sábado, 6 de dezembro de 2025

Só garotos, Patti Smith

Só garotos, Patti Smith


Patti Smith é uma multiartista estadunidense: cantora, compositora, poetisa, pintora, autora e fotógrafa. Nascida em 1946, em Chicago, aos 20 anos tentou a sorte em Nova Iorque, onde conheceu Robert Mapplethorpe, com quem viveu e conviveu até sua morte em 1989. O livro “Só garotos” é uma autobiografia que contém uma biografia, ou seja, narra toda a vida da autora em sua busca por reconhecimento e, ao mesmo tempo, a vida do fotógrafo e também multiartista Robert Mappethorpe. A vida comum de Patti e Robert só durou o tempo de o fotógrafo descobrir sua homossexualidade, mas a amizade e o amor entre eles foi muito profundo, já que passaram juntos por muitas dificuldades, até encontrar o sucesso. Conviveram ambos com inúmeros personagens da cultura novaiorquina dos anos 60 e 70: pintores, atores e atrizes, cantores e cantoras, poetas e escritores, dramaturgos... A lista é enorme e todos eles são citados ou aparecem em momentos específicos da narrativa. Foi um período intenso, de muita criatividade e de busca de caminhos na música, na pintura, no desenho ou na fotografia. São dois artistas polêmicos e audaciosos. Tiveram momentos de muitas dificuldades financeiras, de subempregos, mas de muita resiliência para frequentarem ambientes onde pudessem encontrar o que hoje diríamos sua tribo. O tom é sempre de muita franqueza e irreverencia, e pode-se dizer que Patti explicita três grandes amores de sua vida: por Robert, uma amizade que rompe a fronteira do tempo e não termina nem com sua morte em consequência de complicações da aids, já que este livro é uma ode e uma reverência ao grande artista que ele foi; pela arte, na incessante pesquisa de novas formas de comunicação, em todos os aspectos de produção a que a dupla se lança, ela no desenho, na pintura e, depois, na música, ele, em artes gráficas e, depois, na fotografia em preto e branco; e por Rimbaud, o poeta mítico da literatura francesa e universal, que tem influenciado gerações. A trajetória desses vinte e tantos anos de convivência é esmiuçada detalhadamente, com precisão quase cirúrgica, numa honestidade de propósito que nos cativa desde as primeiras páginas. Se o leitor desse breve comentário gosta de música, especialmente de rock, e tem interesse em se informar sobre um momento crucial da cultura e da contracultura das ruas de Manhattan, de saber mais sobre artistas que propuseram caminhos ousados de liberdade e criatividade, naqueles esfuziantes anos 70, não deixe de ler esse livro, escrito com talento, com paixão e sobretudo com a sinceridade de alguém que viveu e participou desse momento único, juntamente com muitas outras personagens inesquecíveis.

domingo, 30 de novembro de 2025

Predadores, Pepetela


Predadores, Pepetela


De Angola nos vem esse romance incrível, que se lê quase sem piscar, num estilo que só os bons contadores de história sabem fazer, como um Jorge Amado africano. Pepetela é o pseudônimo de Carlos Maurício Pestana dos Santos. A história que ele nos conta tem o condão de nos conduzir pelos eventos recentes de Angola, desde sua independência, em 1974 até o começo do século XXI. Seu “herói” é o ambicioso Valdimiro Caposso, que tem origem humilde, filho de enfermeiro e avesso à política, nascido no interior do país. Ainda jovem, vai para Luanda e começa como ajudante de um pequeno armazém num bairro pobre da capital, mas a instabilidade política das guerras pela independência leva o dono do armazém a fugir e deixar para ele a responsabilidade pelo armazém. Aos poucos, vai ampliando seus negócios, com seu incrível tino comercial e sua ambição sem limites, envolvendo-se, quando necessário, com políticos poderosos, para ampliar pouco a pouco sua fortuna, até tornar-se um dos maiores empresários de Angola, um individuo inescrupuloso e frio, até mesmo com a família. Assistimos a todos os golpes e negociatas que ele usa para subir, colocando em sua conta um assassínio, logo no começo do romance, quando já é poderoso e coleciona várias amantes, e acompanhamos suas relações com políticos, governantes, ministros e amigos endinheirados, até o começo de sua queda, já no final da história, um final aberto, que deixa para o leitor complementar com a sua imaginação a decadência do grande empresário. Há muita história nas indicações e nas entrelinhas do romance, mas o que fica para o leitor é a capacidade humana – até demasiado humana – de se aproveitar das situações mais críticas de um povo para estabelecer esquemas de corrupção que visam a seus interesses escusos, só a seus interesses, e que se lixe a população, o que é um tema universal. A destacar, além da fluidez da narrativa, o uso de palavras típicas do português falado em Angola, o que não chega a impedir a compreensão do texto, embora um glossário ao final do livro ajude o leitor. Há muitas vezes um humor ácido, mas consistente, revestido de ironia e de necessidade de levar a história de forma a que o leitor não “passe pano”, por assim dizer, nas falcatruas de VC, como muitas vezes aparece o nome de Vladimiro Caposso, um anti-herói – corrupto, assassino, insensível, inculto – mas, em termos literários, extremamente cativante. A literatura africana ainda precisa ser mais conhecida por nós, brasileiros, porque há muitos autores que nos surpreendem, não só os de língua portuguesa. Aliás, devemos tanto à África, que ler autores desse continente é só o mínimo que podemos fazer, para amenizar a dívida que temos para com esse continente de cores, cultura e história incríveis.

