domingo, 29 de junho de 2025

A filha do Papa, Dario Fo

A filha do Papa, Dario Fo


Última década do século XV. Um novo papa é ungido à cátedra do Vaticano, um papa originário da nobreza espanhola dos Borgia, que assume o nome de Alexandre VI e inaugura uma era de corrupção, orgias, assassinatos e guerras numa Itália divida (e também a Europa) em inúmeros reinos que não se entendem e vivem estabelecendo frágeis alianças de poder uns contra os outros. Antes de ser escolhido papa, Borgia tinha por amante uma dama da sociedade romana e com ela, quatro filhos. Para fugir ao escândalo, contratou um amigo para fingir ser o esposo e pai das crianças, só revelando a verdade às vésperas de assumir o papado, porque o poder o livraria das intrigas e porque o amigo falecera. Assim, Lucrecia já nasceu num ambiente de falsidade e de luxúria. No entanto, a biografia traçada por Dario Fo segue um roteiro diferente de tudo quanto já se escreveu sobre essa mulher incrível. Nada de fofocas relacionadas a orgias e vinganças, mas a trajetória de uma mulher vítima principalmente de seu irmão, César, um assassino e conspirador que perseguiu todos os maridos e amantes de Lucrecia e assassinou um deles. Os três casamentos dela foram sempre arranjados por interesses do pai, o papa, ou por interesse do irmão. Mesmo seu último casamento, com o duque de Carrara, teve a influência dos interesses políticos da corte papal. Com Alfonso, apesar de todas as desavenças e dificuldades, sua vida se estabilizou e ela, uma mulher culta e muito acima dos estereótipos que se criaram a seu respeito, consegue até mesmo a confiança e o apoio dos cidadãos, por sua honestidade, seu caráter e sua bondade, chegando a substituir o marido na administração do reino. A par da trajetória de Lucrecia, o livro traça um retrato fascinante de uma época complexa, o Renascimento, quando o mundo europeu passa por grandes transformações artísticas, literárias, filosóficas, sociais e políticas, embora o ambiente de intrigas e guerras permeie a política corrupta e eivada de nepotismo, assassinatos, intrigas, traições e alianças que não se sustentam entre os vários reinos feudais. Enfim, uma obra realmente interessante, que nos proporciona uma nova visão do início do Renascimento.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

A mulher desiludida, Simone de Beauvoir

 A mulher desiludida, Simone de Beauvoir


O livro original contém três histórias, mas a edição que eu li tem apenas duas: “A idade da discrição” e a que dá título ao livro. Poderiam ser chamados de contos, embora longos, porque contêm apenas um núcleo dramático. A primeira história nos traz os conflitos de um casal que se diz de convicções de esquerda com as posições cada vez mais conservadoras do filho, Philippe, que busca uma vida não de realização intelectual, mas de tranquilidade burguesa, através de um emprego medíocre oferecido pelo sogro. A par disso, refletem sobre a sua situação pessoal, a caminho da velhice, o que prenuncia as reflexões posteriores da autora não só sobre esse tema, mas também sobre o choque de gerações, que explodiu a partir de maio de 1968. No segundo “conto”, em forma de diário, a personagem feminina, na faixa dos 40 anos, mergulha num processo autodestrutivo ao constatar que o marido está tendo um caso com uma mulher mais nova. Sua vida de dona de casa medíocre e mediocrizada pela situação que ela escolheu, ao se casar, é colocada em xeque, diante dessa outra, uma mulher do mundo, separada do marido, que tem na profissão de advogada, uma vida útil que ela, a esposa, nunca teve “coragem” de buscar. Além disso, há o distanciamento e o problema das filhas: a mais velha, morando nos Estados Unidos e a mais nova num casamento também medíocre, como o dela mesma. Culpa-se pelo afastamento do marido, pela situação das filhas, pela vida “de madame” que escolheu, pela incapacidade de manter um casamento que, ao fim e ao cabo, já estava esgotado. Enfim, ambas as histórias nos colocam diante de uma pensadora da condição feminina e de outras questões pertinentes à humanidade como uma excelente ficcionista que, através de histórias bem contadas e bem articuladas, sem discursos moralistas ou moralizantes, nos levam aos pontos cruciais de seu pensamento sociológico e filosófico.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

