quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas, Michael Shermer

Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas, Michael Shermer



Por que acreditamos no que acreditamos? A resposta a essa pergunta é complexa, por isso é necessária uma leitura atenta do livro do cético Michael Shermer, para descobrir que a crença em coisas estranhas (e o conceito de estranheza também é fluido, como diria outro pensador contemporâneo, Zygmunt Bauman) faz parte de nossa natureza de humanos que buscamos o conforto de padrões e conexões entre eventos, mesmo onde não haja a menor possibilidade de que sejam verdadeiros, em termos de lógica. Para não cairmos nas armadilhas das crenças absurdas (e praticamente todos caímos), é necessário observar o mundo com um olhar baseado no método científico. E é o que faz o autor, ao abordar temas como a negação do Holocausto, o criacionismo, as experiências de quase morte, a paranormalidade, a aparição de discos voadores e a abdução de seres humanos por extraterrestres, sem contar as inumeráveis superstições do dia a dia a que, às vezes inconscientemente, nos submetemos, como se certos gestos, atitudes, hábitos, pensamentos fossem mágicos, para nos trazerem sorte ou nos livrarmos dos males e das vicissitudes da vida. O mais impressionante nessa pesquisa profunda da nossa capacidade de acreditar em ilogicidades é que nem cientistas, nem pessoas consideradas extremamente inteligentes escapam dessas crenças absurdas. Físicos, matemáticos, cientistas enfim, de renome escreveram extensas obras defendendo, por exemplo, o criacionismo ou a prova da existência de Deus através da ciência, ou ainda, a paranormalidade e a existência de extraterrestre entre nós. E por serem inteligentes, usam sua inteligência para construir argumentos formidáveis para nos levar a acreditar, como um ilustre matemático citado no livro, que a humanidade vai conquistar o universo e, através de supercomputadores de inteligência artificial, fazer-nos ressuscitar a todos em algum momento do futuro, ou seja, que somos, portanto, imortais. Enfim, este livro é mais uma vela acesa neste “mundo assombrado por demônios” (para citar outro mestre do ceticismo e do cientificismo, Carl Sagan), para nos orientar a sermos céticos, no sentido exato do termo: nem uma visão niilista nem cínica, mas, como afirma o autor, “o ceticismo é uma abordagem provisória das afirmações, é a aplicação da razão a todas as ideias. O ceticismo é um método, não uma posição. Os céticos não entram numa investigação fechados à possibilidade de que o fenômeno seja real ou a afirmação seja verdadeira. Quando dizemos que somos céticos, queremos dizer que precisamos ver evidências concretas antes de acreditar.” É isso.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

