Hospício é deus, Maura Lopes Cançado
Maura estava com 30 anos, quando registrou seu dia a dia
de interna no Hospital Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro,
entre o final de 1959 e o começo de 1960. Não era a sua primeira internação num
hospital psiquiátrico, nem seria a última. Maura, a escritora, a louca, aquela
que matou uma pessoa num de seus surtos – esse o carimbo que acompanha a
trajetória e o talento dessa jovem. O diário nos revela, sim, uma personalidade
complexa e doentia, mas também o talento de uma escritora que não teme se
desnudar (diria quase literalmente, diante de vários relatos seus no livro) e
mais: tem a coragem de mostrar por dentro o que eram – o que são – essas instituições
destinadas a pessoas desequilibradas, loucas ou simplesmente fora dos padrões
aceitáveis da sociedade que vê no diferente o inimigo. Sim, o inimigo. No
hospício, as internadas (na expressão de Maura) são castigadas por qualquer
deslize. As guardas as agridem constantemente, por qualquer motivo, de forma
cruel e desumana, porque elas são “a autoridade” que não admite contestação. O
ser humano é degradado a seu estado mais vil, porque é diferente, é “louco”,
assim como são “loucos” aqueles que contrariam um regime autoritário (lembro,
só para exemplificar, Wladimir Herzog e Marcelo Rubens Paiva, entre centenas e
centenas de outros que a ditatura perseguiu, prendeu, assassinou e até
despareceu com seus corpos); assim como é “louco” o jovem preto da periferia de
uma cidade como Rio ou São Paulo, que ousa levantar a cabeça para o policial
que o mantém subjugado e, por isso, apenas por isso, acaba agredido até a morte
ou jogado como lixo sobre a mureta de uma ponte; assim como são “loucos” os
terroristas que ousam afrontar o poderoso exército do Estado de Israel e vê seu
povo ser dizimado sistematicamente por bombardeios que matam mulheres, idosos e
crianças como moscas que precisam ser extirpadas da face da terra, numa
vingança a um ato insano; assim são “loucos” todos os que arrostam suas vidas
contra o invasor estrangeiro ou contra aqueles que o oprimem. O hospício é o
microcosmo de nossa insanidade, da barbárie que os poderosos se empoderam contra
os mais fracos ou contra aqueles que os contrariam. Não há tratamento contra a “loucura”
no hospício: os médicos e enfermeiros fazem vista grossa às agressões, aos
castigos. Como a autora do diário nos aponta o paradoxo: os loucos são
considerados inimputáveis, sem responsabilidade por seus atos, mas não podem
cometer deslizes que são severamente punidos. Porque o ser humano é assim:
bárbaro, incapaz de ter qualquer respeito ao outro, quando se coloca numa posição
de superioridade e de poder em relação a esse outro. Tem sido assim e parece
que vai continuar sendo assim. Terminei de ler “Hospício é deus” com um nó de
revolta na garganta, diante da forma como a autora nos apresenta o dia a dia no
hospital, suas crises, seus desapontamentos, sua relação com as outras
internas, seus amores platônicos e suas implicâncias e ódios que a impedem de
se recuperar, porque ali o deus que deveria ser de compaixão é o próprio hospício,
com suas regras e suas leis de autoritarismo e de desrespeito ao ser humano. Um
relato, sem dúvida, inesquecível.
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