1968: o ano que não terminou, Zuenir Ventura
Não é um livro de história, mas uma longa crônica dos acontecimentos ocorridos no Brasil, no ano que a ditadura militar, através do milico de plantão no Alvorada, o marechal Arthur da Costa e Silva, decretou o famigerado Ato Institucional nº 5, o AI-5. Uma narrativa minuciosa, de alguém que foi testemunha dos fatos e, depois, vítima também do ato discricionário. Citam-se os principais acontecimentos, detalhadamente, com os nomes de todos os participantes ou, pelo menos, dos principais: gente da alta sociedade carioca, jornalistas, políticos, estudantes, escritores, compositores, artistas do teatro e da televisão, cantores, advogados etc. O ano começa com uma festa de réveillon na casa de Luís Buarque de Hollanda e sua mulher, a professora Heloísa Buarque de Holanda (um de seus livros, “26 poetas hoje”, já aqui mesmo comentamos). Foi uma festa de arromba, uma espécie de “baile da Ilha Fiscal”, o famoso baile que antecedeu a queda da monarquia. Por isso, emblemático: a queda da democracia, ou melhor, do que restava dela, não ocorreu imediatamente, como naqueles idos do Império, mas ao longo de todo o ano de 1968, quando a sociedade brasileira viu surgir para valer a incipiente oposição ao governo militar. No livro, estão relatados os preparativos, as motivações, as disputas e divergências internas da esquerda para as famosas passeatas que tomaram conta de várias capitais, principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo. Ao mesmo tempo que os estudantes lideravam esse movimento de oposição, com o apoio das classes artísticas e de alguns políticos e pessoas influentes da época, a repressão também se articulava para uma contraofensiva que se mostrou muito além do que se podia esperar, uma reação muitos pontos acima da ação de oposição que esses grupos podiam articular contra o governo. Estão relatados, por exemplo, acontecimentos emblemáticos, como a morte do estudante Edson Luís, na invasão do restaurante estudantil Calabouço, no Rio; a morte de outro estudante, mais tarde, em São Paulo, na destruição da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP, pelos estudantes do Mackenzie que formavam o CCC – Comando de Caça aos Comunistas; a prisão de centenas de estudantes no famoso XXX Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes) em Ibiúna, no interior de São; a depredação de teatros onde se levava a peça “Roda Viva” e o espancamento aos atores e atrizes que dela participavam, no Rio, em São Paulo e em Porto Alegre; o famoso discurso do deputado Moreira Alves, no Congresso, em Brasília, quando ele sugeriu, de forma até mesmo meio zombeteira e incosequente, baseado na greve de sexo das mulheres de Atenas, na peça Lisístrata (a que ele assistira), que a jovens brasileiras evitassem namorar oficiais do Exército etc. etc. etc. E foi esse discurso – uma bobagem, afinal – que irritou o oficialato e serviu de pretexto para AI-5, em 13 de dezembro de 1968, decretando o fechamento total do regime, com a prisão imediata de centenas de cidadãos e, mais adiante, com a tortura e morte de centenas de outros, opositores reais ou inventados da ditadura, numa das páginas mais negras da História do Brasil. Quando se leem os documentos e os depoimentos da época – e há um vasto material documental – não conseguimos, hoje, imaginar que “eles” foram capazes de promover tanta dor, tanta morte, tanta tortura, tanto desalento contra o próprio povo. E mais: se ligamos esse 13 de dezembro de 1968, uma aziaga sexta-feira, ao domingo 8 de janeiro de 2023, quando um bando de golpistas que estavam acampados em frente a um quartel, em Brasília marcharam contra os palácios do poder da República, depredando-os e pedindo a volta dos militares, desses mesmos militares que prenderam, torturaram, mataram centenas de concidadãos, pelo simples motivo de que não concordavam com o governo ditatorial, eu, pelo menos, passo a descrer na capacidade humana de compreensão da realidade e passo a acreditar que reina hoje, no Brasil – e no mundo – uma névoa de estupidez tão absurda, que não permite que tantas pessoas vejam no nazifascismo das ditaduras de direita o mal, se não absoluto, mas o mal mais poderoso e canalha que o um governo pode fazer contra seu povo ou contra qualquer povo. Por isso, conclamo: divulguem a literatura de narrativas dessa época, da época negra do regime militar. Quem sabe, um fósforo seja aceso na escuridão dessas mentes corroídas e corrompidas!