sábado, 22 de novembro de 2025

Sob o sol de Satã, Georges Bernanos

Sob o sol de Satã, Georges Bernanos


Católico, Bernanos está vinculado a uma visão do cristianismo semelhante à de François Mauriac e Graham Greene, que é uma resposta de fé ao tema central da relação entre o ser humano e o mundo na literatura contemporânea. O romance traduz, portanto, uma visão católica. Mas, paremos por aí com esse catolicismo. Explico: “Sob o sol de Satã” conta a história de um padre de uma pequena paróquia do interior da França, o padre Bernanos, que tem uma vida de sacrifícios, de pobreza – tanto física quanto mental –, de autopunição por uma fé exacerbada, com visões de Satã e de sua influência ou tentativa de influência em sua vida eclesiástica. Há um crime, cometido por uma garota de 16 anos seduzida por um medalhão de mais de 40 anos da aldeia; há uma tentativa de ressurreição de uma criança morta por meningite e pouco mais do que isso em suas mais trezentas páginas, em termos de ação. Mas, aí está a mão do grande escritor: literatura na veia, para delícia de quem gosta de longas e complexas incursões do narrador onisciente no pensamento e nas intenções e atos das personagens. E mais: todo o catolicismo do autor pode deixar quem é católico satisfeito com as possíveis possessões demoníacas e a vida de santidade do padre e seus possíveis milagres, mas também deixa margem a quem não acredita em nada disso em imaginar soluções menos místicas para toda a história, que tem uma pegada de muito psicologismo, de muita filosofia e de uma boa pitada de suspense. Enfim, o vazio filosófico do padre Donissan enche as páginas do livro com a boa literatura francesa que estamos acostumados a encontrar nos grandes autores, tanto do século XIX, quanto do século XX, o que torna sua leitura ao mesmo tempo um desafio a cada página e um prazer a cada parágrafo.

