quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Distância de resgate, Samanta Schweblin

Distância de resgate, Samanta Schweblin


O fascinante deste livro não está propriamente na sua narrativa, mas na forma como a autora, argentina, teceu o enredo. Uma arquitetura literária complexa, mas não exatamente impossível de ser desvendada pelo leitor: as várias vozes se intercalam na exposição de um problema que parece, a princípio, misterioso, e que vai nos envolvendo pouco a pouco em sua teia. A personagem principal, a mãe, aluga uma casa de veraneio no interior não nomeado, num campo onde há inúmeras plantações de soja e haras. Ali conhece a mãe do menino que fala em seu interior e a adverte dos perigos para sua filha e para ela mesma: algo que acometeu aos cavalos do pai e a si mesmo e que pode atingir sua filha, mesmo que ela tenha para a menina uma distância de resgate, isto é, mantenha uma vigilância segura de proteção à garota. As várias vozes narrativas conduzem a história para um desfecho aberto e de alerta para o que fazemos com o meio ambiente, numa espécie de voragem que vai tragando a todos para a fatalidade de algo incontrolável e pessoal, porém de alcance mais amplo. A pergunta que fica engasgada na garganta do leitor desse fio vital e afiado que prende a todos para a tragédia é até que ponto o ser humano interveio na natureza para provocar nossas doenças, para nos atormentar, sem que nada possamos fazer, diante de um inimigo invisível e talvez invencível. Sem dúvida, uma das mais instigantes e intrigantes narrativas que se pode ler, principalmente pela arquitetura literária de grande criatividade e invenção, que nos faz mergulhar sem qualquer rede de proteção e sem qualquer preconceito do jogo proposto pela autora, em pouco mais de cem páginas.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Dias perfeitos, Raphael Montes

 Dias perfeitos, Raphael Montes


Os autores de livros de suspense adoram tipos estranhos para personagens de suas histórias. É mais ou menos o caso do Teodoro, ou Teo, de “Dias perfeitos”: estudante de medicina, adora as aulas de dissecação de cadáveres e tem, até mesmo, uma espécie de atração mórbida pelo corpo de uma mulher, a que ele dá o nome de Gertrudes. Tem poucos amigos e, do alto de seus 22 anos, teve apenas uma namorada virtual. Sua mãe, paraplégica, tem um cão chamado Sansão. O pai foi um grande advogado e morreu envolvido em escândalos financeiros. O perfeito tipo estranho. E é sob o ponto de vista desse tipo estranho que a história é contada. Teo conhece uma garota baixinha, bonita, migon, muito “doida” e “livre”, chamada Clarice e desenvolve por ela uma obsessão amorosa, não necessariamente sexual. Ela está escrevendo o roteiro de um filme a que deu o nome de “Dias perfeitos”, onde relata a viagem de três amigas em busca de novas experiências. Teo se aproxima de Clarice e sequestra a moça, dopando-a com medicamento e colocando-a numa grande mala, que leva, primeiro para sua casa, onde o cão ameaça sua privacidade o que o obriga a matá-lo com excesso de remédios da própria mãe, a quem “enrola”, dizendo que a moça que está em seu quarto é sua namorada e é muito discreta. Depois, foge com ela, na mala, para um hotel-chalé em Teresópolis e, em seguida, para a Ilha Grande, agora numa fuga provocada por um ato de extrema crueldade de Teo para com o ex-namorado de Clarice. Paremos por aqui, no relato do enredo cheio de detalhes e de uma trama complexa da mente doentia de Teo, para não antecipar ao leitor o prazer de seguir essa história mirabolante, cheia de reviravoltas, e ao mesmo tempo fascinante, que o autor nos apresenta nesse livro de suspense, crime e mistérios da psique humana. Termino essa resenha retomando o que disse acima sobre a personagem Teo: um tipo mais ou menos estranho, já que o final do livro nos traz uma mais estranha ainda mudança de qualidade desse jovem, o que torna os capítulos finais do livro ainda mais estranho, talvez não muito coerente com o que se esperava de todo o desenrolar da história. Mesmo assim, um enredo frenético para apreciadores de literatura de suspense, de um jovem escritor brasileiro bastante elogiado e promissor nesse gênero que não tem muitos seguidores por aqui.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Salvatierra, Pedro Mairal

