sábado, 27 de setembro de 2025

Os filhos dos dias, Eduardo Galeano

 Os filhos dos dias, Eduardo Galeano


Eu me lembrei dos antigos calendários (ou folhinhas), em que se destacava cada dia que passava, no qual podia haver uma frase de cunho moral ou uma pequena anedota ou história. Eduardo Galeano traz em seu livro 366 textos, um para cada dia do ano (o seu ano é bissexto e contempla o renegado 29 de fevereiro). São histórias da História ou referências a lendas, personagens, fatos famosos ou apenas significativos, comentários, contemplando inúmeras culturas, países, povos e regiões de todo o globo, num mosaico que mistura passado e presente, personagens às vezes bizarros, às vezes sofredores, às vezes autoritários, mas sempre curiosos. Esses textos não passam de uma página, uma página e meia, escritos com a leveza de uma ironia por vezes cortante; com um olhar crítico para as mazelas do mundo e os malfeitos dos poderosos, trazendo a visão de mundo de um escritor que sabemos ter sido uma das mentes mais poderosas da literatura sul-americana. Um livro que se lê com prazer, mas também com o travo amargo da realidade dos sofredores todos de uma humanidade cujos povos têm dificuldades de convivência entre si, e que não consegue aprender com as lições do passado e recai sempre nos mesmos exemplos de insensatez. Assim como são breves as histórias de Galeano nesse livro, também é breve e, espero, incisivo, esse meu comentário sobre ele, deixando a recomendação: leia.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

O jantar errado, Ismail Kadaré

O jantar errado, Ismail Kadaré


A pequena cidade de Girokastra, de apenas 20 mil habitantes, na Albânia de 1943, tem dois médicos de mesmo nome – Gurameto. Para distingui-los, chamam-nos de Gurameto Grande e Gurameto Pequeno. A tranquilidade da vila é quebrada com a chegada das tropas alemãs, comandadas pelo coronel Fritz von Schwabe que foi colega de classe, em Berlim, de Gurameto Grande, por quem nutre um grande apreço e só deseja reencontrá-lo. No entanto, a tropa alemã sofre um atentado e, para que 80 reféns não sejam fuzilados em represália, o oficial nazista recebe do seu antigo colega o convite para um jantar. A cidade assiste, assombrada, aos festejos desse jantar e, como é tradição, denigre o Gurameto Grande por sua covardia e entreguismo e enaltece o Gurameto Pequeno por sua coragem, embora este nada tenha feito. No entanto, ao amanhecer, os reféns são soltos. Resolvido o problema? Não, porque há muito mistério envolvido nesse jantar e todas as circunstâncias estranhas que o cercam só começarão a ser desvendadas dez anos depois, quando a Albânia, já sob o domínio comunista, envia para Girokastra (a mando de Stalilin?) dois investigadores, para prender e interrogar o médico Gurameto Grande, para que ele confesse todos os pormenores ocorridos durante o jantar, pormenores, aliás, de conhecimento das autoridades comunistas. Mas Stalin agoniza em Moscou, o que acirra algumas atitudes dos investigadores, o que leva a cidade a mergulhar ainda mais no mistério daquele jantar, principalmente quando esses investigadores revelam que o oficial nazista Fritz von Schwabe já estava morto meses antes da ocupação alemã. Relembra-se uma antiga lenda girokastrista de um convite para jantar que um menino distraído ou apavorado deixa cair sobre um túmulo do cemitério e o morto que o recebe não pode recusá-lo. Toda a narrativa em torno do jantar misterioso, ocorrido em 1943, serve de pretexto para o autor expor todas as consequências dos autoritarismos por que passou a humanidade na primeira metade do século XX, quando se viveram os tempos tenebrosos do nazismo e do estalinismo. A pequena cidade de Girokastra, perdida no interior da Albânia, não por acaso a cidade natal de Ismail Kadaré, torna-se, com suas casas de pedra centenárias, o microcosmo da política europeia com suas complexas teias e disputas, num relato tortuoso, mas fascinante, a que as páginas desse pequeno grande livro leva o leitor.

