quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

a máquina de fazer espanhóis, válter hugo mãe

 a máquina de fazer espanhóis, válter hugo mãe



Silva tem 84 anos. Quando sua mulher, Laura, morre, ele vai para um asilo de velhos – o feliz idade. Nos primeiros dias, revoltado, não fala com ninguém, mas todos os demais clientes da casa sabem que sua casmurrice não vai durar muito tempo, é normal isso, nos recém-chegados. E realmente, aos poucos, Silva não só faz várias amizades, como participa ativamente da vida social do asilo. Entre esses amigos, destaca-se um outro Silva, o Silva da Europa, bem mais novo do que ele e, coincidentemente, o enfermeiro que o consolou quando da morte da mulher. Também aí se destaca uma personagem especial: o Esteves sem Metafísica, que se diz o Esteves referido por Fernando Pessoa no poema “Tabacaria”, agora com quase cem anos. Bem, há vários outros personagens interessantes e instigantes, mas falar deles seria desvendar muito da trajetória do Silva no “feliz idade”. O que é preciso ser dito é que esse é realmente um romance sobre a velhice, sobre a tragédia do envelhecer e ter a certeza de que um lugar como aquele a que destinam os velhos tanto filhos e parentes e até mesmo maridos mais novos, por interesses vários é, na verdade, a antecâmara do fim. Não há amargura nem morbidez, no entanto, na narrativa do Silva que foi barbeiro, que era apaixonado pela mulher, que viveu sob o regime salazarista e dele guarda a lembrança de seu acovardamento sob o pretexto de preservação da família, mas agora dele tem apenas o repúdio e a certeza de quão mal fez a seu país aquele regime ditatorial. Embora ateu, aceita em seu quarto uma imagem da santa de Fátima, com a qual acaba tendo um estranho relacionamento, assim como são também muito estranhas outras relações que se estabelecem naquele microcosmo de vidas que convivem entre si, sabendo que a cada dia um novo inquilino pode aparecer para ocupar a vaga de um dos 93 internos que se foi. O romance é narrado por Silva, com todas as letras minúsculas (como era praxe na escrita do autor), com todas as idiossincrasias verbais e estilísticas da prosa elegante de Valter Hugo Mãe, sem dúvida um dos grandes escritores portugueses de nosso tempo.


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