 Salvatierra, Pedro Mairal


Numa narrativa curta e envolvente, acompanhamos a busca de um filho pela verdadeira identidade do pai. O narrador, o filho, desde criança acompanhou a criação da obra de seu pai, Juan Salvatierra, um pintor mudo, que elabora ao longo de sessenta anos uma única pintura em rolos que se estendem por quatro quilômetros, onde retrata a sua vida, a vida de seus amigos, parentes e de seus filhos, e também as paisagens de sua terra natal, à beira de um rio, no interior da Argentina. Aliás, o rio é a metáfora da própria pintura ou a pintura é a metáfora da própria vida. Anos depois de sua morte, o narrador e seu irmão voltam ao barracão onde estão as pinturas do pai, juntamente com dois holandeses e um antigo auxiliar e amigo do pintor, para escanear a longuíssima tela e depois enviá-la para Holanda, onde ficará exposta numa fundação, já que as autoridades argentinas não deram a ela a devida atenção. Nesse processo, de escanear cada rolo, o narrador percebe que está faltando uma parte, referente ao ano de 1961. Começa, então, a sua busca pelo trecho perdido ou roubado, vindo à sua memória que, uma vez, um dos amigos do pai teve com ele uma discussão e teria danificado com uma faca uma das telas, mas isso é uma memória confusa de criança. Enquanto procura deslindar o mistério do rolo perdido, vamos acompanhando a descrição das várias passagens retratadas, que reconstituem a vida do pai, um homem que não falava porque sofreu em criança um acidente ao montar um cavalo. Mas, as lembranças e muito do que está retratado nas telas só vão se completar, quando encontrarem o rolo perdido ou roubado e uma parte desconhecida da vida do pai se revelar a eles. Vão descobrir que, por mais que convivamos com uma pessoa, um pai, um irmão, um amigo, há sempre um mistério, zonas escondidas, escaninhos de vida que deviam ficar no passado e que, quando revelados, trazem à tona emoções, amores ou fatos que, embora preencham lacunas, sempre nos surpreendem. Enfim, como afirmei ao abrir essa resenha, uma história envolvente que, embora curta, em apenas 112 páginas contém, na sua leveza, uma narrativa brilhantemente conduzida pelo autor.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

O herói de mil faces, Joseph Campbell

 O herói de mil faces, Joseph Campbell


Lançado em 1948, quando estavam no auge as teorias psicanalíticas de Freud e Jung, Campbell utiliza-se delas em muitos momentos para nos apresentar os mitos e as lendas de inúmeras civilizações de tempos remotos até os dias atuais, em busca de elementos comuns desses mitos e lendas, para traçar aquilo que se convencionou chamar “a trajetória do herói”. Os mitos fundadores cosmogônicos têm, na visão do autor, profundos elementos arquetípicos que, embora apresentem muitas e diferentes concepções religiosas, contêm, no entanto, semelhanças de visão de mundo de civilizações díspares no tempo, desde as mais remotas até séculos há pouco terminados, e no espaço, desde países do Oriente até os povos indígenas da América do Norte e os povos pré-colombianos da América Latina. E essas visões arquetípicas e esses símbolos ressoam até mesmo nos sonhos detectados pela moderna visão psicanalítica, na interpretação de seus teóricos máximos, na época, como Freud e Jung. Também as lendas relacionadas aos heróis de todos os tempos trazem em seu bojo elementos constituintes de uma trajetória que se repete, de mil formas diferentes, em quase todas as histórias de heróis e heroísmos, o que também os tornam elementos arquetípicos da civilização humana, em sua busca de compreensão de si mesma, o que é, sem dúvida, o objetivo de nossas narrativas: mesmo que falemos e escrevamos sobre deuses ou heróis de grande poder mágico ou espiritual, ou grandes líderes religiosos, como Jesus, Moisés, Buda, Krishna e tantos outros, como os Anciãos das tribos australianas, o que o ser humano busca sempre é a compreensão do universo que o cerca e a compreensão de si mesmo dentro desse universo, algo talvez utópico, mas que, espera o autor, os estudos comparativos dessas civilizações e de seus mitos possam contribuir não para a unificação do pensamento humano, mas ajam de alguma forma para o entendimento mútuo entre os povos e entre os seres humanos. Concluindo, ressalto que não é um livro de fácil leitura, não só pela complexidade do tema ou temas abordados, mas pela grande erudição de Campbell, que nos obriga a uma atenção redobrada para entendermos não só a literalidade do que ele escreve, mas, principalmente, os meandros de suas entrelinhas, e toda a visão de mundo que ele nos desvenda através dos inúmeros mitos e lendas que ele nos apresenta através de suas mais de quatrocentas páginas.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Fim, Fernanda Torres