domingo, 16 de novembro de 2025

Paris, a festa continuou, Alan Riding

Paris, a festa continuou, Alan Riding


Declarada “cidade aberta”, Paris não resistiu com um único tiro à invasão das tropas hitleristas, em 14 de junho de 1940. A ocupação permaneceu até agosto de 1944. Durante esse tempo, a população conviveu com restrições, com toques de recolher, com perseguições, prisões e deportações de judeus e, claro, muito medo. Sabemos que houve muita gente que resistiu – e pagou com a vida; que houve muita gente que aderiu ou fingiu aderir – e sobreviveu. Mas, e a elite intelectual? Os escritores, os artistas, os poetas, os cineastas, os músicos, dançarinos e bailarinos? Como reagiram à ocupação alemã? Dessa gente complicada e pensante é que trata o livro de Alan Riding, e o título, nesse sentido, já é provocativo. Numa longa crônica da ocupação, ele vai relacionando, nome por nome, todos os que aderiram porque já eram fascistas e antissemitas (lembrando que o antissemitismo na França se exacerbou a partir do caso Dreyfus); todos os que se omitiram, por comodismo, por medo e por vários motivos particulares; todos os que se opuseram e até mesmo lutaram e pagaram com a vida, por suas convicções. Nesse cadinho de confusões e contradições ideológicas, “a festa continuou”, isto é, a vida intelectual e festiva da cidade logo retomou seu ritmo e a elite, principalmente a elite abastada, manteve seu ritmo de festas e salões, abastecidos pelo mercado negro ou pela boa vontade dos nazistas, em contraste com a penúria da população em geral. Imprensa, teatros, bares e restaurantes, casas de espetáculos continuaram funcionando, porque aos alemães era importante não só cooptar o máximo possível da intelectualidade parisiense, mas também tentar divulgar sua cultura entre os franceses, promovendo inclusive caravanas de escritores e artistas à Alemanha. E muitos aderiram a essa farsa, até mesmo com a desculpa de que conseguiam libertar amigos ou franceses e até mesmo alguns judeus presos nos campos de concentração nazistas. Baseado numa pesquisa rigorosa, o autor vai desfilando as desditas, as contradições, o comodismo, as lutas e o adesismo disfarçado ou declarado de toda uma elite cultural, até a libertação da cidade, em 1944, quando, então, uma nova e complexa situação se coloca para os artistas e intelectuais: a delação, prisão, julgamento e punição (até com fuzilamento) dos que colaboraram com o regime nazista. E muitos foram rigorosamente punidos, mesmo sob o protesto de alguns intelectuais, que reclamaram que sua classe foi até mais punida do que muitos empresários e operários que contribuíram muito mais com o fascismo. Enfim, um relato longo, preciso, sem julgamentos ou busca de heróis ou traidores, mas que deixa para o leitor a certeza de que esse momento eletrizante e crucial da história da França, especialmente de Paris, deve servir como exemplo e alerta para todos nós do perigo das ideologias de extrema direita e o estrago que elas fazem na mente das pessoas, nas relações sociais, e sua capacidade de destruição de uma sociedade.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O vento sabe o meu nome, Isabel Allende

O vento sabe o meu nome, Isabel Allende


Um romance escrito em estrutura de overlap: a autora conta a história da família Adler em Viena e depois a “esquece”, para nos falar de outras personagens, Leticia, Selena e Anita e, então, ele volta a falar dos Adler, agora para nos contar a história de Samuel e, assim, vão-se alternando as histórias, como num overlap de carros de corrida. Expliquemos: pense numa pista de carros. Cada vez que um carro passa pelo ponto de chegada, ele continua sua trajetória sem estar no campo de visão, mas continua em nossa imaginação. Sabemos que estão correndo, mas não sabemos em que condições. Cada vez que passa o número 1, por exemplo, recordamos os números 2, 3 e 4... Quando os elementos se intercalam (1...2...3...1...2...2...1 etc.), temos uma estrutura mais complexa de overlap. Dito isso, vamos a um breve resumo da história: os Adler são uma família judia em Viena, na famigerada “noite dos cristais”, quando a população de judeus é cruelmente perseguida e muitos são mortos. Só se salva o garoto, Samuel, enviado à Inglaterra, onde é criado como órfão. Ali ele cresce arredio, e se torna músico. Migra para os Estados Unidos, fascinado pelo jazz e casa-se com uma garota de “vida livre”, que lhe dá uma filha e um neto. Enquanto isso, Letícia tenta entrar nos Estado Unidos com sua filha de seis anos, Anita, fugida da violência de El Salvador, mas mãe e filha são separadas por uma nova política de migração, já no primeiro mandato de Trump. Selena Durán, uma jovem assistente social, se comove com a história garota e, com a ajuda de um advogado, Frank Angileri, tenta encontrar Leticia ou conseguir um visto de permanência nos Estados Unidos para a menina, quando, então, as vidas de todos os personagens vão-se entrelaçando até o final. Um tema, portanto, atualíssimo: a situação dos migrantes, incompreendidos e perseguidos por vários governos em todo o mundo, numa história humana e extremamente tocante, narrada com a sensibilidade e a maestria com que essa grande autora chilena nos brinda sempre em seus livros.