sábado, 20 de setembro de 2025

Partículas elementares, Michel Houellebecq

Partículas elementares, Michel Houellebecq


Bernardo e Michel são irmãos apenas por parte de mãe, na França dos anos finais do século XX. Michel torna-se biólogo e faz pesquisas rigorosas no terreno do determinismo. Incapaz de se apaixonar, assiste quase que deterministicamente ao declínio de sua sexualidade, transformando esse fato na obsessão pelo trabalho e pela vida consumista, entupindo-se de tranquilizantes. Depois da morte de uma parceira sexual, uma colega de tempos de escola reencontrada mais de 30 anos depois, volta-se a pesquisas que irão modificar o rumo da biologia. Seu irmão Bruno, por sua vez, abandonado pelos pais, cresceu em internatos onde sempre sofreu abusos por parte de colegas e, adulto, busca a redenção e a felicidade numa vida sexualmente desregrada. Ao passar uma temporada numa espécie de camping New Age liberal, uma desconhecida, uma noite na piscina, abre para ele a possibilidade de encontrar a tal felicidade através do sexo oral. A trajetória dos dois irmãos é narrada de forma intercalada e com a inserção de inúmeras referências científicas e filosóficas que comentam, embasam ou determinam as atitudes caóticas das personagens, nesta busca pelo sentido da vida, numa crítica em que a ironia beira, às vezes, o sarcasmo, para criticar as mudanças comportamentais do final do século, quando o ser humano, pelo menos o burguês heterossexual, branco, europeu e razoavelmente culto parece perder o rumo de suas vidas e se lança na prática da busca do prazer a qualquer custo. É um livro de leitura lenta, para que se entendam e aprofundem as várias facetas e os vários temas abordados pelo autor. Alerta-se que nenhum moralismo deve ter o leitor, ao enfrentar os trechos de quase erotismo explícito a que o narrador expõe suas personagens. Eu disse “quase”, porque, na verdade, há tanta ironia no realismo sem qualquer censura das referências e descrições de práticas sexuais, que o erotismo se apresenta quase mitigado e como parte intrínseca do tipo de vida e de crítica levantada pelo autor. Enfim, vencidos o moralismo, as citações e as ironias e críticas a um modo de vida crepuscular de fim de século, temos diante de nós uma obra prima da moderna literatura francesa.

sábado, 13 de setembro de 2025

Nada mais será como antes, Miguel Nicolelis

 
Nada mais será como antes, Miguel Nicolelis


Ayn Rand, em seu oceânico romance “A revolta de Atlas”, gasta mais de 1200 páginas para tentar nos convencer, com seu enredo distópico de uma ditadura nos Estados Unidos, que a única salvação da humanidade é confiar nos empresários, seres incorruptíveis e de grande bondade e sabedoria, no que se tornou um dos livros canônicos da direita e, talvez, da extrema direita. Miguel Nicolelis é menos pretensioso quanto à extensão da sua distopia, ou melhor, do seu enredo de ficção científica, gastando metade de páginas de Rand para nos convencer de que a única saída da humanidade está na ciência, no que se pode até mesmo dizer que se trata de um romance “de esquerda”. O enredo é complexo e recheado de referências não só científicas, mas também históricas, num grande esforço de erudição do autor que, como cientista, dispensa apresentação. Um breve resumo, para situar o leitor: Tosca, uma brilhante neurocientista que desenvolve nos Estados Unidos estudos sobre o que ela chama de Brainet, conexão eletromagnética entre os cérebros, recebe um chamado urgente de seu tio, Omar, um multimilionário e matemático egípcio que desaparecera há mais ou menos 30 anos, que agora mora no Brasil. Estamos no ano de 2036 e um evento cataclísmico está para ocorrer no âmbito das tempestades magnéticas do Sol, algo que irá destruir a atual civilização cibernética, baseada na eletricidade e no domínio político das big techs e dos grandes banqueiros, os “bankgansters”. Algumas horas antes do grande impacto, voam para Manaus, onde Omar tem a intuição de que encontrará a solução para o futuro da humanidade num laboratório de alquimia do bisavô de Tosca, um bilionário egípcio que migrou para o Brasil no começo do século passado e que dedicou sua vida à exploração da borracha e a esse laboratório. São orientados nessa empreitada inaudita para a salvação da humanidade, quando toda a eletricidade do mundo é simplesmente eliminada pela grande tempestade magnética que paralisa a vida do planeta e pode jogar a humanidade para uma era do passado de milhares de anos atrás, por sonhos e “implantes” neurais de forças desconhecidas: alienígenas? E só podem contar com a ciência antiga para tentar recuperar as perdas imensas da humanidade e tentar levá-la buscar historicamente novos paradigmas, que não o do progresso infinito com recursos finitos, para o proveito de poucos e a miséria de quase todos. O leitor terá que se jogar nessa aventura distópica e enfrentar todos os perrengues da dupla, além de acompanhar suas digressões e explicações no terreno da ciência, para usufruir de um enredo extremamente criativo, que tem por referências não só os cientistas, mas também muitos escritores de ficção científica, como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e outros. Não sei se teve o autor tal intenção, mas ficou para mim, ao fim e ao cabo, que essa bela distopia é uma resposta à altura àquela de Ayn Rand.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Neca – romance em bajubá, Amara Moira