 Fim, Fernanda Torres



A história me fez lembrar um concerto grosso, em que há vários solistas e uma orquestra. No caso, cinco protagonistas e inúmeras personagens a eles ligadas. A autora disseca a vida, os amores, os casamentos, as frustrações, as traições, as farras, as separações, os arrependimentos de cinco amigos cariocas e suas companheiras e amigas em suas trajetórias de vida e morte, num Rio de Janeiro das décadas de 60 a 80. Álvaro vive sozinho, passa o tempo de médico em médico e não suporta a ex-mulher. Sílvio é um junkie que não larga os excessos de droga e sexo nem na velhice. Ribeiro é um rato de praia atlético que ganhou sobrevida sexual com o Viagra. Neto é o careta da turma, marido fiel até os últimos dias. E Ciro, o Don Juan invejado por todos - mas o primeiro a morrer, abatido por um câncer. A autora não poupa ninguém, em seu mergulho nesta sociedade complexa e em transformação, num estilo ágil, com frases curtas e precisas, para levar o leitor a esse mudo de superficialidade, de sexo e de vidas sem muita perspectiva, que não seja a de conseguir algum lenitivo para suas frustrações. Não se impressione o leitor com a “carioquice” dessas personagens, pois são arquétipos de um mundo que parece livre de peias moralistas, o que nos leva para o terreno dos exageros, mas que, no fundo, ainda tem muito do moralismo “como o de nossos pais”, segundo cantava Elis Regina. O spleen, o cansaço do hedonismo, das farras, do sexo livre e inconsequente, talvez esteja na origem desse novo moralismo por que passamos. Fernanda Torres, em seu romance de estreia, talvez tenha mirado em pássaros livres durante a famosa “revolução de costumes” do final do século XX e acertado em seus descendentes, ou seja, seres humanos ainda presos a preconceitos e ideias retrógradas desses primeiros anos do século XXI. Leia, divirta-se, e comprove.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Dance dance dance, Haruki Murakami

 
Dance dance dance, Haruki Murakami


Tókio, Japão, 1983 : começo da saga do narrador anônimo e protagonista dessas quase 500 páginas do romance de Haruki Murakami. Ele é um escritor de textos e se diz um limpa-neve cultural, fazendo trabalhos para várias revistas e reportagens estranhas. Após um período de depressão, alguns anos antes, hospedou-se com uma prostituta de luxo chamada Kiki no Hotel dos Golfinhos (na verdade, Golphin Hotel) em Sapporo. Agora, depois do sumiço da garota, volta à cidade, para se hospedar no mesmo hotel e tentar encontrar alguma pista de Kiki e buscar talvez um sentido para sua vida. Mas, o hotel não é o mesmo: no lugar daquele prédio decadente, ergue-se agora um imponente e moderno edifício, com um vasto hall de entrada, muitos andares, apartamentos de luxo e funcionários muito bem treinados. Só o que restou foi o antigo nome. Encanta-se por uma das atendentes e consegue fazer amizade com ela. Também conhece uma garota de 13 anos, Yuki, com quem irá compartilhar muitas histórias e vivências depois. Mas, o fato estranho é que, uma noite, de repente se dar conta, ao sair do elevador no 16º andar, de que está um corredor escuro e silencioso, em cujo final encontra um misterioso homem-carneiro. A partir daí, a história toma rumos que vão desde o relato de sua vida em Tóquio, onde reencontra um amigo de infância que é hoje um ator famoso de filmes B, que o envolve em encontros com prostitutas de luxo e com um caso de assassinato de uma dessas garotas, até, entremeado aos encontros e às conversas com o amigo Gotanda, uma viagem para o Havaí com a menina Yuki, para encontrar a mãe dela, uma famosa e estranha fotógrafa, cuja relação com a filha tem lances de esquecimento e desconforto. Tudo é narrado com detalhes, num estilo que leva o leitor a conhecer a fundo o protagonista, sem, no entanto, deixar de interessa-lo pela história, graças à engenhosidade do autor: se nada acontece durante algum tempo, sempre se esperam episódios estranhos ou relacionamentos que se entrelaçam e se confundem, até o desfecho final, quando o protagonista volta ao Hotel dos Golfinhos, para encontrar-se com Yumiyoshi, a atendente do hotel que o encantara, e tentar deslindar os últimos mistérios de sua vida ou encontrar um sentido para a própria existência. O livro é longo, mas a narrativa é tão fluida e bem articulada, que deixa na mente do leitor a certeza de haver lido um grande romance, escrito por um dos mais representativos escritores modernos do Japão.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Meninos, eu conto, Antônio Torres

Meninos, eu conto, Antônio Torres


Um pequeno volume com apenas três contos. Todos eles contam histórias de meninos, no interior da Bahia, num lugar que, segundo o autor, “Chamava-se Junco. Hoje se chama Sátiro Dias e é uma cidade até que bonitinha. Com estrada asfaltada e telhados enfeitados de antenas parabólicas. Já não está mais nos confins do tempo”. O primeiro conto, “Segundo Nego de Roseno”, narra com sensibilidade e com um certo humor o rito de passagem de um garoto, visto sob ponto de vista de um amigo bem mais velho. O segundo, “Por um pé de feijão”, narra a resiliência do pai do menino diante de uma tragédia que lhe queimou toda a saca de feijão, colhida num tempo de fartura, e que era a salvação da família, quando viessem os tempos de seca. O terceiro, o mais longo e com uma narrativa mais complexa, intitulado “O dia de são nunca”, conta como três forasteiros roubaram o santo esculpido num toco de pau, para fazer companhia a um menino aleijado, “deficiente físico, como dizemos hoje”, nas palavras do autor. O livro retrata, portanto, personagens simples e inesquecíveis de um Brasil que ainda tem na roça, no ambiente rural, muitos meninos parecidos com esses garotos de que nos fala Antônio Torres em seus contos.