A Casa da Vovó , Marcelo Godoy
Se o título – A Casa da Vovó – sugere um conto de fadas ou um romance açucarado, o subtítulo entrega o verdadeiro significado e sentido do livro: “Uma biografia do DOI-CODI (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar: histórias, documentos e depoimentos inéditos dos agentes do regime”. Numa obra alentada por uma vasta documentação, realmente o autor vai até além do que se propõe: vai às origens do ovo da serpente, sua concepção “filosófico-teórica” e o aproveitamento das técnicas de tortura desenvolvidas por ocasião da guerra da Argélia, pelo exército francês, devidamente copiadas e aperfeiçoadas por nossos diligentes aprendizes, aqui e em outros países de nossa triste América de ditadores com sangue nos olhos e o poder nas mãos. Em seguida, descasca-se o ovo e traz à luz da verdade todo o serpentário da prisão, tortura e morte no centro de horrores criado no bairro central da cidade de São Paulo, durante o regime militar. Os cães de guerra – policiais militares a mando de oficiais do exército – não saíam às ruas para capturar opositores do regime militar, mas para caçá-los e matá-los impiedosamente, num dos capítulos mais negros de nossa história. Somente capturavam e prendiam aqueles de quem lhes interessava arrancar informações sobre os movimentos de esquerda. E essas informações só se obtinham com as mais variadas e terríveis formas de tortura, nas celas da famigerada “casa da vovó”, ou “açougue”, como também era chamada. Estão no livro todos os nomes de torturadores e torturados. Todos os mortos e desaparecidos. A porta do inferno está aberta a todos que desejem se informar sobre o verdadeiro horror escondido sob o tapete da ditadura militar durante os chamados “anos de chumbo”. O objetivo da tortura é desumanizar o torturado, para que ele, destroçado em sua identidade física e mental, delate seus companheiros e entregue informações. Mas, ao mesmo tempo, o torturador também se desumaniza, num sentido muito mais profundo, transformando-se em monstros sanguinários e vingativos. Na “guerra”, como foi caracterizado o período, há perdas de ambos os lados, mas o lado da força, o lado do policial militar desumanizado pela transformação do outro em inimigo a ser aniquilado a qualquer custo, deseja vingança a cada morte em suas fileiras e parte para a retaliação em que não é “olho por olho”, mas o maior número de mortos possível para cada baixa. Esse DNA está em nossa polícia militar até hoje, o que explica uma polícia que atira primeiro e pergunta depois, vendo em cada cidadão não uma ser humano igual a ele, mas uma possível ameaça ou um bandido. Defender os torturadores e seus comandantes da época da ditadura devia ser, hoje, crime de lesa-humanidade e todo indivíduo que tenha como ídolo um ser repelente como Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante da “casa da vovó” durante o período mais negro de sua história, devia ser considerado ou louco ou neonazista e jamais chegar ao posto máximo da Nação. Aos que defendem a volta dos militares para “pôr ordem na casa” deviam ler e reler esses depoimentos e relatos, para deixarem de pensar e defender tal estupidez. E os cretinos defensores da famigerada “autocrítica da esquerda” deviam estudar esse período, para tomarem consciência do processo por que passaram as hostes esquerdistas desse país. Não foram apenas presos, mas todas as lideranças foram exterminadas, todos os simpatizantes foram perseguidos, presos, torturados e expulsos do país. Fazer autocrítica de quê? Para dizer que a esquerda errou ao se deixar matar, ao se deixar prender, ao se deixar torturar, ao se deixar perseguir pelos cães ferozes da ditadura militar? Leiam, leiam A CASA DA VOVÓ todos os que sabem dos fatos, mas não de seus detalhes; todos os que desconfiavam, mas não tinham certeza da crueldade de nossos bravos militares; todos os que não viveram essa época, mas precisam conhecer como eram os tempos de seus pais e avós; leiam, enfim, todos aqueles que, por um momento de loucura ou estupidez, bateram panelas para pedir a volta dessa corja de monstros que atrasou o desenvolvimento de nosso país em muitas décadas, simplesmente com a mentira absurda e estúpida do medo do “perigo vermelho”. A nossa atual democracia, frágil ainda, está assentada sobre o sangue de milhões de brasileiros – não só os milhares de mortos e desaparecidos pelos vampiros da ditadura militar, mas também os milhões que foram jogados na sarjeta da miséria pelas políticas econômicas adotadas pelos militares, ao forjarem aquela mistificação que foi o “milagre econômico”. Milagre para as elites, que ficaram ainda mais poderosas e ricas, à custa do empobrecimento não só econômico, mas intelectual e mental de nossa população.
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