Neca – romance em bajubá, Amara Moira


A gíria é uma sublinguagem utilizada, em geral, pela malandragem e pela bandidagem, para despistar a polícia. É dinâmica e, às vezes, internacional, isto é, o vocabulário muda de acordo com as circunstâncias e incorpora palavras de outras línguas. Não confundir, portanto, com o bajubá (ou pajubá), a linguagem utilizada por Amara Moira para narrar a sua história. O bajubá é uma espécie de língua cifrada, formada por vocábulos e expressões de diversas línguas africanas e também do português, usada incialmente por escravizados praticantes de cultos afro-brasileiros. Como os terreiros tornaram-se espaço de acolhimento da comunidade LGBTQIA+, esses indivíduos passaram a utilizar-se dessa linguagem, adaptando-a ao seu contexto. Em “Neca”, temos como narradora uma travesti “experiente”, ou seja, mais viajada e mais vivida que, ao encontrar uma amiga mais jovem, conta em um longo monólogo as suas aventuras, os seus perrengues, as suas travessuras e vivências nas ruas tanto aqui no Brasil quanto na Itália, onde viveu por algum tempo. Sua narrativa é debochada, irônica, extremamente crítica, principalmente em relação aos homens com quem se relaciona. Também emite opinião sobre vários escritores canônicos brasileiros, sempre de forma irreverente, já que a amiga estuda letras. Sua língua é ferina e demolidora, utilizando criativamente o pajubá, ou seja, misturando palavras do português com francês, italiano e espanhol. Para o leitor, a dificuldade inicial de entender o vocabulário obscuro vai aos poucos se desfazendo, diante da interpretação do contexto, e logo se pode aproveitar sem problema das histórias muitas vezes obscenas mas engraçadas e irônicas, que desvendam um mundo marginalizado por preconceitos, por ódios e desumanização de seres humanos que têm, ao fim e ao cabo, por único “pecado” o de terem nascido diferentes. Sem dúvida, um livro de interesse não só sociológico e humano, mas também linguístico, por ter sido o primeiro ter a coragem de usar um tipo de linguagem marginalizada, mas extremamente rica.

