quarta-feira, 23 de abril de 2025

Enquanto agonizo, William Faulkner

 Enquanto agonizo, William Faulkner


O enredo é bastante simples: Audie Bundren agoniza e morre vendo o filho mais velho, Cash, a martelar as tábuas do caixão em que será enterrada. Anse, seu marido, diz que seu último desejo é ser enterrada na cidade vizinha onde teriam morado seus parentes. Para cumprir essa palavra a q ualquer custo, empreende com os filhos uma viagem absurda através de uma tempestade, atravessando a vau o rio cuja ponte estava coberta pela enchente, durante 9 dias, em que Cash quebra a perna, o outro filho, Darl, enlouquece e põe fogo num celeiro onde a família se abrigava e a filha mais nova pretende abortar o filho. Essa história, no entanto, é contada na forma de um mosaico de 59 monólogos, sem muita ordem cronológica, os quais focalizam a mente e os pensamentos das 15 personagens. Até Addie Bundren tem um monólogo, fundamental, para se compreender ou tentar entender as motivações de Anse, quando se revela que um de seus filhos, Jewell (“joia”, em inglês), seu preferido, é fruto de um adultério com o reverendo Whittfield. Esses monólogos vão nos desvelando a história dessa família de sulistas brancos e pobres, seus afetos e seus ódios, suas motivações e desejos, seus desesperos e esperanças, diante de uma natureza inóspita do interior dos Estados Unidos, possivelmente na primeira metade do século XX. Os urubus que acompanham a comitiva, já que o cadáver da mãe entra em decomposição, dão bem a ideia a situação dos Bundren, escorraçados de cada aldeia e de cada grupo de pessoas de que eles se aproximam. O final do livro nos fornece uma chave preciosa para nossa imaginação – atiçada, aliás, durante toda a leitura – quando Anse apresenta aos filhos sua nova esposa com um sorriso aberto a mostrar a dentadura nova. Enfim, um dos romances mais extraordinários da literatura estadunidense, desse que é considerado um de seus maiores escritores.

sábado, 19 de abril de 2025

Como e por que ler, Harold Bloom

Como e por que ler, Harold Bloom

Professor e crítico literário, Bloom, por dever de ofício, foi um leitor voraz, de uma erudição realmente impressionante. Por isso, este livro traz a assinatura de uma autoridade inconteste, para guiar o leitor – de ocasião ou de obrigação – pelo fascinante mundo do conto, do romance, da poesia e das peças teatrais, através da análise e dos comentários que ele tece sobre grandes mestres da literatura universal e, claro, principalmente, da literatura estadunidense, já que é de lá a maioria de seu público. Defensor de uma leitura que contemple principalmente a satisfação e o enriquecimento pessoal, não é muito afeito a análises políticas e sociológicas, deixando essas camadas que podem ser encontradas nos grandes mestres em segundo lugar. Considera Shakespeare o farol de toda ou quase toda a literatura ocidental, destacando sua influência em inúmeros autores que constituem o ideário e a obrigatoriedade de todo leitor que se preze, como Melville, Dickens, Proust, Dostoievski, Wilde, Hemingway, Austen, Morrison, Blake, Robert Browning, Dickinson, Brontë, Shelley, Keats etc. etc. etc. O livro é dividido em, basicamente, cinco partes, cada uma dedicada a um gênero literário: romance (duas partes), conto, poesia e peças teatrais. Suas análises e observações são sempre instigantes e constituem, para qualquer leitor aficionado da boa literatura, um guia precioso, não só para a leitura das obras citadas e recomendadas, mas de quaisquer outras obras que venha a gostar de ler, pois, o importante para Bloom é fazer da leitura um hábito prazeroso e de formação pessoal, em todos os sentidos. Ao ensinar como e por que ler, Harold Bloom acaba deixando também, nas entrelinhas, algumas dicas importantes para quem escreve. Entre as pistas que semeia para leitores e escritores estão: livrar a mente dos chavões profissionais, não tentar melhorar o caráter alheio pelo que lemos ou escrevemos e, sobretudo, resgatar a ironia. “Uma vez destituída de ironia” - afirma Harold Bloom – “a leitura perde, a um só tempo, o propósito e a capacidade de surpreender”. Sem dúvida, um livro para constar do panteão deste blog, se este blog tivesse um panteão de livros ilustres e mais importantes.

