Os Miseráveis, Victor Hugo
Romances são como as águas. Existem aqueles que são como lagos banhados à luz da lua, claros e belos. Outros são como rios e aí há várias subcategorias, desde riachos calmos a rios caudalosos e encachoeirados. Vastos como o Amazonas ou breves como o rio da aldeia de Fernando Pessoa. E há romances que são mares de águas profundas e calmas ou de águas turvas e revoltas; exigem os primeiros a paciência do explorador, exigem os segundos a argúcia e persistência do navegador; alguns, nem conseguimos neles mergulhar totalmente, por toda a sua complexidade. E há os romances oceânicos, imensos. Alguns nos levam em quase constante calmaria e pedem o olhar atento para os detalhes e as correntes, para se chegar a porto seguro. Outros, porém, podem exigir de quem os navega a coragem para os momentos de borrascas e a argúcia para os momentos de calmarias; agilidade para enfrentar correntezas e o olhar atento para as águas turvas. Enquadra-se nesta categoria o romance oceânico de Victor Hugo. Não há remissão para quem solta a imaginação por suas páginas: a viagem será longa, mas inexorável. Desde as primeiras páginas, as personagens, os acontecimentos, as peripécias nos envolvem e nos arrebatam. Mesmo nos momentos de calmaria, quando emergem apenas as diatribes ou as longas considerações do autor, não há como despregar os olhos dos instrumentos de navegação ou do mar ao redor. Impossível esquecer Fantine, Dom Bienvenu, os rapazes inconsequentes e românticos das farras juvenis; e depois, os Thénardier, Gavroche, Mabeuf; e principalmente, Marius, Cosette, Javert... E o herói, o protagonista, talvez o mais romântico dos heróis do século XIX, Jean Valjean, enviado às galés por roubar um pão, preso por 19 anos, perseguido por um inimigo implacável, acusado de roubo e assassinato, o homem que enriquece melhorando a vida de toda uma comunidade, mas que é obrigado a mergulhar de novo na clandestinidade, que resgata da morte o amor de sua filha adotiva, incapaz de fazer o mal e que, por fim, por isso mesmo leva à morte aquele que o perseguiu durante toda a vida. Jean Valjean é o herói que nos conduz por um amplo panorama da vida na França na metade do século XIX e abre para a literatura e para todo o mundo o olhar do autor – às vezes ainda "ingênuo", sem, talvez a perspicácia de Marx – sobre os miseráveis, os perseguidos, os injustiçados, até então esquecidos tanto pela burguesia ascendente quanto pelos governos mais ou menos despóticos de reis e imperadores só preocupados com sua própria grandeza. O povo sai do esgoto, como Jean Valjean num dos momentos mais impactantes do livro, ao carregar o corpo semimorto de Marius pelos subterrâneos de Paris, para assumir a protagonia da história, ainda que não sua redenção nos tempos que se seguiram, de lutas acirradas por melhoria de vida, num combate de trincheiras e de guerrilhas que continua desde o final do século XVIII, acirra-se no século XIX e XX e permanece aceso até agora, em pleno século XXI, quando os miseráveis de Victor Hugo ainda clamam por terra, por trabalho e salários dignos e até mesmo por sobrevivência, não só nos campos, mas principalmente nas favelas e periferias de cidades de todo o mundo.
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