quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Como água para chocolate, Laura Esquivel

 

Como água para chocolate, Laura Esquivel


“Sete anos de pastor Jacó servia /Labão, pai de Raquel serrana bela, /Mas não servia ao pai, servia a ela, /Que a ela só por prêmio pretendia”: os versos de Camões referem-se, claro, a um episódio bíblico. Uma história contada e recontada inúmeras vezes, por ficcionistas de todo o mundo, cada um com sua versão ou sua fantasia. Afinal, como disse Machado de Assis (e não vou mais citar ninguém): “Ao cabo, só existem ideias velhas caiadas de novo”. Quando, porém, a caiação é de boa qualidade, um clichê bíblico pode se tornar um grande romance. É o que fez Laura Esquivel, ao nos levar para o México do início do século XX, durante a revolução mexicana, lá para as bandas da fronteira com os Estados Unidos, para nos contar a história de amor de Tita e Pedro. Situemos o enredo: Tita é a filha mais nova da família e, sob o tacão tradicional e dominador de Mãe Helena, não pode se casar, porque deve cuidar da mãe até a sua morte. Pedro, seu grande amor, casa-se, então, com a irmã, para ficar próximo da amada. Esse o núcleo central da trama, que tem muitos personagens, mas principalmente é temperada com a inclusão a cada capítulo de receitas da culinária mexicana que, todos sabemos, é bastante picante. E a história só não é mais picante, porque tem a pena delicada e temperada por laivos de realismo fantástico da autora, surpreendendo-nos a cada momento não só com receitas mas também com episódios da revolução mexicana, tudo em torno de um elemento fundamental do livro: a cozinha. Um romance para se ler com a emoção – contida – mas bem fermentada de chiles, de amores quentes que se procrastinam, de frustrações e da descrição do dia a dia de uma família mexicana, com seus usos, costumes e tradições. Ah, sim: se você viu o filme de mesmo nome, de 1992, e (como eu) já não se lembra bem dele, só sabe que era bom, leia o livro: a literatura nos leva para os caminhos da imaginação que nenhum outro meio consegue.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O andarilho das estrelas, Jack London

 O andarilho das estrelas, Jack London


Conta-se que a mãe de Jack London era chegada a um espiritismo, ainda muito em moda na época, fim do século XIX e início do século XX, mas o escritor era totalmente cético. No entanto, embarcou neste romance estranho, baseado nos manuscritos de um ex-detento de San Quentin, que usava a auto hipnose para suportar as torturas e viajar no tempo, recordando vidas passadas. Portanto, estamos diante de um longo relato de reencarnações, além da capacidade extraordinária da personagem de sobreviver a uma situação de extremo sofrimento. Danell Standing, um professor de Agronomia que matou um colega de faculdade, aprendeu a técnica para escapar da tortura e das dores provocadas pelos castigos a ele infringidos pelo diretor da prisão, ao colocá-lo seguidamente numa camisa-de-força para confessar um crime que não cometera. O caso foi que um detento inventou uma história de fuga da prisão e envolveu um grupo de prisioneiros no seu plano. Quando todos foram surpreendidos em situação de fuga, esse prisioneiro inventou que havia 15 quilos de pólvora escondidos, mas quando foi levado ao local onde deveria estar a pólvora, acusou Danell Standing de tê-la escondido em outro local que só ele sabia qual era. Como não podia confessar o que não existia, sofreu anos de tortura nas mãos do diretor, até que, por supostamente agredir um guarda, foi condenado à forca. As viagens por outras vidas são relatadas minuciosamente, com aventuras que remontam aos primórdios da humanidade. São, em sua maioria absoluta, histórias de sofrimento e superação, que o ajudam a resistir aos sofrimentos do presente. No entanto, não resiste o autor em relatar um momento especial na corte de Pilatos, durante o período de prisão de um pregador judeu, Jesus. Por esse relato, que nada acrescenta de novidade à história oficial, podemos desconfiar da capacidade imaginativa do narrador e, como há apenas sua palavra, registrada nos tais manuscritos (que dizem estar expostos no Museu da Filadélfia), somos levados a exaltar a capacidade ficcional de Jack London neste livro, que é bastante empolgante, quando entramos no jogo inventivo que nos propõe e aceitamos suas regras, por mais absurdas que sejam as duas premissas: a capacidade de assimilar e superar as dores da tortura extrema e a recordação de vidas passadas, através da auto hipnose.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

2666, Roberto Bolaño


2666, Roberto Bolaño

Vou iniciar esta resenha com uma pergunta: qual a diferença entre ler um romance de quase 1.300 páginas ou ler quatro romances de 300 páginas? Quando li “Em busca do tempo perdido” que, dependendo da edição, varia entre 3.000 e 4.000 páginas, tive o mesmo prazer que tivesse lido vários livros que somassem esse mesmo número de páginas. E você, caro leitor ou leitora eventual desse blog? O que pensa? Bem, vamos ao livro de hoje, que alcança, na edição que li, 1.291 páginas (por isso a pergunta acima). É um livro único, embora composto, na verdade, de cinco partes quase independentes, diante da variedade de narrativas que usa o autor para nos contar uma história complexa, que parece se perder pelo meio do caminho, mas sempre se acha e termina fazendo todo o sentido, como uma colcha de retalhos que só revela sua beleza depois de pronta. O autor vai nos encantando, no entanto, com sua forma peculiar de nos envolver nesse enredo fabuloso, como deve ser todo grande romance. Os temas centrais da obra são a violência do ser humano e a literatura, não necessariamente a literatura como redenção, mas talvez como escape de um mundo em que a convivência pacífica, tanto em termos pessoais, quanto em relação a povos e nações, ainda é uma utopia. Podemos resumir assim as cinco partes do livro (ou os cinco romances internos da obra): 1. A parte dos críticos: quatro especialistas em literatura investigam o autor Benno von Archimboldi, sem fotos e localização conhecida. 2. A parte de Almafitiano: um professor mexicano volta a lidar com seus problemas existenciais. 3. A parte de Fate: um jornalista esportivo acaba se envolvendo com crimes contra as mulheres na cidade de Santa Teresa (uma ficcionalização da Ciudad Juárez). 4. A parte dos crimes: os crimes de Santa Teresa são narrados com uma frieza e seriedade próprios da linguagem jornalística das páginas policiais. 5. A parte de Archimboldi: o leitor se torna testemunha da vida e da trajetória do autor desconhecido, principalmente sua participação na Segunda Guerra Mundial. Que não se preocupe o leitor em buscar, durante a leitura de qualquer uma das partes, as relações ente elas: tudo só fará algum sentido (se é que a boa literatura precise fazer algum sentido) praticamente nas páginas finais do livro. E então, irá o leitor compreender que a aventura empreendida terá valido a pena. Que esse romance, com um nome cabalístico de 2666, escrito por um autor chileno (que viveu a maior parte de sua vida na Espanha) resgata a tradição dos grandes romances da América Latina, numa chave, agora, ultrarrealista, fugindo avassaladoramente da literatura fantástica que notabilizou tantos escritores de nosso continente. Portanto, meu amigo e minha amiga, eventuais leitores desse blog, se o número de páginas tiver qualquer interferência ou fizer você relutar na leitura desse grande livro, grande em todos os sentidos, pense na pergunta que lhe fiz no início desta resenha. E empreenda a viagem. Você, certamente, não se arrependerá. Lembre-se: não há tempo perdido na leitura de um grande livro, só tempo ganho.