segunda-feira, 7 de abril de 2025

Joana a contragosto, Marcelo Mirisola



Joana a contragosto, Marcelo Mirisola

O narrador é uma espécie de alter ego do autor, nesta autobiografia que não é uma biografia, mas apenas o relato do que ele chama de um “pé na bunda”, isto é, o rompimento de uma relação amorosa brevíssima. A história, ou o enredo, é muito simples: um escritor paulista famoso troca e-mails com uma fã carioca muito bonita, que lhe envia fotos eróticas de seu corpo. Marcam um encontro num hotel vagabundo no Rio, trepam durante toda a noite e, no dia seguinte, ela o deixa, dizendo que o ama, mas não sente tesão por ele, que se apaixonara perdidamente pela mulher vinte anos mais jovem do que ele, que tem 40. Todo o livro gira em torno da obsessão do narrador por essa mulher, Joana, ou Natércia, ou seja lá que nome possa ter, e suas tentativas frustradas de reconquistá-la. Um solilóquio de quase duzentas páginas que se sustentam na palavra, ou seja, na capacidade do autor de nos envolver em suas digressões, às vezes caóticas, às vezes engraçadas, usando e abusando de metáforas e de uma linguagem extremamente criativa, capaz criar elementos de non sense e de reflexões que beiram o absurdo, mas que fazem todo o sentido, dentro do contexto de sua paixão. Não há outras personagens, somente ele e Joana, a mulher que a contragosto o ama, mas não o deseja. As referências a pessoas reais dão um toque surreal à narrativa, levando o leitor a imaginar ou até a acreditar que, paradoxalmente, o apaixonado possa ser ao mesmo tempo uma personagem fictícia e uma pessoa real, num jogo realmente divertido e prazeroso de se jogar com o autor. Um livro bom de ler, num fim de semana de outono, principalmente chuvoso e frio. Ou em qualquer fim de semana de ócio criativo...

sexta-feira, 4 de abril de 2025

A forma da água, Gillermo del Toro e Daniel Kraus

A forma da água, Gillermo del Toro e Daniel Kraus


Anos 60, em plena guerra fria, o oficial do governo estadunidense Richard Strickland passa 17 meses na Amazônia, para capturar o deus Brânquia, uma espécie de homem-peixe, cultuado pelos indígenas. Preso no aquário de uma organização militar, a Occam, seu destino é ser morto para ter seus poderes inimagináveis estudados e utilizados para fins bélicos. Poucas pessoas têm acesso à câmara onde está a criatura, chamada de “recurso” pelos militares e cientistas, entre elas as faxineiras Elisa, uma jovem muda que tem fetiche por sapatos, e Zelda, uma negra de meia idade. Elisa consegue comunicar-se com o deus Brânquia e com ele estabelece uma espécie de diálogo mudo e de mútuo respeito. Diante do destino trágico da criatura, Elisa resolve encontrar um meio de libertá-lo. Para isso, vai contar com a ajuda de um velho e decadente publicitário e pintor gay e ainda com a ajuda improvável de Zelda. Enquanto isso, o cientista encarregado dos estudos da anatomia de Brânquia, por ser um espião russo infiltrado, recebe a incumbência de liquidá-lo, para que os Estados Unidos não obtenham vantagens na guerra fria, com os poderes do deus. Em capítulos curtos e tensos, toda a história é contada com requintes barrocos que lembram os cipós e as lianas da floresta tropical. Cumpre anotar que a inspiração para o deus Brânquia veio de um clássico antigo de terror, “O monstro da lagoa negra”, de 1954. Mas os autores vão subverter o gênero “monstro que precisa ser destruído” (e sempre o é), além de apresentar como protagonistas uma faxineira muda, um publicitário idoso gay e uma negra; e como antagonista um militar cujo passado tenebroso na guerra do Vietnã o torna submisso a um oficial de alta patente. O final da luta entre a sanha assassina de Strickland e Elisa, a frágil jovem disposta a se sacrificar pela beleza e pela liberdade de um deus misterioso e improvável, tem cenas de tensão e beleza que tornam a leitura dessa obra um prazer total e absoluto para os aficionados do gênero fantasia de terror. Encerro essa breve resenha lembrando que o filme de mesmo nome do livro, dirigido por Gillermo del Toro, teve grande repercussão na época em que foi lançado, em 2017, vencendo vários prêmios, inclusive quatro categorias do Oscar: melhor filme, melhor diretor, melhor trilha sonora e melhor direção de arte. Veja o filme, se ainda não o viu, mas leia o livro.