terça-feira, 17 de setembro de 2024

O náufrago, Thomas Bernhard

 

O náufrago, Thomas Bernhard


Três alunos excepcionais de piano se encontram no Mozarteum, em Salzburgo, Áustria, para terem aulas com o célebre mestre Horowitz. A genialidade de um deles ofusca os outros dois e isso marca profundamente suas vidas. Está-se falando de Glenn Gould, considerado um dos maiores pianistas do século, que transforma a vida de seus colegas, ao apresentar sua interpretação revolucionária das Variações de Goldberg, de Bach. O narrador, cujo nome não nos é revelado, assinala esse momento devastador na vida dele e do outro amigo, Wertheimer, ambos aspirantes a virtuoses, mas ofuscados pela genialidade do canadense. Glenn assombra o mundo, mas aos trinta anos deixa de se apresentar em público, isolando-se numa fazenda próxima de Nova Iorque, onde mantém um estúdio em que grava seus concertos de forma obsessiva. Morre aos 52 anos, de um aneurisma cerebral. O narrador dessa ficção desesperada nos leva, então, à trajetória de Wertheimer, cujo estranho suicídio, numa pequena cidade da Suíça, logo após a morte de Glenn Gould, ele atribui ao fato de que ele abandonou a carreira de pianista, ofuscado pela arte do amigo, coisa que também o narrador fizera muitos anos antes, ao doar seu piano Steinway a uma garota principiante e sem nenhum talento, porque ambos não conseguiriam jamais ser como Glenn. Toda o enredo do livro gira em torno dessa obsessão de ambos os pianistas em torno da busca frustrada da perfeição artística, que os leva à autodestruição e a um deles, ao suicídio. Todos os fantasmas de Wertheimer e do próprio narrador são trazidos à tona, numa estrutura reiterativa própria do monólogo teatral, em que os temas se repetem numa espiral que vai se afunilando e levando o leitor para a voragem dos sentimentos mais profundos das personagens, suas frustrações e anseios não realizados. Uma última observação: o enredo baseia-se em elementos da vida real de Glenn Gould, suas obsessões, suas performances musicais às vezes estranhas, mas sempre geniais, seu isolamento, por não suportar a presença de plateias. Mas ele nunca foi aluno de Horowtz, sequer o conheceu pessoalmente. Dito isso, encerro esse meu breve comentário com o meu aplauso a essa pequena obra prima do romance europeu do século XX, por esse grande escritor austríaco.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

O Mundo da Escrita, Martin Puchner

 O Mundo da Escrita, Martin Puchner


Um momento crucial na história da evolução humana: a invenção da escrita. Depois de milhares de anos em que as histórias, os fatos, as tradições, conhecimentos eram transmitidos oralmente, através de vários artifícios, o registro para a posteridade torna-se um fator de inspiração para a ascensão e queda de impérios e nações, para o nascimento de teorias e filosofias e para o nascimento de religiões e tantas outras coisas imaginadas pelos humanos. Mas o processo foi lento, complexo e, por incrível que pareça, surgiu em partes diferentes do globo, com tecnologias diferentes. E mais: enfrentou resistências. Os maiores poetas, escritores, sábios e profetas, Homero, Sócrates, Jesus, Maomé, Confúcio, Buda, por exemplo, nunca escreveram uma só linha. Toda a sua filosofia, todos os seus ensinamentos, toda a sua literatura foram registrados por discípulos, às vezes, muitos anos depois de sua morte. Foi a escrita, ou seja, a sua invenção, que nos possibilitou resgatar e conservar maravilhas da literatura universal, como o primeiro romance (da senhora Murasaki, no Japão), as aventuras de Miguel de Cervantes ou um épico da África Ocidental, assim como as obras de Goethe ou o Manifesto do Partido Comunista. É essa aventura fantástica e fascinante que o livro de Martin Puchner nos desvenda, ao compartilhar conosco o espanto e o maravilhamento que é pesquisar, encontrar e descobrir tesouros literários, bem como nos encantar com as tecnologias usadas para registrar a história e a literatura através dos tempos, desde as tabuinhas de argila até a invenção do papel e, hoje, as modernas máquinas que espalham pelo mundo virtual a literatura e o conhecimento humano, de uma forma que jamais pôde imaginar e sonhar Gutenberg, ao reunir inúmeros conhecimentos para “inventar” a imprensa. Enfim, se você gosta de literatura, gosta de ler, gosta de livros, esta é uma viagem imperdível: a história da escrita através de várias civilizações e sua utilização na literatura.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Desonra, J. M. Coetzee

