de Julie, de 23 anos, jogador de sinuca e, na visão dos moradores da casa, muito rico. A estrutura familiar estranha e um tanto disfuncional criada por eles vai pouco a pouco desabando, sem que eles se deem conta, criando um suspense existencial e complexo que termina... bem, termina com a chegada da polícia. Por quê? O que eles fizeram? E por que o fizeram? Tudo fica para a imaginação do leitor, diante de mais uma pequena obra de impacto desse grande escritor moderno da velha Inglaterra, Ian McEwan, nesse romance de cores góticas, num enredo sem qualquer concessão a emoções ou ao lirismo.

terça-feira, 2 de abril de 2024

Traficantes evangélicos – quem são e a quem servem os novos bandidos de deus, Viviane Costa



Traficantes evangélicos – quem são e a quem servem os novos bandidos de deus, Viviane Costa


O fenômeno do crescimento das igrejas pentecostais, ou evangélicas, no Brasil, é conhecido por todos. Há muitas explicações para isso, desde a mudança de mentalidade de uma parcela do povo, que era católico e se desencantou com a Igreja, até a agressividade de pregação dos tais “pastores evangélicos”, com sua capacidade de acolhimento e convencimento. Um fenômeno que se espalha por todo o país, mas que se torna mais evidente em dois estados: Rondônia e Rio de Janeiro, principalmente a cidade do Rio, antes reduto de um sincretismo entre catolicismo e as religiões afro, principalmente nos morros e nas favelas, ou comunidades. E não é novidade para ninguém que os traficantes sempre se associaram a esse sincretismo, como forma de se assimilarem às populações e não serem repelidos por elas. Portanto, a nada a estranhar se, a partir dos anos 90, com a ascensão do pentecostalismo, também eles pouco a pouco migrassem para as novas práticas religiosas, pelos mesmos históricos motivos. O que este livro – Traficantes evangélicos – investiga é justamente como o surgimento de facções criminosas ligados aos cultos pentecostais modificou o comportamento das chamadas comunidades. É obvio que a carência dessas populações, abandonadas pelo poder público, torna-as reféns do poder paralelo exercido pelas organizações criminosas. Não importa que essas organizações adotem essa ou aquela crença religiosa: os métodos de dominação, de cooptação e de uma certa “proteção” ou de uma falsa impressão de segurança que os bandidos oferecem aos moradores continuam os mesmos. Quando substituem símbolos, outrora ligados às religiões de origem africana, por símbolos do novo cristianismo pentecostal, observa-se que isso é apenas uma tática de aproximação, de convencimento dessa população de que as “situação mudou” sob a bandeira de Israel, hasteada no alto do morro, ou sob a proteção de Jesus, que não admite que se venda mais a droga mais barata, o crack. Estamos falando do conjunto de favelas no norte da cidade que se constitui no Complexo de Acari, objeto de estudo da autora. Não sou crítico e não gosto de fazer crítica dos livros que aqui comento, mas estranho, e muito, quando a pesquisadora descreve com uma certa satisfação ufanista (nas entrelinhas) o fato de a bandeira de Israel tremular bem no alto do morro, e até publica uma bela foto do evento. Também estranhei quando diz que a pesquisa para o livro levou-a humanizar a figura do traficante-mor de Acari, um tal de Peixão, cujo nome não vou dizer aqui, mas está no livro. Ora, os traficantes também são seres humanos, o que nem sempre é reconhecido pelas polícias assassinas que sobem às comunidades com o único intuito de matar, de acordo com as políticas dos governos neopentecostais que – pasmem! – professam a crença de que “bandido bom é bandido morto”, algo paradoxal, na minha opinião. E só para encerrar, a autora é doutora em sociologia, com vários cursos, portanto altamente qualificada para ter feito a pesquisa que fez, e é também pastora evangélica na comunidade de Acari, o que lhe dá o lugar de fala, por viver e conviver com os moradores, principalmente os que frequentam, com certeza, os seus cultos. Um pós-escrito: embora se refira à perseguição que os neopentecostais fazem aos terreiros, aos símbolos e às imagens dos cultos de origem afro, não há no livro nenhuma palavra de condenação a tais atos, apenas a constatação objetiva de que o Rio de Janeiro é a cidade onde mais se pratica o preconceito religioso, no Brasil. Enfim, um livro para ler e refletir muito mais sobre as muitas perguntas que ele não responde...