Os anos, Annie Ernaux
Uma autobiografia em terceira pessoa! Esse o feito extraordinário dessa que é uma das principais escritoras da França, atualmente. Aos 84 anos (nasceu em 1940), Annie Ernaux empreende uma narrativa em terceira pessoa, a partir de lembranças de sua infância no pós-guerra até o século XXI, mesclando elementos de sua vida pessoal (sempre usando o pronome “ela”), apenas, muitas vezes, sutilmente referidos, com os acontecimentos desses anos todos. Aliás, mais do que acontecimentos, fatos, pessoas, há sempre a visão pessoal da escritora, em comentários sagazes, numa escrita de estilo confessional, mas com uma alta carga de lucidez e de ironia na dose certa, sem comiseração. É claro que quase todos os fatos e quase todas as pessoas a que ela se refere aconteceram na França ou são franceses. Há muitas personalidades de época totalmente desconhecidas para nós. Há acontecimentos de que pouco ou nada ouvimos falar. No entanto, o leitor brasileiro não precisa correr atrás de cada referência: basta acompanhar a narrativa e, quando ela citar, por exemplo, uma personalidade da televisão francesa dos anos 60, basta pensar que poderia ser uma personalidade de nossa televisão mais ou menos da mesma época. Isso porque a história que ela conta é a história de todos nós que nascemos nos anos 40 ou início dos 50: tudo ou quase tudo que ocorreu na Europa, também ocorreu por aqui. É claro que a nossa penúria de pós-guerra não foi exatamente igual à penúria do povo francês, lembrada e contada pelos pais e avós da autora, mas tivemos, sim, também anos de muitas dificuldades econômicas e sociais. Por outro lado, se os franceses tiveram seus momentos de glória, com a eleição de presidentes da esquerda, também nós tivemos momentos de delírio cívico com, por exemplo, a campanha das diretas. Também a era das mudanças sociais, dos novos costumes e, principalmente, a mudança de hábito no consumo, inaugurando a era do consumismo, através do estabelecimento de novas relações entre consumidores e empresas, com o surgimento paulatino de milhares e milhares de produtos devidamente empacotados e dispostos em gôndolas assépticas de supermercados e shopping centers, o mesmo ocorreu aqui na terrinha. E todas essas mudanças repercutiram na música, nas artes, na moda, na linguagem etc. Vivemos e vivenciamos tudo isso. Acompanhamos as guerras, mesmo as que não nos diziam respeito, como algumas em que os franceses se envolveram, como a questão da libertação da Argélia. Assustamo-nos tanto quanto eles quando as famigeradas torres gêmeas de Nova Iorque vieram abaixo. Enfim, mesmo que não possamos falar de mudança de mentalidade, a segunda metade do século XX e os primeiros anos do século XXI constituem um tempo de grandes transformações na capacidade de percepção do ser humano sobre si mesmo. E essas transformações, que a autora tão bem nos leva a recordar, quase que detalhadamente, continuam, porque, como dizia a bela canção de Cazuza, “o tempo não para”. Então, leitor ou leitora dessas linhas, se quer um bom motivo para entender nosso tempo, mergulhe com prazer nas páginas dessa “autobiografia em terceira pessoa”, mesmo que você não tenha, como o autor destas linhas, vivido esses anos todos do pós-guerra e acompanhado ao vivo e em cores tudo por que passou esse nosso mundo, até chegar ao ponto de que precisamos, hoje, com urgência, frear o consumo, precisamos frear a ganância, para nos salvarmos do aquecimento global, de que a Annie Ernoux não chega a falar, mas que, com certeza, tem muito a dizer (se ainda não o disse, do alto de seus 84 anos).
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