sábado, 29 de junho de 2024

Verdade tropical, Caetano Veloso

Verdade tropical, Caetano Veloso


O longo (mais de 400 páginas) desabafo de Caetano leva-nos de sua infância em Santo Amaro, cidade onde nasceu em 1942, até a década de 70. Porém, mais do que uma autobiografia, há muito do pensamento do autor sobre música e outros assuntos. Discorre longamente sobre as suas influências musicais, principalmente a bossa nova, confessando sua paixão por João Gilberto, mas não só ele: Caetano fala de muitos compositores e cantores do período, sempre com muito respeito e muito carinho, pois deve a muitos deles a sua própria formação como músico e cantor. É claro que, além de João Gilberto, há o destaque para os irmãos baianos, não só a Betânia (irmã de sangue), mas Gilberto Gil (a quem considera um de seus mestres) e Gal Costa. Mas são inúmeras as personagens citadas ao longo do livro, o que é uma viagem para o leitor que tenha um mínimo de conhecimento da música popular brasileira e também dos movimentos artísticos das décadas de 60 e 70 do século passado. A narrativa se concentra, no entanto, em dois fulcros: a sua prisão, dele e de Gil, em 69, e as invenções e teorias e músicas da Tropicália. Sobre a prisão, por dois meses, sem qualquer motivo que se lhes tenha sido declarado, Caetano discorre longamente. Não há, no entanto, nenhum sentimento de vitimização, há apenas o espanto e o imenso desconforto físico e mental, principalmente mental (já que os baianos não chegaram a ser torturados pelos diabos verdes da ditadura), que quase o leva à insanidade, porque não compreende, em suas divagações, em sua perplexidade, o motivo dessa prisão arbitrária, por que ele, e também Gil, embora se declarassem de esquerda, não tinham, na época, nenhuma militância política, sendo até mesmo criticados pela própria esquerda. A única participação deles na política tinha sida a famosa passeata dos cem mil, no Rio de Janeiro, algum tempo atrás. Mas, suas atitudes libertárias incomodavam, e muito, os milicos de plantão. O que é muito estranho em toda essa história é que eles foram presos em São Paulo, onde moravam, levados para o Rio de Janeiro, onde passaram por vários cárceres, sem que houvesse qualquer interrogatório oficial, ou qualquer justificativa. E, depois, mais estranho ainda, para serem soltos, foram levados para Salvador, onde tinham que cumprir uma série de medidas, inclusive a de se apresentar diariamente à Polícia Federal. Quando entraram com um pedido de levantamento das restrições, tiveram por resposta que fossem ambos embora do País, num exílio forçado. Partiram, então, para a Europa e acabaram fixando residência em Londres. Caetano não tem, em nenhum momento, qualquer palavra de lamentação ou de diatribes contra a situação por que passaram. Seu relato é frio, quase lógico, embora, paradoxalmente, se refira a momentos de quase perda da noção de si mesmo, da vida, da situação em que se encontrava. Sem dúvida, um depoimento que nos causa o desconforto da não emocionalidade dentro da insanidade em que vivia o país naqueles tempos de repressão. O outro fulcro do livro, sobre o qual ele discorre longamente, é o movimento tropicalista, principalmente suas origens e as influências que tiveram para criar um movimento que era aparentemente a antítese da bossa nova, mas continha em si todos os princípios básicos da própria bossa nova, com a assimilação, entre outras, das ideias concretistas dos poetas paulistanos Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Reflete também Caetano sobre muitas questões da época, como a sexualidade, o uso de drogas, os festivais etc. Enfim, se você tem mais de 40 ou 50 anos, vai reviver um momento complexo, contraditório e emblemático de nosso país, com todas as suas mazelas de perseguição política e de censura cultural, e, principalmente, com o desfile de inúmeros personagens que surgiram então e participaram ativamente para que o país não afundasse de vez na mediocridade verde-amarela do “ame-o ou deixe-o”, contribuindo para a sanidade de um povo que só vai ressurgir das trevas e tentar retomar seu destino sem tutela militar no final da década de 80.

