sexta-feira, 18 de novembro de 2022

O acontecimento, Annie Erneaux

 O acontecimento, Annie Erneaux


Um pequeno grande livro. E denso. O assunto, mais do que polêmico: aborto. O enredo é simples: após 35 anos, a narradora relembra um acontecimento de quando tinha 23 anos, em Rouen, na França. Estudante universitária de origem humilde, engravida do namorado. Decide abortar. No entanto, na época, em 1963, o aborto não era apenas proibido na França, mas criminalizado, tanto para a mulher quanto para o agente. Depois de várias tentativas de encontrar quem lhe fizesse o procedimento, uma colega de faculdade indica uma “fazedora de anjos” de Paris, que usa um método “menos agressivo” e cobra 400 francos (mais ou menos 900 euros, em moeda atual). A mulher insere em seu útero uma sonda, que deverá provocar o aborto em dois ou três dias. E isso acontece em seu quarto, à noite, no alojamento da faculdade, assistido por uma colega. A descrição da cena é crua e brutal, principalmente porque ela já estava grávida há quase três meses. A situação, é óbvio, se complica e ela acaba tendo de ir para o hospital, onde lhe fazem uma curetagem. Depois disso, vida que segue. Não há remorso, não há qualquer julgamento moral. Ela apenas narra o acontecimento e suas consequências. Deixa a polêmica – ser a favor ou contra o aborto – para o leitor. É claro que ninguém, em sã consciência, é a favor do aborto. Mesmo sem qualquer julgamento moral ou religioso. Pelo sofrimento, pela perda de uma vida, por todo o trauma que ele carrega. No entanto, as mulheres abortam. Sendo crime ou não. Por inúmeros motivos. A mensagem que fica é esta: ser contra ou a favor é uma discussão que não se coaduna com a realidade. E a realidade é que qualquer política de saúde pública não pode ser moralista e condenar pura e simplesmente o aborto e deixar que as mulheres padeçam sofrimentos atrozes nas mãos de pessoas inescrupulosas. Afinal, mesmo que seja chocante – o leitor fica transido e arrepiado com a narrativa de Annie Ernoux – a decisão é pessoal e intransferível, algo que a sociedade deve respeitar e amparar. Mesmo que não concorde.

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