sábado, 22 de abril de 2023

Tudo é rio, Carla Madeira

Tudo é rio, Carla Madeira

Começo plagiando Machado de Assis: só existem histórias velhas caiadas de novo. Foi mais ou menos essa a sensação que tive, quando iniciei a leitura do romance de estreia de Carla Madeira. Mesmo que a caiação, ou seja, o estilo e a forma narrativa da autora, tenha componentes estéticos diferenciadores: uma linguagem poética bem estruturada, o que torna a leitura uma agradável descoberta. Mas, a sensação de dejà vu aos poucos desvanece e a narrativa ganha foros de intrigante enredo: o triângulo amoroso que se desenha tem mais profundidade humana do que imaginamos inicialmente. A história gira em torno de duas mulheres antípodas, ambas com perfis detalhadamente traçados, muitas vezes com tintas fortes: Dalva e Lucy. A primeira é a filha de família tradicional, numa cidade do interior mineiro, recatada e “boa moça”. Apaixona-se ainda muito jovem pelo filho de um marceneiro, cujo pai tem fama de violento, e com ele acaba se casando. Já a segunda mulher, Lucy, perdeu os pais ainda muito menina e é criada pela tia num ambiente de competição com as duas filhas do casal. Muito jovem, descobre sua vocação: ser puta. Um acontecimento trágico marca a vida do casal Dalva e Venâncio e abre o leque do acaso e de a narrativa ganhar intensidade, quando esse fato leva ao estranho triângulo entre Lucy, Venâncio e Dalva. Algumas surpresas aguardam o leitor até a última página, sem que a autora deixe de conciliar sua linguagem lírica à realidade e ao destemor de dizer o que tem para dizer de forma nua e crua, sem sentimentalismo e com a habilidade dos bons escritores. Um livro forte, mas também muito agradável de ser lido.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Escravidão – volume 2 – Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de Dom João ao Brasil, Laurentino Gomes

Escravidão – volume 2 – Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de Dom João ao Brasil, Laurentino Gomes


Como apreciador e leitor de livros de História, tenho especial predileção pelo século XVIII da nossa era. Para mim, um ponto de mutação da humanidade, quando se aprofundam os conceitos humanísticos do Renascimento, quando há ainda imensas tradições medievais arraigadas na sociedade, ao mesmo tempo em que filósofos, escritores, cientistas, políticos etc. cozinham o caldo efervescente das revoluções sociais, econômicas e científicas que vão criar condições, no século XIX, para o desenvolvimento tecnológico do século XX. Se, no entanto, pudermos pespegar a esses três séculos um selo, uma palavra que os defina, sem dúvida, eu usaria a palavra “barbárie”, por mais paradoxal que seja. O ocidente – que é a porção do planeta de que estamos falando – mergulha nas guerras, nas conquistas e no crescimento populacional baseado em princípios bárbaros, dentre os quais a escravidão e o comércio de seres humanos, que somente são mitigados, em parte, no século XX, apesar de ter sido abolida a escravidão legalmente em 1888, no Brasil, o último país a fazê-lo. O segundo volume da saga escravista de Laurentino Gomes foca exatamente o século XVIII. O Brasil era ainda uma terra imensa e despovoada, com pouquíssimas vilas e cidades espalhadas em seu território. Portugal estava mergulhado em dívidas e guerras, precisando urgentemente de um desafogo para sua situação de miserabilidade, quando se descobrem ouro e diamantes na colônia, principalmente em Minas Gerais. Os portugueses sabiam fabricar açúcar (que fora o ouro dos tempos anteriores, agora sofrendo concorrência de outros países da América Central), mas eram insipientes em matéria de mineração. A solução veio da África, com a “importação” de milhares e milhares de negros escravizados e vendidos nos territórios africanos, que atulharam os navios negreiros nas rotas da miséria, do sofrimento e da morte do Atlântico, para fornecer mão de obra às minas de Minas Gerais que, em pouco mais de setenta anos, teve sua população várias vezes multiplicada. São inúmeras as histórias dessa população escravizada que povoou o país e encheu os cofres dos europeus, principalmente dos ingleses, através do pagamento por Portugal de suas dívidas e do contrabando e do saque de navios que levavam para o norte as nossas riquezas. São histórias do sangue negro que recupera as finanças da corte, pelo menos por um período, ao mesmo tempo que traz para o Brasil expertises de uma população africana que plantou aqui as sementes de nossa “civilização”, com todas as aspas devidas. E são devidas essas aspas principalmente pelo fato de que aos escravizados africanos arrancados de suas terras, provindos de várias etnias, devemos o que somos hoje, uma dívida que muitos ainda negam. Mas, sem dúvida alguma, só poderemos afirmar que nos transformamos num país menos bárbaro, quando superarmos as desigualdades sociais entre pretos, pardos, indígenas e brancos, e deixarmos de ser um povo racista. Ler “Escravidão”, a saga em três volumes (de que já foram publicados os dois primeiros) de Laurentino Gomes certamente contribui para que compreendamos nossa história e nos tornemos menos bárbaros.