terça-feira, 18 de junho de 2024

Vulgo Grace, Margaret Atwood

 Vulgo Grace, Margaret Atwood



Grace Marks tem 13 anos quando sua família emigra da Europa para o Canadá. Durante a viagem, sua mãe morre. O pai, beberrão e irresponsável, não sabe como lidar com as três crianças, um casal mais novo e Grace. A garota consegue emprego como criada numa casa de ricos e, a partir daí, aos poucos perde contato com a família. Aos 16 anos, vamos encontrá-la trabalhando na casa de Thomas Kinnear, no interior do Canadá. Envolve-se com um dos empregados, James McDermott e, ao que tudo indica, ajuda-o a matar o patrão e a governanta, Nancy Montgomery, que está grávida de Kinnear. Presos, são condenados à forca, mas somente McDermott vai para o cadafalso, já que a garota tem a comutação da pena de morte para prisão perpétua. Com o beneplácito de um perdão, é solta após 28 anos na penitenciária e em passagens por asilos de loucos, durante os quais também trabalha, como criada, na casa dos diversos diretores do presídio, por seu bom comportamento, coisa normal nessa época. Depois de solta, vai para os Estados Unidos, onde sua trajetória não deixa nenhum rastro, nenhum documento. Esses são os fatos históricos. A partir deles e com o auxílio de uma vasta documentação, a autora ficciona a vida de Grace Marks, buscando uma resposta impossível de ser encontrada, a não ser dentro dela mesma: Grace é realmente culpada? Ou, como declaram tantas petições a seu favor, durante e após a sentença, ela era jovem demais e, portanto, possivelmente não tenha cometido os crimes ou ajudado a cometê-los, apesar do testemunho devastador de MacDermott, afirmando em várias versões para os acontecimentos que ela fora às vezes a mentora dos crimes, outras vezes a coautora, embora ele seja considerado por todos um mentiroso contumaz. Não importa. O que o livro nos traz é a vida de uma jovem que passou dos 16 aos 45 anos na prisão, dizendo que não se lembrava do que realmente acontecera no fatídico dia dos crimes e cuja mente é perscrutada por um jovem médico, o Dr. Simon Jordan, cuja história de vida se entrelaça à de Grace e cujos recursos que ele usa, da psicologia da época, são insuficientes para chegar a uma conclusão do que realmente ocorreu. Enfim, um livro que, através da história dessa jovem, no traz um belo panorama dos usos e costumes de um país jovem, o Canadá, a partir do início da segunda metade do século XIX, já que os crimes atribuídos a Grace e a MacDermott ocorreram em 1843. A premiada escritora canadense Margaret Atwood, autora de “O conto da aia” (que deu origem a uma série cinematográfica de sucesso), não nega fogo: sua prosa nos seduz do princípio ao fim.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Catch 22 (Artigo 22/Ardil 22), Joseph Heller

 Catch 22 (Artigo 22/Ardil 22), Joseph Heller



Quase 500 páginas contra a guerra e contra o capitalismo. É muito? Creio que não. Contra essas duas mazelas da humanidade, nada é excessivo em termos de crítica. Podiam ser milhares e milhares de páginas, ou apenas uma que resumisse todo o horror que as guerras e os processos capitalistas trazem à humanidade. Mas, vamos ao livro “Catch 22” (Artigo 22, em Portugal; Ardil 22, no Brasil). Yossarian é um militar estadunidense, durante a segunda grande guerra, que participa de bombardeios ao inimigo, a partir de uma base situada numa ilha fictícia da costa Italiana, Pianosa. Como comandante de bombardeiros, Yossarian está furioso, porque não consegue dar baixa e voltar aos Estados Unidos: cada vez que obtém o número de missões para isso, os militares aumentam o número de missões e ele tem que continuar a serviço. Talvez por isso, ou pelas circunstâncias da guerra, desenvolve uma mania de perseguição, em que todos querem matá-lo, não só o inimigo. Há um outro elemento fundamental em toda história: se alguém tenta encontrar uma desculpa para ser dispensado, viola o artigo 22 que, na verdade, é um ardil absurdo, uma norma burocrática hilariante e sinistra que diz que um homem é dado como doido se continuar a participar voluntariamente em perigosos voos de combate, mas se apresentar um pedido formal de dispensa é declarado mentalmente são e como tal é-lhe negada a dispensa. Enquanto a guerra e as missões se sucedem a partir da ilha de Pianosa, o autor vai nos desvendando, de forma irônica e até mesmo sarcástica, todo o horror da guerra e também as artimanhas do capitalismo. A guerra, na sua visão, é uma loucura e essa loucura é o que alimenta e estrutura a vida das inúmeras personagens que perpassam pelo livro, com suas neuroses, suas incongruências e ações absurdas. Já o capitalismo tem num dos personagens, um tenente-coronel, seu epítome de canalhice, pois esse indivíduo consegue constituir uma imensa rede comercial, para comprar e vender principalmente víveres e alimentos para as tropas com inúmeros países, até mesmo com o inimigo, chegando ao cúmulo de, num contrato com os alemães, usar os aviões que ele comanda contra o inimigo para bombardear o próprio acampamento. Há muito non sense, muitas histórias ridículas e totalmente absurdas, hilariantes algumas, trágicas outras, mas sempre com um olhar que leva o leitor a compartilhar a lógica irrefutável de que vivemos, principalmente durante um período de conflitos, num mundo absurdo, onde o ser humano é, em última análise, o seu próprio inimigo. O estilo do autor beira o humor negro, com a utilização de repetições circulares e paradoxos, que enfatizam – e eu repito o que o livro deixa claro todo o tempo – a insensatez e a loucura que são as guerras. Encerro este breve comentário sobre essa obra, que considero magnífica, esclarecendo que o tanto o título Artigo 22 quanto Ardil 22, o primeiro em Portugal e o segundo no Brasil, traduzem o termo “catch 22” que, nos Estados Unidos passou a designar uma espécie de situação sem saída, uma armadilha. Ah, sim: a edição que eu li foi a portuguesa, com todo o léxico peculiar da “terrinha”, com o que tive uma diversão extra.