sábado, 12 de abril de 2025

Dedico a você meu silêncio, Mario Vargas Llosa



Dedico a você meu silêncio, Mario Vargas Llosa


Toño Azpilcueta tem paixão pela música de seu país, o Peru. Escreve artigos em revistas e jornais de pouca circulação e tem seu público restrito, mas de admiradores fiéis, que o consideram um mestre, embora ele não toque nenhum instrumento, não cante nem consiga trocar três passos numa dança. Um dia recebe o convite para um sarau onde, segundo lhe dizem, vai-se apresentar o maior violonista do país, um tal de Lalo Molfino, que Toño não conhece. Ao ouvir o som do violão de Lalo, ele admite que aquele rapaz franzino e estranho é mesmo o melhor violonista que ouvira tocar, um talento impressionante. Como fica sabendo que ele vai sair em turnê, com um grupo de músicos, tenta seguir sua carreira em jornais e revistas especializadas, mas nada encontra. Incomodado com o silêncio da mídia sobre tão grande talento, vai atrás de informações e descobre que o violonista morrera na pobreza e desconhecido. Inconformado com a insensibilidade de seu país para com o maior talento que já pisara aquelas terras, Toño resolve tirar do anonimato o nome de Lalo Molfino. Para isso, embarca numa jornada para o interior, atrás de informações sobre o violonista, a fim de escrever um livro sobre ele. Pouca coisa consegue obter sobre suas origens humildes, abandonado que fora quando bebê num lixão, encontrado pelo padre da paróquia e por ele criado, inclusive herdando seu sobrenome. Mas, Toño tem a ambição de, através da biografia de Lalo, desenvolver uma tese que lhe muito cara: que a música popular peruana, principalmente a valsa, cuja origem se perde no tempo, teve e tem o condão de unir o país, engolfado em lutas fratricidas e pela guerrilha do Sendero Luminoso, e transformar o Peru num país digno das grandes nações. Será essa a sua luta a partir de então e é essa a ideia central da história, contada em capítulos que se alternam com uma espécie de crônicas do autor, nas quais Vargas Llosa discorre sobre a origem das várias modalidade de músicas cultivadas pelo povo, suas festas, seus nomes mais importantes e sobre a sociedade limenha, seus usos e costumes, numa viagem que complementa o estado de delírio de sua personagem, levando o leitor a conhecer aspectos muito interessantes da história de um país latino e andino de que nós, brasileiros, temos poucas informações, por não falarmos a mesma língua que os demais países da América Latina, como se a barreira linguística fosse um impedimento para nossa integração com los hermanos, ignorando uma grande parte de um continente que tem um passado e uma cultura muito rica e ignorando que compartilhamos um histórico comum de colonialismo e dependência dos países mais ricos e que, por tudo isso, devíamos olhar mais uns para os outros. Enfim, uma obra que se lê com o prazer de descobertas cativantes, além da própria trajetória dessa personagem fantástica, porque quixotesca, que luta contra moinhos de vento de preconceitos e indiferença, que é Toño Azpilcueta.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Joana a contragosto, Marcelo Mirisola