sábado, 30 de agosto de 2025

O livro da astrologia: Um guia para céticos, curiosos e indecisos, Carlos Orsi

 O livro da astrologia: 
Um guia para céticos, curiosos e indecisos, Carlos Orsi


Michael Shermer, no livro “Cérebro e Crença” (leia a resenha aqui mesmo, neste blog), diz que nosso cérebro formula uma crença e, depois, busca as justificativas para ela. Com a astrologia, deve ser mais ou menos isso o que ocorre e é o que, ao fim e ao cabo, nos diz o autor de “O livro da astrologia: um guia para céticos, curiosos e indecisos”. Nunca acreditei na astrologia (tampouco em visões, previsões, profecias, gurus etc.), embora ficasse curioso com o fato de que alguns horóscopos mais elaborados trouxessem afirmações que pareciam ter sido escritas para mim, no meu signo. Não percebia, e o livro que comento, me elucida, que as afirmações genéricas cabem para definir a personalidade de qualquer pessoa. E mais: quando recebemos feedback afirmativo, elogioso (por exemplo: os capricornianos são teimosos, mas inteligentes), relevamos ou esquecemos todas as outras afirmativas idiotas ou que nada têm a ver conosco para adotarmos as que nos “jogam para cima”. Bem, isso é só um detalhe do muito que nos relata sobre a história, as falsidades, os truques e as impossibilidades de astros e estrelas distantes influenciarem, o mínimo possível, as nossas vidas e nosso modo de ser. Muitos cientistas do passado se dedicaram à astrologia e vários deles acabaram por descobrir a falácia de seus princípios, mas até hoje muita gente acredita em horóscopos, e até mesmo nesses toscos horóscopos de previsão que jornais e revistas ainda publicam, em pleno século XXI. Mas, como o próprio autor acaba confessando, tentar dissuadir alguém de uma crença com argumentos racionais equivale a enxugar gelo, porque as pessoas se recusam a sair de sua zona de conforto chamada ”crendice”, porque, como o nome indica, o conforto ilusório de uma previsão otimista pode ser o combustível para uma vida de esperança, ainda que baseada em princípios falsos. Enfim, li e gostei, porque me diverti com as inúmeras peripécias de astrólogos famosos a tentar fazer-nos crer nas bobagens que eles escrevem, como se fossem hipóteses ou teorias que se comprovam cientificamente, coisa que a ciência, por mais que tenha tido boa vontade em tentar provar tais hipóteses e teorias, tem demonstrado à exaustão, que a astrologia é só isto mesmo: uma bobagem, como tantas outras crendices em que os humanos acreditam.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Um ditador na linha, Ismail Kadaré

 

Um ditador na linha, Ismail Kadaré


O autor albanês Ismail Kadaré está na expectativa de receber o prêmio Nobel de Literatura, por volta de 2018, quando escreve o livro “Um ditador na linha”. O prêmio não aconteceu, mas o livro ganhou merecida fama. Não há propriamente uma história, ou há só um fiapo de história: num sábado de junho de 1934, o escritor Boris Pasternak teria recebido um telefonema do homem mais poderoso e temido da Rússia, o camarada Stálin. Há duas perguntas que perpassam todo o livro: a primeira, o telefonema ocorreu mesmo? Ao que tudo indica, sim, conforme vários testemunhos. A segunda: o que realmente conversaram o escritor e o ditador, nos breves três minutos de duração do tal telefonema? E é essa segunda questão que tenta resolver Kadaré. Há 13 versões para a conversa entre as duas personagens, 13 testemunhas que não propriamente se contradizem, mas trazem nuances diferentes para a troca de palavras entre Stálin e Pasternak. E o escritor se dedica a trazer cada uma dessas versões e esmiuçá-las detalhadamente, trazendo inúmeras considerações sobre as intenções e as motivações de cada uma dessas versões, segundo os interesses ou o ponto de vista de cada testemunho, trazendo ao mesmo tempo detalhes da vida dos envolvidos no motivo do telefonema e também de várias outras personagens, escritores, esposas, amantes, poetas etc. Por que tudo isso? A breve conversa entre Stalin e o autor de Doutor Jivago teve por motivo a prisão de um dos maiores poetas russos, Óssip Mandelstam. Queria o ditador que Pasternak interviesse pela soltura do poeta? Por que ele não o fez? Arrependeu-se depois, quando o poeta foi novamente preso, perseguido e morto? Essas questões todas são alvo da preocupação do escritor, mas não formam o escopo do livro. Na verdade, Kadaré, nas entrelinhas de sua narrativa, faz uma longa reflexão sobre o motivo por que os ditadores odeiam tanto os artistas, sejam poetas, escritores, músicos etc. Lembremos a ditadura brasileira de 1964: apesar de fazer rodízio de ditadores de plantão, todos eles perseguiram nossos artistas, durante as duas décadas de sua duração. Imagine-se, então, o estrago que fez Stálin durante as décadas de 22 até o final dos anos 50, na União Soviética, sendo ele o senhor absoluto das vidas, das mentes e da opinião de quem quer que ousasse se manifestar. Por isso, o livro de Ismail Kadaré, através de uma escrita concisa e complexa, mas muito bem articulada e envolvente, tem o condão de despertar no leitor a consciência de quanto devemos temer o autoritarismo e do quanto devemos lutar para nos livrar de governos autoritários, não importa sua ideologia: todo autoritarismo é sanguinário e precisa ser combatido, de preferência em sua origem.