A casa soturna, Charles Dickens
Dickens é um escritor que gosta de escrever. Isso parece algo idiota de se dizer de um escritor, mas a frase justifica a própria forma de o autor de “A Casa Soturna” desenvolver seu enredo: não economiza palavras, não “edita” o texto e leva o leitor através de suas mais de 1.300 páginas a desvendar um mundo complexo, na Londres da primeira metade do século XIX, com dezenas e dezenas de personagens que se interrelacionam. Há muitas leituras possíveis desse romance oceânico, que tem seu eixo central num processo judiciário, o caso Jarndyce e Jarndyce referente a uma disputa em torno de uma herança, de uma propriedade, que se arrasta nos tribunais há várias gerações, envolvendo os implicados, sejam herdeiros ou advogados, a uma espécie de “delírio jurídico” de falsas esperanças que leva a todos à ruína, a ódios imotivados, numa crítica ácida ao sistema jurídico inglês. Para contar essa história mirabolante, o autor usa dois narradores. Um que conta a história “de fora”, isto é, de forma mais racional e distanciada, com um profundo mergulho não só nos meandros jurídicos de advogados e juízes, mas principalmente pelas ruas sujas, lamacentas, escuras e cobertas de neblina de uma Londres povoada de seres humanos destituídos de quaisquer possibilidades de ascensão social, uma gente miserável e esquecida, envolvida em mistérios, em assassinatos e superstições. Leva-nos também às mansões, aos salões e aos hábitos de uma nobreza ainda poderosa, mas já decadente, diante da revolução industrial, cujas chaminés fuliginosas e criadoras de novas classes sociais já começam a dar seus ares de mudanças profundas. O outro narrador é uma narradora, Ester, uma jovem aparentemente órfã, cujas origens vão sendo pouco a pouco desvendadas, através de suas relações com um nobre – no sentido mais amplo da palavra - que, embora tivesse o sobrenome Jarndyce, não quer se envolver no famoso processo. Romance, crime, mistério, queda social, redenção e relações humanas complexas povoam a vida e a narrativa da jovem, até o desenlace nem sempre feliz de suas histórias e das personagens que com ela convivem. A destacar, ainda, nesta minha breve resenha, a mordacidade com que o autor trata a sociedade londrina, um humor às vezes ácido, às vezes complacente, mas sempre com um olhar crítico, neste que é considerado um dos romances mais complexos e perfeitos desse grande escritor inglês do século XIX, aquele que eu considero o século dos grandes romances da literatura ocidental. O leitor que se propuser a desbravar suas páginas não terá nada mais nada menos do que literatura de primeiríssima qualidade, que se lê com o vagar e o prazer que todo bom romance merece.
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