segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

A cidade das palavras, Alberto Manguel

A cidade das palavras, Alberto Manguel

O livro tem cinco capítulos, ou cinco ensaios que, embora se interrelacionem, podem ser lidos e interpretados isoladamente, ou quase. E porque cada um desses capítulos aborda temas aparentemente muito diferentes uns dos outros, vou tentar uma breve resenha de cada um deles. 1. A voz de Cassandra. Nesse ensaio, o autor discorre sobre o poder das histórias, a partir da obra de Alfred Döblin, romancista alemão que fugiu do nazismo e escreveu Berlin Alexanderplatz, e da maldição de Cassandra, que recebeu o dom da profecia, mas não o beneplácito de que acreditassem em nas suas palavras, para concluir que talvez o artífice, o poeta, banido da república de Platão, por criar o que não existe, tenha o olhar desconfiado de que aquilo que ele inventa, ao contrário da maldição de Cassandra, ele acredita que seja verdade e que possa talvez mudar a sociedade. 2. As tabuletas de Gilgamesh. A mais antiga epopeia da humanidade narra a história do tirano Gilgamesh que encontra no selvagem Enkidu o seu duplo civilizador. Então, em torno das diferenças, tece o autor considerações sobre a possibilidade de convivência entre contrários, para concluir que somente aceitando o outro, o diferente, como complemento do eu, como conclui Montaingne, ao descobrir que amava o amigo porque “era ele e era eu”, que a humanidade possa, enfim, superar o ódio e as rivalidade.3. Os tijolos de Babel. Talvez o capítulo (ou ensaio) mais complexo do pensamento de Manguel. A partir de uma citação de Kafka, o autor nos leva à narrativa bíblica da Torre de Babel e para uma viagem de considerações em torno da origem da linguagem há 50.000 anos, mais ou menos, e da origem da escrita, há cerca de 5.000 anos, o que possibilitou ao ser humano contar histórias e criar civilizações. Escreve: “A relação entre uma civilização e sua linguagem é simbiótica: certo tipo de sociedade dá origem a certo tipo de linguagem; por sua vez, essa linguagem dita histórias que inspiram, moldam e mais tarde transmitem a imaginação e o pensamento daquela sociedade.” 4. Os livros de dom Quixote. Leva-nos o autor, através principalmente, mas não só, da análise do poderoso romance “El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha”, a uma aventura histórica e literária da origem da dominação da península Ibérica pelos mouros e judeus, desde os primeiros anos do cristianismo, até sua expulsão em 1592, para concluir que “as histórias constituem a identidade de uma sociedade” mas “nem toda história dará conta do recado; elas devem responder a uma realidade compartilhada que a própria sociedade cria a partir de uma miríade de acontecimentos, com raízes no tempo e no espaço, mas sempre em fluxo e transformação”. 5. A tela de Hal. São profundas as observações do autor sobre “o outro”, aquele que vemos como diferente, o que está do outro lado do muro da pólis, o inimigo. Analisa um conto extraordinário de Jack London, “The Assassination Bureau, Ltd.” e o filme “2001, uma odisseia no espaço”, para nos levar a pensar nas armadilhas da linguagem que usamos e que, tantas vezes, abusamos como muros que erguemos na comunicação entre nós, entre os grupos humanos e entre as nações. Também critica ferozmente as editoras que contratam revisores e editores de obras literárias como uma censura ou como uma trava à criatividade dos escritores, mutilando a criatividade do autor. Enfim, um livro complexo e profundo, que exige do leitor mais do que a atenção de uma só leitura, mas de várias leituras, para atingir o âmago desse pensador, que quase nos afoga com sua erudição e seu pensamento. Indispensável, porém, para todos que pretendam entender o ser humano e a sociedade em que vivemos, a partir das histórias que nos contam ou que contamos.

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