O ar que me falta, Luiz Schwarcz

 O ar que me falta, Luiz Schwarcz


Este livro é uma autobiografia de um dos maiores editores de livros do país, dono da Companhia das Letras. Então, podia-se esperar que tivéssemos uma história ligada à fundação da editora, mas não é isso de que trata o livro. Há um esclarecedor subtítulo: “história de uma curta infância e de uma longa depressão”. Humaniza-se, assim, o empresário, para narrar a vida de sua família, especialmente de seus pais, na fuga da Europa conflagrada pela segunda guerra, dominada por governos nazistas. Uma família de judeus, claro, que no Brasil encontra possibilidades de sobrevivência, mas marcada essa sobrevivência por traumas profundos. O pai, André, saltou de um trem que levava prisioneiros para o campo de concentração e extermínio de Bergen-Belsen, num grito do avô, Láios, cujo destino a família nunca soube com clareza. A mãe, Mirta, uma croata, veio ainda criança para o Brasil, através da Itália, passando por muitas dificuldades. O casal se encontra no Brasil e tem em Luiz o único filho, pois ela tem seguidos abortos, o que ocasiona inúmeras crises no casamento, interferindo essa situação na própria criação do autor, meio que se auto responsabiliza pela situação dos país, o que o leva a uma infância e adolescência complicadas, daí resultando as suas crises depressão que vão acompanhá-lo quase que pela vida toda, agravadas por um diagnóstico de bipolaridade. Essas angústias todas são escancaradas e narradas, num processo catártico de grande sensibilidade, o que permite ao leitor conviver com esses traumas e perceber que, muitas vezes, por trás de uma vida de sucesso também há sofrimento e dor, ainda que a situação privilegiada do autor permita que ele procure tratamento, o que não ocorre, em casos semelhantes, com a maioria do povo, coisa que Luiz Schwarcz tem também a lucidez de perceber e de se expressar a respeito no livro. Enfim, um relato que se lê com um certo desconforto, claro, mas com a certeza de que estamos diante da trajetória de um homem público lúcido e profundamente humano.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

A feiticeira de Florença, Salman Rushdie

 
A feiticeira de Florença, Salman Rushdie


Usando uma vasta bibliografia história, Salman Rushdie cria essa ficção meio fantástica meio real, para nos contar a história de Antonio Argalia, que viveu na Florença renascentista, amigo de infância de Niccolò Machiavelli. Mas suas aventuras não se restringem a Florença: Argalia decide tentar a sorte em terras longínquas e, como mercenário, oferece seus serviços a vários senhores, adquirindo experiência suficiente para colocá-lo no comando das forças otomanas que derrotam o xá da Pérsia, em 1514. A ex-amante do xá, Qara Köz, mulher de extrema beleza e de poderes mágicos, escolhe ficar com ele e, claro, ele se apaixona por ela, levando-a para sua cidade, onde se torna a poderosa e controversa feiticeira de Florença. Muitos anos mais tarde, um jovem mágico e viajante clandestino de um navio inglês que leva o embaixador da Inglaterra com uma carta ao poderoso imperador Akbar, o grande, consegue surrupiar essa carta e apresentar-se à corte de Akbar como seu tio, ou seja, filho de Qara Köz. Para provar esse pretenso parentesco, relata ao imperador a vida de sua belíssima mãe, com requintes de detalhes da vida de Florença, que o deixam em dúvida, embora as datas não batam: o forasteiro só poderia ser filho da feiticeira, se ela o concebesse em idade muito avançada, o que ele explica pelos poderes mágicos da pretensa mãe. A dúvida persiste, enquanto a narrativa esmiúça detalhes da vida em Florença e do dia a dia na corte do reino de Akbar no século XVI, misturando fantasia e realidade, para nos sugerir que a Renascença Florentina, dos tempos de Machiavel e de tantos escritores e poetas, pode também ter chegado aos impérios do oriente. O romance é longo, mais de 400 páginas, mas sua leitura nos traz o prazer de acompanhar uma história narrada com a perícia e a força de um dos maiores ficcionistas de nossos tempos. Depois de Os Versos Satânicos, essa bela e polêmica obra de 1988, Salman Ruschdie nos brinda, em 2008, com esse romance portentoso, que se deve ler com calma e atenção, para realmente se desfrutar de uma obra prima.   