quinta-feira, 30 de outubro de 2025

De quatro, Miranda July

De quatro, Miranda July


Um livro escandalosamente feminino; escandalosamente feminista. A história tem laivos romanescos que lembram paixões absolutas e incontroláveis, como em “Os sofrimentos de Werther”. Mas, não se engane: a autora não deixa pedra sobre pedra na construção das agruras de sua personagem. Narrado em primeira pessoa, podemos assim resumir seu enredo: uma artista de 45 anos que mora em Los Angeles resolve fazer uma viagem até Nova Iorque – de carro! Porém, ao parar numa pequena localidade a poucos quilômetros de Los Angeles, conhece um jovem funcionário de uma loja de automóveis, hospeda-se num pequeno hotel, contrata uma decoradora (que é esposa do jovem) e gasta 20 mil dólares para transformar o quarto do hotel numa espécie de ninho do amor. Ao atrair o rapaz, Daivey, encetam uma amizade com toques de muito erotismo, mas sem nunca chegar ao ato sexual. Descobre que ele é bailarino e segue algumas regras de vida rigorosas que não lhe permitem abandonar a esposa. Após mais de 15 dias de romance explosivo, retorna a Los Angeles, para o marido e a criança que eles têm, como se realmente tivesse atravessado o país e voltado. Note que eu disse “criança”, porque Sam é fruto de um parto complicado, teria sido um natimorto que sobreviveu e sempre que o casal se refere a essa criança, ambos usam pronomes neutros (traduzidos em português por “elu”). Em torno dessa história meio insólita, a narradora descreve com detalhes toda sua luta interior para superar a crise de meia idade, convivendo com um casamento que não parece ter futuro, com sua sexualidade agora exacerbada por uma paixão incontrolável e irrealizável, com lembranças complicadas de seu parto e sua relação com amigas e amantes mulheres por quem também se apaixona, sem nunca, no entanto, esquecer os momentos que passou com Daivey naquele quarto de sonho de um hotel da pequena cidade. Um desabafo, sem dúvida, de tirar o fôlego, em que estão em jogo valores femininos de liberdade, de busca de realização que, ao mesmo tempo, expõem inúmeras vulnerabilidades de sua condição de esposa, de mãe e de amante. Sem dúvida, um livro poderoso, mas não posso concluir essa resenha sem anotar o desconforto que senti com o final onírico, embora catártico, mas que me pareceu improvável diante de todos os acontecimentos e confissões e reflexões anteriores, quase um anticlímax de todo o feminismo da personagem.

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Brancura, Jon Fosse

Brancura, Jon Fosse


“Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per una selva oscura / ché la diritta via era smarrita.” Com esses versos, Dante inicia sua trajetória pelas três dimensões da morte, o inferno, o purgatório e o céu. Tem a companhia de um poeta e de sua amada para o guiar em sua viagem. Jon Fosse inicia seu romance com um frases banais: “Eu dirigia sem parar. Era bom. Era boa a sensação de estar em movimento”. Mas, logo depois encontramos a referência que me fez lembrar Dante, logo depois de seu carro atolar: “Diante de mim está a floresta, só a floresta, pensei. Então foi até à floresta que esse ímpeto de dirigir me trouxe”. Quem é o motorista? O que ele faz? Por que está ali? São perguntas que o leitor se faz ao continuar a leitura desse romance brevíssimo – ou seria um conto? Não importa o gênero que lhe atribuamos, nenhuma resposta se obtém: apenas o desespero de um homem perdido numa floresta escura. Só. Absolutamente só. Apenas seus delírios, sua imaginação. Mas serão mesmo delírios? Será fruto de sua imaginação o encontro com uma “entidade” de luz? Será fruto de seu delírio o encontro com seus pais? E quem é essa terceira personagem, ainda mais estranha, de paletó preto e gravata branca? Ele tenta conversar com essas figuras, com essas aparições, mas essa conversa trucada e reverberativa é real? Num texto tenso e reiterativo, como num monólogo teatral, o autor vai nos conduzindo pelos meandros da consciência, das incertezas e dos medos de alguém que não sabemos exatamente quem é, mas que nos toca, porque o jogo de claridades e escuridão da floresta e dos pensamentos dessa personagem despertam no leitor algo que parece ao mesmo tempo estranho e familiar. Não há distensão, não há alívio nessa busca interior dentro da floresta escura dessa mente conturbada, em meio à brancura da neve que cai, da lua e das estrelas que surgem e logo são encobertas pelas nuvens. Solidão. Só a solidão, já que a fluidez e a incorporalidade das “aparições” não são, como os guias que Dante teve em sua viagem, um refrigério ou bússola para sua caminhada pela “selva oscura” de sua mente. Um texto ao mesmo tempo estranho e fascinante desse grande escritor norueguês, detentor de uma obra imensa e de um prêmio Nobel de literatura.