O deus das pequenas coisas, Arundhati Roy
A Índia é um país complexo, com suas religiões, sua sociedade dividida em castas, seus usos e costumes, sua política. Isso todo mundo sabe. Para retratar a vida de personagens complexos num tal ambiente é necessário fôlego e muito talento. E isso não falta à escritora Arundhati Roy, em seu romance de estreia. Narrada numa linguagem poética, mas às vezes poeticamente crua, espantosamente realista, a saga dos irmãos gêmeos, a garota Rahel e o garoto Estha, ganha cores de tragédia, na Índia de 1969. Há um elemento mágico que percorre toda a história, entre outros: o fantasma de uma mariposa que um dia pertenceu a um avô distante, que era entomologista imperial, quando o país era ainda possessão inglesa. O contexto histórico, político e social é um pano de fundo mais ou menos tênue, mas poderoso nas entrelinhas da vida desses gêmeos. Eles crescem entre os caldeirões de geleia da fábrica da avó quase cega. A família é disfuncional: a mãe é a solitária e livre Ammu, que um dia se entrega a um intocável, o que desencadeia um dos fatos mais terríveis do romance, embora suas consequências sejam percebidas aos poucos, na leitura; o tio Chacko casou-se com uma inglesa e com ela tem uma filha. Separado da mulher, que se une a outro homem, volta para a Índia e cultiva sua obesidade na amargura da distância da filha. Quando o companheiro de sua ex-mulher morre num acidente, ela aceita o convite para vir à Índia com a filha e esse é um fato que irá desencadear a grande tragédia da vida de toda a família. Há ainda a intragável e vingativa Baby Kochamma, estopim de muitas violências, físicas e psicológicas. Há momentos memoráveis de beleza e dor, de materialização, mesmo que numa linguagem poética, de toda a maldade de que é capaz o ser humano, em passagens que lemos com a respiração suspensa. E os gêmeos crescem e vivem tudo isso, sendo até mesmo culpabilizados pelos acontecimentos nefastos, o que leva a que a família os separe por longos anos e eles só voltam a se reencontrar muitos anos depois, já adultos. A história é complexa, cheia de altos e baixos, de suspense, de amor, de separações e reencontros, mas que se lê desde o primeiro capítulo com o prazer de estar diante de uma grande escritora e de um grande livro, que nos desvenda um pouquinho da complexidade desse país, hoje o mais populoso do mundo, chamado Índia.
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