A assustadora história da medicina, Richard Gordon
Publicado em 1993, não incorpora, claro, os avanços da ciência médica dos últimos 25 anos, o que daria ao autor, possivelmente, mais combustível para o incêndio que ele provoca, com sua história da medicina. Claro, também, que o autor era médico, embora se dedicasse – e muito – à “literatura médica”, ou algo assim, ou seja, a histórias ligadas à medicina. Seu estilo tem um profundo “humour” britânico, tão britânico que, possivelmente, até os próprios britânicos devem ter tido alguma dificuldade em entendê-lo ou, até mesmo, em rir com suas ironias e sarcasmos demolidores. Porque a história da medicina não é para rir, muito pelo contrário: exige espíritos fortes e estômagos mais fortes ainda. Quando se diz que de médico e de louco, todos temos um pouco, na verdade os médicos e suas práticas loucas é que são mais loucos do que poderia até mesmo imaginar o velho bardo inglês, também ele possivelmente sobrevivente da medicina de sua época. Perpassa a obra – que se concentra, principalmente, na história da medicina europeia e inglesa dos últimos quinhentos anos – a ideia de que se ministravam remédios de cujos efeitos os médicos não tinham a menor ideia, para curar doenças de que eles não tinham absolutamente nenhum conhecimento. Curandeirismo, bruxaria, ideias extravagantes, remédios improváveis, cirurgias absurdas, modismos e muitas outras práticas absurdas perfilam esses tempos de ignorância não só do próprio corpo humano, mas também do motivo por que adoecemos. Uma lista infindável de “heróis” da medicina, figuras que hoje são consideradas luminares da arte médica, por terem feito descobertas importantes no terreno da ciência, foram também useiros e vezeiros em experiências e práticas que hoje fariam corar qualquer estudante de primeiro ano de medicina. Somente a partir do final do século XIX, com a descoberta dos organismos invisíveis – bactérias, vírus, fungos etc. – é que se pôde dar passos decisivos para superar o medievalismo e as práticas obscurantistas. Há que se ressaltar ainda, com toda a verve do autor, que muitas descobertas importantes só se realizaram por obra e graça do acaso, e muitas histórias desses feitos são realmente dignas de filmes de pastelão ou estão eivadas de interesses escusos e de objetivos inconfessáveis. Mesmo hoje, com todo o avanço da ciência, com o desenvolvimento da genética, do avanço da indústria farmacêutica, com a inclusão de técnicas operatórias impensáveis há alguns anos, com a possibilidade de uso de máquinas e robôs em cirurgias e detalhamentos do ocorre em nosso organismo, com exames laboratoriais sofisticados, a medicina ainda tateia em vários aspectos, como na atual pandemia do novo corona vírus. Em pleno século XXI, em que essa pandemia ameaça nos jogar de volta para o século XIII, há ainda muita gente descrente da medicina e dos médicos, mas todos, absolutamente todos nós, corremos para os braços de nossos médicos assim que algum mal nos assola. Porque não há saída: ou confiamos na medicina – que é feita por seres humanos falíveis – ou não termos saída para a atual situação. Mesmo que nos arrepiemos com essa assustadora história da medicina, e que talvez daqui a um século haja um outro escritor a zombar de nosso atual estágio científico e médico, é a ciência que nos pode devolver a fé no ser humano e garantir que um organismo unicelular, invisível a nossos olhos, não nos devolva a momentos trágicos do passado da humanidade, quando os corpos empilhados nas ruas e as práticas que prometiam curar mais matavam do que realmente curavam. Sem ironia, vou ler, ou melhor, reler, em seguida, “A Peste”, de Albert Camus.
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