Verdade tropical, Caetano Veloso
O longo (mais de 400 páginas) desabafo de Caetano leva-nos de sua infância em Santo Amaro, cidade onde nasceu em 1942, até a década de 70. Porém, mais do que uma autobiografia, há muito do pensamento do autor sobre música e outros assuntos. Discorre longamente sobre as suas influências musicais, principalmente a bossa nova, confessando sua paixão por João Gilberto, mas não só ele: Caetano fala de muitos compositores e cantores do período, sempre com muito respeito e muito carinho, pois deve a muitos deles a sua própria formação como músico e cantor. É claro que, além de João Gilberto, há o destaque para os irmãos baianos, não só a Betânia (irmã de sangue), mas Gilberto Gil (a quem considera um de seus mestres) e Gal Costa. Mas são inúmeras as personagens citadas ao longo do livro, o que é uma viagem para o leitor que tenha um mínimo de conhecimento da música popular brasileira e também dos movimentos artísticos das décadas de 60 e 70 do século passado. A narrativa se concentra, no entanto, em dois fulcros: a sua prisão, dele e de Gil, em 69, e as invenções e teorias e músicas da Tropicália. Sobre a prisão, por dois meses, sem qualquer motivo que se lhes tenha sido declarado, Caetano discorre longamente. Não há, no entanto, nenhum sentimento de vitimização, há apenas o espanto e o imenso desconforto físico e mental, principalmente mental (já que os baianos não chegaram a ser torturados pelos diabos verdes da ditadura), que quase o leva à insanidade, porque não compreende, em suas divagações, em sua perplexidade, o motivo dessa prisão arbitrária, por que ele, e também Gil, embora se declarassem de esquerda, não tinham, na época, nenhuma militância política, sendo até mesmo criticados pela própria esquerda. A única participação deles na política tinha sida a famosa passeata dos cem mil, no Rio de Janeiro, algum tempo atrás. Mas, suas atitudes libertárias incomodavam, e muito, os milicos de plantão. O que é muito estranho em toda essa história é que eles foram presos em São Paulo, onde moravam, levados para o Rio de Janeiro, onde passaram por vários cárceres, sem que houvesse qualquer interrogatório oficial, ou qualquer justificativa. E, depois, mais estranho ainda, para serem soltos, foram levados para Salvador, onde tinham que cumprir uma série de medidas, inclusive a de se apresentar diariamente à Polícia Federal. Quando entraram com um pedido de levantamento das restrições, tiveram por resposta que fossem ambos embora do País, num exílio forçado. Partiram, então, para a Europa e acabaram fixando residência em Londres. Caetano não tem, em nenhum momento, qualquer palavra de lamentação ou de diatribes contra a situação por que passaram. Seu relato é frio, quase lógico, embora, paradoxalmente, se refira a momentos de quase perda da noção de si mesmo, da vida, da situação em que se encontrava. Sem dúvida, um depoimento que nos causa o desconforto da não emocionalidade dentro da insanidade em que vivia o país naqueles tempos de repressão. O outro fulcro do livro, sobre o qual ele discorre longamente, é o movimento tropicalista, principalmente suas origens e as influências que tiveram para criar um movimento que era aparentemente a antítese da bossa nova, mas continha em si todos os princípios básicos da própria bossa nova, com a assimilação, entre outras, das ideias concretistas dos poetas paulistanos Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Reflete também Caetano sobre muitas questões da época, como a sexualidade, o uso de drogas, os festivais etc. Enfim, se você tem mais de 40 ou 50 anos, vai reviver um momento complexo, contraditório e emblemático de nosso país, com todas as suas mazelas de perseguição política e de censura cultural, e, principalmente, com o desfile de inúmeros personagens que surgiram então e participaram ativamente para que o país não afundasse de vez na mediocridade verde-amarela do “ame-o ou deixe-o”, contribuindo para a sanidade de um povo que só vai ressurgir das trevas e tentar retomar seu destino sem tutela militar no final da década de 80.