A bailarina da morte – a gripe espanhola no Brasil, Lilia Morita Schwarcz e Heloisa Miguel Starling
A gripe espanhola chegou ao Brasil em setembro de 1918, a bordo do navio Demerara que, provindo da Europa, espalhou o vírus por todos os portos onde ancorou e despejou passageiros contaminados com o vírus, desde Recife, passando por Salvador, Rio de Janeiro, Santos, Porto Alegre, até Montevidéu, sob os olhares complacentes das autoridades. Complacência, leniência, negacionismo, aliás, foram as atitudes típicas de todas as autoridades, pelo país afora. E a “influenza hespanhola”, a mais mortal pandemia de todos os tempos, encontrou aqui o campo fértil para ceifar milhares e milhares de vidas. Quantos morreram? Ninguém sabe. Nem em termos nacionais, nem termos mundiais. Mundialmente, as estatísticas oscilam entre 40 e 100 milhões de mortos. Muito mais do que as guerras, muito mais do que todas as pandemias que assolaram a humanidade desde a pré-história, se fosse possível levantar dados tão longínquos. A humanidade sobreviveu. Sobreviveu porque, misteriosamente, a espanhola chegou, pegou todo mundo desprevenido, adoeceu muita gente, matou muita gente e, misteriosamente, desapareceu no final do ano: em janeiro de 2019, praticamente, já não houve registro de mortes pela gripe. A narrativa das duas historiadoras, neste livro escrito em 2020, em plena pandemia de covid-19, nos faz lembrar a todo momento as semelhanças entre o que aconteceu há cem anos e o que acontece agora. Num levantamento minucioso e preciso, levam-nos as autoras para um passeio juntamente com a influenza pela maioria das capitais brasileiras, desde o Rio de Janeiro, na época a capital “modernizada” e “higienizada” há pouco, à semelhança do que acontecera em Paris no final do século XIX pelas reformas de Housemann, passando por Salvador, Recife, Manaus, Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre etc. E o Rio era o espelho para tantas outras reformas de mesmo molde ocorridas em várias outras capitais. Mas a gripe não deu nenhuma “bola” para essas reformas excludentes e paliativas: se fez vítimas em todas as camadas sociais, não deixou de matar especialmente nas camadas mais pobres, os pretos, os favelados, os excluídos. Alguma semelhança com os dias de hoje? Todas, além da falta de jeito, do negacionismo, da incompetência das autoridades de então, como de hoje, em tratar do problema. Quando a narrativa vai chegando ao final e nós vamos constatando, estupefatos, todas as semelhanças que parece que cem anos não nos separam dos dois eventos, a espanhola e a covid, as autoras nos presenteiam com uma análise exatamente nesse sentido: comparam, de forma breve, mas cirúrgica, as práticas sociais e políticas das autoridades das duas épocas. A única diferença é que, na época da espanhola, não tínhamos o conhecimento científico e as máquinas salvadoras de vida que temos hoje. Mas, o resto é tudo igual: se a ciência deu um salto para o futuro, as autoridades políticas e sanitárias deram um salto para o passado, nestes famigerados anos de covid-19. E acredite: até a cloroquina, droga contra a malária, foi usada contra a espanhola!
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