quinta-feira, 12 de junho de 2025

O último teorema de Fermat, Simon Singh

O último teorema de Fermat, Simon Singh


Da matemática do antigo ginasial, guardo as quatro operações e um certo fascínio pelo teorema de Pitágoras. Não que não goste de matemática, mas é a matemática que não gosta muito de mim. Além disso, enveredei pela área de humanas e os números e seus mistérios ficaram escondidos em algum canto de minha memória. Quando encontrei o livro “O último teorema de Fermat” e li algumas linhas sobre o seu assunto, o mistério dos números aflorou-me e tentei o desafio de buscar entender o que era, afinal, esse tal de teorema de Fermat que ficou desafiando os matemáticos por mais de três séculos. Quando iniciei a leitura, logo descobri que esse teorema tinha uma remota semelhança com o teorema de Pitágoras (a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa, para refrescar sua memória) e isso ajudou um pouco a que o meu interesse despertasse ainda mais, embora muitas vezes tenha tropeçado nas teorias matemáticas complexas que o autor não pode deixar de citar, ao narrar a saga do enigma finalmente desvendado, em 1993, por Andrew Wiles, um professor da Universidade de Princeton. Pierre de Fermat, um matemático do século XVII, interessava-se por um ramo da Matemática chamado teoria dos números, com poucas aplicações práticas claras. É nesta teoria dos números que se engloba o seu famoso teorema, conhecido como Último Teorema de Fermat. Este teorema tem um enunciado extremamente simples: não existe nenhum conjunto de inteiros positivos x, y, z e n com n maior que 2 que satisfaça a equação xn + yn = zn. Muitos pesquisadores devotaram suas vidas para revelar esse enigma, com muitos e muitos anos de estudos, tentativas e, principalmente, persistência. O livro relata essa busca épica pela solução do maior problema matemático de todos os tempos, levando-nos aos tempos dos matemáticos gregos, passando por gerações e gerações de teóricos e estudiosos dos mistérios dos números, numa história cheia de reviravoltas, de obsessão e de drama. Os capítulos finais são dignos de qualquer filme ou história de mistério e suspense e deixa o leitor transido e torcendo pelo professor de Princeton, diante de todas as dificuldades por ele enfrentadas para, enfim, ver aprovada a sua longa, complexa e exaustiva proposição de que o teorema não era impossível. Se o leitor desta resenha aprecia e entende a matemática, a leitura ser-lhe-á extremamente agradável; mas, aos leigos, como eu, não há nenhum problema de se confessar ignorante e, por esse motivo, passar ao largo as teorias e as descrições mais complicadas e ler o livro como um romance de amor à ciência e, sobretudo, de mistério e suspense. Com certeza, não se arrependerá.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

A história do mundo em 100 objetos, Neil MacGregor

A história do mundo em 100 objetos, Neil MacGregor


Publicado em 2011, esse livro do ex-diretor do Britsh Museum, o historiador Neil MacGregor, consegue a proeza de nos levar para um passeio pela história do mundo, suas personagens, seus hábitos e costumes, os impérios que governaram ou onde viveram de forma leve e precisa, com informações e deduções que nos encantam, divertem e instruem. Não há dúvida de que as mais de 700 páginas do livro possam espantar algum leitor menos ambicioso, mas assim que se começa a ler a descrição de cada objeto escolhido para ilustrar um momento da história da humanidade e seu contexto histórico, mergulha-se num mundo de informações tão interessantes, que o número de páginas deixa de ser um problema e passa a ser uma viagem deliciosa pela História. Os objetos escolhidos pelo autor pertencem ao Museu Britânico e vão desde um sarcófago de madeira de Tebas (perto de Luxor) no Egito, datado cerca de 240 a.C., passando por uma máscara de pedra encontrada no sudeste do México cerca de 900-400 a.C. ou um cartaz do centenário da Reforma impresso em xilogravura, de Leipzig, Alemanha, em 1617 d.C., até um cartão de crédito da Visa do final do século passado e uma lâmpada e carregador solar do século XXI. Todos os objetos mais ou menos comuns e objetos artísticos de quase todos os povos da terra, artefatos que contam histórias impressionantes do momento em que eram ou são utilizados ou quando foram construídos. Essa viagem no tempo é feita em capítulos mais ou menos curtos, mas escritos de forma clara, concisa, com um olhar inusitado e profundamente revelador da nossa história e nossa trajetória neste planeta que estamos explorando e que corre hoje o risco de, com seu aquecimento provocado pelo nosso consumismo, acabar nos consumindo. Para concluir, destaco a linguagem leve e bem-humorada, que torna a leitura um verdadeiro passeio não só pela História, mas também pelo acervo do British Museum, um dos maiores museus do mundo, com fartas ilustrações coloridas de todos os objetos.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Suicídios exemplares, Enrique Vila-Matas

 Suicídios exemplares, Enrique Vila-Matas


Histórias de suicídios e de suicidas podem parecer, à primeira vista, um tanto mórbidas. O ato de tirar a própria vida sempre foi um ato arbitrário do suicida, que afeta a vida de forma indelevelmente dramática de todos os seus familiares e de todos que lhe queriam bem. No entanto, ao se propor a narrar o suicídio de seus personagens, através de vários contos, Enrique Vila-Matas vai não só desvendando motivações, mas também desmobilizando nosso pensamento contra esse ato humano e complexo que é a decisão de tirar a própria vida. Na verdade, a ação dos heróis desse livro cheio de imaginação, sutileza, inteligência e obsessão pelo suicídio acaba, de forma paradoxal, por ser na verdade uma elegia à vida, transformando, com uma certa dose de humor, característica do autor, as artimanhas de cada candidato ao suicídio em uma maratona de jogos que desafiam a nossa imaginação. Não deixe, portanto, o leitor que aprecia a obra do grande escritor cubano que é Enrique Vila-Matas, de evitar esse delicioso livro de contos apenas por seu título: não são histórias mórbidas, mas um desfile de vidas que nos desafiam a entender melhor os seres humanos, algo a que a boa literatura sempre nos leva. Gostei e recomendo.