Joana a contragosto, Marcelo Mirisola

O narrador é uma espécie de alter ego do autor, nesta autobiografia que não é uma biografia, mas apenas o relato do que ele chama de um “pé na bunda”, isto é, o rompimento de uma relação amorosa brevíssima. A história, ou o enredo, é muito simples: um escritor paulista famoso troca e-mails com uma fã carioca muito bonita, que lhe envia fotos eróticas de seu corpo. Marcam um encontro num hotel vagabundo no Rio, trepam durante toda a noite e, no dia seguinte, ela o deixa, dizendo que o ama, mas não sente tesão por ele, que se apaixonara perdidamente pela mulher vinte anos mais jovem do que ele, que tem 40. Todo o livro gira em torno da obsessão do narrador por essa mulher, Joana, ou Natércia, ou seja lá que nome possa ter, e suas tentativas frustradas de reconquistá-la. Um solilóquio de quase duzentas páginas que se sustentam na palavra, ou seja, na capacidade do autor de nos envolver em suas digressões, às vezes caóticas, às vezes engraçadas, usando e abusando de metáforas e de uma linguagem extremamente criativa, capaz criar elementos de non sense e de reflexões que beiram o absurdo, mas que fazem todo o sentido, dentro do contexto de sua paixão. Não há outras personagens, somente ele e Joana, a mulher que a contragosto o ama, mas não o deseja. As referências a pessoas reais dão um toque surreal à narrativa, levando o leitor a imaginar ou até a acreditar que, paradoxalmente, o apaixonado possa ser ao mesmo tempo uma personagem fictícia e uma pessoa real, num jogo realmente divertido e prazeroso de se jogar com o autor. Um livro bom de ler, num fim de semana de outono, principalmente chuvoso e frio. Ou em qualquer fim de semana de ócio criativo...

sexta-feira, 4 de abril de 2025

A forma da água, Gillermo del Toro e Daniel Kraus

A forma da água, Gillermo del Toro e Daniel Kraus


Anos 60, em plena guerra fria, o oficial do governo estadunidense Richard Strickland passa 17 meses na Amazônia, para capturar o deus Brânquia, uma espécie de homem-peixe, cultuado pelos indígenas. Preso no aquário de uma organização militar, a Occam, seu destino é ser morto para ter seus poderes inimagináveis estudados e utilizados para fins bélicos. Poucas pessoas têm acesso à câmara onde está a criatura, chamada de “recurso” pelos militares e cientistas, entre elas as faxineiras Elisa, uma jovem muda que tem fetiche por sapatos, e Zelda, uma negra de meia idade. Elisa consegue comunicar-se com o deus Brânquia e com ele estabelece uma espécie de diálogo mudo e de mútuo respeito. Diante do destino trágico da criatura, Elisa resolve encontrar um meio de libertá-lo. Para isso, vai contar com a ajuda de um velho e decadente publicitário e pintor gay e ainda com a ajuda improvável de Zelda. Enquanto isso, o cientista encarregado dos estudos da anatomia de Brânquia, por ser um espião russo infiltrado, recebe a incumbência de liquidá-lo, para que os Estados Unidos não obtenham vantagens na guerra fria, com os poderes do deus. Em capítulos curtos e tensos, toda a história é contada com requintes barrocos que lembram os cipós e as lianas da floresta tropical. Cumpre anotar que a inspiração para o deus Brânquia veio de um clássico antigo de terror, “O monstro da lagoa negra”, de 1954. Mas os autores vão subverter o gênero “monstro que precisa ser destruído” (e sempre o é), além de apresentar como protagonistas uma faxineira muda, um publicitário idoso gay e uma negra; e como antagonista um militar cujo passado tenebroso na guerra do Vietnã o torna submisso a um oficial de alta patente. O final da luta entre a sanha assassina de Strickland e Elisa, a frágil jovem disposta a se sacrificar pela beleza e pela liberdade de um deus misterioso e improvável, tem cenas de tensão e beleza que tornam a leitura dessa obra um prazer total e absoluto para os aficionados do gênero fantasia de terror. Encerro essa breve resenha lembrando que o filme de mesmo nome do livro, dirigido por Gillermo del Toro, teve grande repercussão na época em que foi lançado, em 2017, vencendo vários prêmios, inclusive quatro categorias do Oscar: melhor filme, melhor diretor, melhor trilha sonora e melhor direção de arte. Veja o filme, se ainda não o viu, mas leia o livro.