Desonra, J. M. Coetzee


Com um estilo preciso e claro, o escritor sul-africano nos leva para uma viagem tensa pelos escaninhos das “almas” no processo traumático do reencontro de uma nação consigo mesma, pós apartheid, uma palavra que ele não usa em momento algum do livro. Também muito raramente faz qualquer menção à cor da pele das personagens, e quando o faz, é de uma forma extremamente sutil. São seres humanos, e isso basta para o autor. A motivação ou o eixo principal da história não tem novidade, mas sim a forma como nos conduz para dentro dos conflitos. David Lurie é um professor de literatura que se envolve com uma aluna da universidade onde leciona. O caso é denunciado e termina numa espécie de “julgamento” moral entre as convicções humanistas do professor e as normas da universidade. Demitido, resolve passar uma temporada no sítio de sua filha, Lucy, no interior do país. Ali, esse homem culto, que tem a pretensão de escrever uma espécie de opera sobre a vida de Byron, confronta seus princípios com uma realidade complexa e com a violência ainda ressentida de uma sociedade que não aprendeu a conviver com a nova realidade e que ainda guarda enormes ressentimentos ocasionados por décadas de opressão. Todas as relações são dissecadas e expostas ao leitor, sem subterfúgios: a violência explícita ou implícita entre as pessoas; o amor entre pai e filha e o instinto de proteção; o sexo e as questões étnicas e também a relação entre os seres humanos e os animais. Pode estar certo o leitor de que, mesmo nos momentos mais “leves” da narrativa, o ritmo e a tensão não permitem que se desgrude um instante das páginas deste que é considerado um dos melhores romances do premiado escritor sul-africano de língua inglesa.

terça-feira, 3 de setembro de 2024

A guerra do fim do mundo, Mario Vargas Llosa

 

A guerra do fim do mundo, Mario Vargas Llosa


A “guerra” de Canudos – ou deveríamos dizer “o massacre de Canudos” – está no imaginário brasileiro. Mas, quem foi realmente Antônio Conselheiro? O que os chamados “jagunços” de Canudos realmente pensavam, como agiam, por que seguiam cegamente às ordens do “profeta”? Alguns detalhes para melhor compreensão: o Conselheiro exigia, para entrar para sua “seita” ou “bando”, primeiramente e fundamentalmente, que os indivíduos se arrependessem de seus pecados. E mais: seus seguidores tinham que ser monarquistas, abjurar, portanto, a república; também tinham que ser contra o censo e o casamento civil. Conselheiro era monarquista porque a monarquia havia libertado os escravos, e a república queria de volta a escravatura através do censo, quando saberiam quantos e onde estariam os ex-escravizados. O mais de sua filosofia religiosa tinha a ver com um certo sebastianismo, além da luta contra todas as desigualdades sociais e do extremismo religioso que o levava a aceitar somente o casamento religioso. No entanto, o que se contava pelo Brasil afora é que os fanáticos de Canudos eram financiados pela Inglaterra, por isso tinham tantas armas, e pretendiam derrubar o governo republicano. Três expedições militares fracassaram na tentativa de derrotar os moradores de Canudos e, na sua fuga, esses militares acabaram deixando para trás os armamentos que municiaram os seguidores do Conselheiro, além das muitas armas que roubavam dos militares, com mil estratagemas, durante as refregas. Não havia, portanto, nenhum estrangeiro a enviar armas e munições para Canudos. Nem o Conselheiro pretendia simplesmente “derrubar a república”, dar um golpe de estado. Diante desse cenário, Vargas Llosa fez uma extensa pesquisa de campo e de documentos, para reescrever e reinterpretar a história da “guerra de Canudos”. Lança mão de sua poderosa imaginação para misturar personagens reais e fictícios e nos levar aos detalhes e aos meandros das vidas – tanto de militares quanto de “jagunços” - envolvidas nesse episódio no mínimo grotesco de milhares de militares armados até os dentes se lançarem à destruição de um povoado que, dizem, chegou a ter 30.000 pessoas, simplesmente baseados em boatos. Se as três primeiras expedições fracassaram, a quarta promoveu uma carnificina, que terminou com a morte de milhares de pessoas e de centenas de militares. Em busca de respostas à pergunta “por que tantos seguiam e davam a vida ao Conselheiro”, o autor desse fantástico romance histórico conduz-nos ao âmago da questão, na última linha do romance, quando uma velha esquálida responde ao oficial da polícia baiana que passara muitos e muitos anos tentando prender o mais temido e cruel bandoleiro da região, que estava acoitado em Canudos, se ele morrera e ela responde que não; “então ele escapou”, reitera o militar, mas a velha reafirma que não: o cangaceiro (que era um dos braços direitos do profeta) “foi levado aos céus por um bando de arcanjos, eu vi”. Creio que isso explica quase tudo sobre o bando de fanáticos de Antônio Conselheiro, cujo corpo, desenterrado pelas tropas, teve a cabeça decepada e enviada para a capital, para ser estudada, não tendo sido encontrado nada de especial em seu crânio. Mais uma história, dentre milhares, de nossa eterna mania de cortar cabeças. E, para encerrar: não é um livro para estômagos fracos, mas é talvez uma das obras mais impactantes que já li, que me perdoe o grande Euclides da Cunha, sendo ainda “Os Sertões” uma obra fundamental de nossa formação histórica.