À espera dos bárbaros, J. M. Coetzee
Num momento em que não só estamos à espera dos bárbaros, mas vivemos em plena barbárie proveniente de um grupo político que não é apenas bárbaro, mas detém o poder e colabora para que ideias absurdas e medievais proliferem entre a população; num momento em que somos assolados por uma pandemia mortal e por mudanças climáticas que elevam a temperatura de vastas regiões do país e modificam seu clima; num momento em que, aproveitando-se da impunidade imposta por esse governo estúpido e negacionista, centenas de indivíduos inescrupulosos ligados ao baixo agronegócio, a madeireiros e a garimpeiros aproveitam-se da falta de chuvas para incendiar nossas matas, invadir terras indígenas e matar nossos índios, a reflexão proposta pelo escritor sul-africano Coetzee em “À espera dos bárbaros” torna-se extremamente atual e como que modelada para a nossa realidade. A história do livro pode assim ser resumida: num lugarejo da província de um império sem nome, um magistrado já idoso cumpre seus deveres cotidianos, à espera da aposentadoria e da morte. Tudo muda com a chegada de um coronel truculento que vem da capital para investigar e reprimir uma suposta invasão dos bárbaros que vivem além das fronteiras imperiais. A partir daí, o pacato magistrado é obrigado a assistir a uma sucessão de horrores sem fim (torturas, execuções etc.) praticados contra suspeitos e inocentes, em nome da segurança do império. Os temidos bárbaros reais nunca apareceram, mas a lição que fica é: nós somos os nossos próprios bárbaros. E mais: as forças militares que vieram para proteger o povo são as forças que o oprimem, o que nos leva a pensar para que servem os militares, e a concluir que sua existência é o próprio mal. Talvez eu extrapole o autor, ao chegar a essa conclusão, mas não posso deixar de registrar o fato de que há muito venho desenvolvendo a teoria – que me pareceu esboçada no romance – de que um dos grandes males do mundo, ao lado das superstições religiosas, foi a invenção dos exércitos e a criação das guerras. Para nada servem as tais “forças armadas”, a não ser para oprimir e matar, ou o “inimigo” externo, que é sempre aquele visto como diferente por um poder dominante corrupto e estúpido, ou – o que ainda pior – o “inimigo” interno, aquele que se opõe a um regime vigente, não importa sua coloração ideológica. A tal “garantia da lei e da ordem” por forças armadas são o engodo para massacrar qualquer tentativa de oposição e de democracia real de um povo. E, hoje, a essas “forças armadas” se juntam forças ainda mais terríveis de manipulação da realidade, para subjugar as mentes e levar o povo a caminhos predeterminados pelo poder político ou econômico, não raras vezes, pelos dois. Portanto, ler um romancista que nos leva, pelos caminhos da ficção, a interpretar a realidade, sem dúvida alguma é uma das formas de realmente entendermos o mundo que nos cerca.
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