As regras da casa de sidra, John Irving

 As regras da casa de sidra, John Irving


Tema central do livro: o aborto. Para escândalo dos conservadores. No entanto, uma narrativa humana, muito humana, além de ser uma leitura extremamente agradável. No estilo de dois autores constantemente citados durante a narrativa: Richard Dickens e Charlotte Brontë, principalmente "As aventuras do Sr. Pickwik", "A Pequena Dorrit" e “Jane Eyre”, porque são livros sobre órfãos e é em torno de um hospital orfanato e sobre um órfão especial e, claro, sobre um médico aborteiro, que gira toda a história. Resumo do resumo: o doutor Wilbur Larch dirige uma espécie de hospital e orfanato que recebe apenas dois tipos de mulheres grávidas: as que querem abortar e as que vão ter o bebê, mas pretendem enjeitá-lo, ou seja, abandoná-lo à doação. Aos bebês abandonados as enfermeiras se notabilizam em lhes dar nomes estranhos, quase todos relacionados ou ao médico ou a si mesmas, até que sejam adotados e recebam nomes definitivos. Homer Wells é um desses órfãos. Quatro vezes adotado, quatro vezes devolvido pelas famílias, por razões diversas, cresce ao lado de seu tutor e espécie de herói, o médico Wilbur Larch. Já um jovem adulto, abandona o orfanato ao se encantar pela jovem namorada de Wally, um produtor de maçãs de uma região próxima, que ali fora levar a moça, Candy Kendall, para um aborto, e por não concordar em se tornar um aborteiro como o diretor do orfanato. Não que fosse contra o aborto, mas não queria essa profissão para si, mesmo com todo o conhecimento sobre medicina, partos e abortos adquirido nos anos de convivência com o médico. Necessário dizer que toda a história se passa no Maine, em St. Clouds, a cidadezinha abandonada por madeireiros, no passado, onde fica o hospital, e em duas outras regiões do mesmo estado, Heart’s Haven e Heart’s Rock, no litoral, entre os primeiros anos do século XX e os anos 50. A intenção de Homer é voltar ao hospital em pouco tempo, mas isso não acontece: ele fica longe por muitos e muitos anos. E durante esse período, Wally se torna piloto durante a segunda guerra, vai para a Birmânia e desaparece. Homer e Candy se envolvem e têm um filho. Quando Wally retorna, depois de muitos meses, o casal resolve esconder dele a paternidade do filho, dizendo que era um órfão adotado do hospital do doutor Wilbur. Candy e Wally se casam. Os anos passam, muitas histórias acontecem, muitos eventos, e depois de mais de 15 anos, Homer e Candy temem contar a verdade a Wally. O doutor Wilbur morre, durante uma sessão de éter, de que é viciado, já com mais de noventa anos, e deixa um pedido para que Homer volte para St. Colud’s e seja o seu sucessor na direção do hospital-orfanato, já que ele é, sim, médico, apesar de não ter tido estudos regulares, mas muita experiência e leitura, durante todo o tempo em que esteve afastado de lá, nas fazendas de cultivo de maçãs. A história é longa, o livro tem mais de 600 páginas, mas a estrutura em overlap, em que vários eventos e várias histórias se esboçam, são abandonadas e retomadas mais adiante, torna a leitura fascinante, principalmente quanto à riqueza de caracteres humanos contidos no seu enredo. Sem dúvida, um grande romance, digno de Dickens e Brontë modernizados e dinamizados pela velocidade do século XX.

sábado, 3 de dezembro de 2022

O Som do Rugido da Onça, Micheliny Verunschk

O Som do Rugido da Onça - Micheliny Verunschk

Na década de 20 do século XIX, um grupo de crianças e jovens são escravizados na Amazônia e levados para a Europa por dois cientistas alemães. Sobreviveram apenas dois: a menina Iñe-e e o garoto Jurupi, nomes inventados, porque quase nada se sabe da vida deles em Munique. A menina era da tribo miranha e foi entregue aos europeus pelo próprio pai. Ambos tinham aproximadamente 11 anos. A partir desse fiapo de história, a autora tece e entretece uma trama de pesquisa sociológica, histórica, antropológica e linguística. A finalidade da ida das crianças e jovens indígenas para a Alemanha tinha caráter científico. Martius e Spix, os responsáveis pela expedição de “caça” ao Brasil, pretendiam estudá-los e apresentá-los como curiosidade antropológica aos curiosos europeus, que já faziam isso há tempos também com outros povos. Poucos anos antes, em 1915, houve o famoso caso da chamada Vênus Hotentote, Sarah Baartman, por suas formas exuberantes, inclusive citada no livro. As duas crianças sobreviventes foram, no entanto, “presenteadas” ao rei da Bavária, mas a rainha, depois de algum tempo, sentiu-se incomodada com a forma pela qual suas filhas pequenas tratavam os “brasis” e elas ficaram sob a tutela de Spix. No entanto, não resistiram ao inverno europeu: o menino morreu primeiro e depois, Iñe-e também morreu, aos doze anos. Como diz a autora, “esta é história da morte de Iñe-e”, pois a partir desses fatos, ela reconstrói a vida da menina (e também um pouco do menino) na sua aldeia, desde o nascimento, e na Europa, além de, através de lendas indígenas, ficcionar sua morte de uma forma lírica e cheia de símbolos, relacionados e referidos à situação atual dos povos originários, em páginas de grande beleza poética, em que explora, inclusive, o rico linguajar e os mitos fundadores, principalmente aqueles ligados à criação do mundo e à existência da onça, que ganha destaque e importância na narrativa. Sem dúvida, um livro para se ler com os sentidos aguçados para sua beleza e importância, neste momento da vida nacional, quando a Amazônia está sendo destruída e nossos povos originários, mais uma vez, estão tendo sua existência não só contestada, como correndo altíssimo risco.