domingo, 2 de abril de 2023

Escravidão – volume 1 – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares - Laurentino Gomes

 Escravidão – volume 1 – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares – Laurentino Gomes


Esqueça a história dos livros didáticos. E mesmo com todas as tintas possíveis de realidade que os novos estudos sobre a história do Brasil, principalmente relacionados à escravidão negra, pode-se pensar que a realidade foi ainda muito mais cruel. Mas, esse breve comentário sobre esse livro notável não tem por objetivo julgar os historiadores que maquiaram e maquiam para nossos jovens (eu incluso, quando estudei história, matéria pela qual sou apaixonado, diletantemente apaixonado) os fatos tenebrosos do nosso passado. Laurentino Gomes, com seu estilo claro e objetivo, nos traça dois panoramas de arrepiar: o comércio de escravos desde o seu início e a as condições dos escravizados durante a viagem para a América, principalmente. O primeiro panorama histórico – o comércio de pessoas – não deixa dúvidas de que não há, durante os quatro séculos de compra e venda de escravos entre a África e a América, nenhum personagem, nenhuma instituição que se possa considerar inocente. Governos – de Portugal e de quase todos os países da Europa –, grandes personagens históricos dos chamados “descobrimentos” do final do século XV e início do século XVI, toda a nobreza, filósofos, escritores eminentes, a Igreja Católica Apostólica Romana e demais religiões da época, muitos reis e sobas da própria África – todos, absolutamente todos estavam direta ou indiretamente envolvidos no tráfico humano, ou recebiam de alguma forma algumas benesses desse quase sempre lucrativo negócio. Calcula-se que foram escravizados – em novos cálculos, um tanto mais precisos, com novas metodologias e tecnologias, já que os registros da época não são muito confiáveis – cerca de 12 milhões de africanos, trazidos para as Américas. Desse total, uma parte substancial veio para a “terra brasilis”. Os dados e as informações todas estão lá, é só ler o livro e se arrepiar. Quanto às condições de em que eram embarcados nos navios negreiros, verdadeiras prisões flutuantes, com mínimas condições sanitárias, o retrato é ainda mais assustador do que, romanticamente, descreve Castro Alves em seu poema “Navio Negreiro”. Calcula-se que cerca de 10% dos escravizados morriam durante a jornada para o novo continente, entre a captura e a chegada. Os corpos jogados ao mar transformavam as rotas dos navios negreiros em rotas de tubarões famintos em busca da carne desses seres humanos. Enfim, a saga da escravidão negra no Brasil tem, nesse primeiro volume de uma trilogia, o possivelmente mais verdadeiro retrato em cores vivas do horror que foi o comércio dos seres humanos que povoaram e construíram com sofrimento, com seu sangue, com suas vidas, o país que hoje teima em não reconhecer a dívida monstruosa que temos para com a população de origem negra que aqui vive e também com o continente africano.