domingo, 14 de novembro de 2021

Água doce, Akwaeke Emezi

 Água doce, Akwaeke Emezi



Quando os cinéfilos dos fins dos anos 50 e início dos 60 assistiam, deslumbrados e ao mesmo tempo aterrados, as transformações de personalidade de Eve White, personalizada pela soberba interpretação de Joanne Woodward (que ganhou o Oscar), os mistérios do chamado “transtorno dissociativo de identidade” eram acompanhados do ponto de vista dos autores do livro AS TRÊS FACES DE EVA, os psiquiatras Corbett H. Thigpen e Hervey M. Cleckley e, portanto, vistos de fora para dentro. ÁGUA DOCE, da nigeriana Akewaeke Emezi, novamente nos assombra e nos aterroriza com um caso de personalidades múltiplas. No entanto, a chave narrativa – acionada no intermediário entre ficção e realidade – leva-nos para dentro da personagem e sob um ponto de vista, não da psicologia ou da psicanálise, mas da mitologia africana dos deuses ogbanje. Segundo o mito, ogbanje é uma palavra da cultura Igbo que significa um espírito intruso que nasce em uma forma humana. A autora/personagem nasceu em um corpo feminino, mas não é mulher, identificando-se como transsexual/não-binária, desde quando, durante a sua vinda humana, os deuses que iriam formar sua personalidade não fecharam o portal para que ela se desenvolvesse como mulher, mas foram, aos poucos, crescendo com ela e dentro dela, para torná-la um ser que não se enquadra nas réguas do mundo. Então, a jovem personagem, A Ada, como é chamada no livro, descobre-se uma personalidade partida em várias e, dependendo dos irmãosirmãs que vivem em si, tem atitudes extremas em seus relacionamentos, com muitos amantes, sejam homens ou mulheres. Toda a complexidade da situação é narrada de uma forma paradoxalmente poética e realista, conduzindo-nos com maestria pelos labirintos de sua personalidade, sem qualquer jargão da psiquiatria ou da psicanálise, guiados apenas por esses deuses impessoais e sexualmente neutros, que quase a levam a um caminho sem volta de desajustes de relacionamento e da loucura. Um livro realmente instigante, uma das mais belas e comoventes histórias que já li.


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