A barca dos homens, Autran Dourado
Um louco com um revólver está solto na cidade. Essa notícia se espalha pela vila de pescadores e de veraneio situada numa ilha paradisíaca do litoral brasileiro. Esse o fio condutor da história. O “louco” é o jovem Fortunato, “ruim da cabeça”, como dizem, filho de Zulmira, a empregada negra da família de Godofredo, sua mulher, Maria, e os três filhos do casal, que não está em bom momento de sua vida conjugal, em férias na ilha. E essa notícia, meio verdade meio “fake”, vai alterar completamente a vida de quase todos os habitantes do local. Os dez policiais do destacamento, armados e assustados, terão como missão capturar o “louco armado” vivo ou morto, de preferência morto, com a ajuda voluntária de alguns “cidadãos do bem”. Em blocos temáticos que se alternam, Autran Dourado vai nos revelando o interior de cada uma das personagens envolvidas direta ou indiretamente na caçada. Entre os soldados, destaca-se o medo do recruta “virgem”, tanto sexual quanto de ação “de guerra” e o tenente comandante do destacamento, perdido em seus delírios de amor por Maria, mulher de Godofredo; os presos da cadeia municipal revelam, apesar de seus crimes, mais humanidade que muitos dos moradores, ao receberem em sua cela o pescador Tonho, amigo de Fortunato, bêbado e cheio de temores por não conseguir lembrar por onde possa andar o jovem caçado pela população, e lhe darem ânimo e até dinheiro para a tentativa de encontrá-lo; as prostitutas do bordel comandado por uma cafetina que alterna proteção às “meninas” e o controle sobre seus corpos, dentre as quais a mais jovem, que irá fazer do soldado virgem um homem; o padre mergulhado em dúvidas existenciais e teológicas que, instado a agir em defesa de Fortunato, pela mãe dele e por Tonho, sente-se impotente diante do medo e da resistência do comandante do destacamento policial. Enfim, um microcosmo de seres humanos mergulhados em seus problemas, em suas neuroses, em suas dúvidas, que vai envolvendo o leitor no paroxismo de uma caçada ou talvez pescaria (o autor define seu romance como uma história de caça e pesca), já que há uma personagem fundamental em toda a trama: o mar. Obsessivamente, percorre todas as narrativas. Ora calmo, ora agitado, o mar é o reflexo do estado de ânimo de cada personagem, como um ser vivo que se imiscui em cada pensamento, em cada detalhe da psicologia dos moradores da vila, reprimidos em seus anseios, em seus sonhos e vontades. Há esperança para Fortunato? O autor acena com um vislumbre de futuro, com o nascimento de um bebê no bordel, que ganhará o nome do jovem caçado. O que nos quer dizer ele com isso? Podemos apenas especular sobre qual seria essa mensagem. O que é claro é que o autor abre a nossa mente de leitores e nos convida a mergulhar no íntimo de cada personagem para que possamos, de forma humana, demasiado humana, tentar conhecer um pouco mais os abismos que existem na mente desses seres que somos nós e a quem denominamos humanos. Sem dúvida, uma obra prima da literatura brasileira, de um escritor que precisa ser urgentemente redescoberto pelas novas gerações, como exemplo para muitos escritores atuais de como expor literariamente a diversidade humana não só através do narrado, mas principalmente através da construção estilística de cada personagem, num contexto social e regional.
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