sábado, 29 de março de 2025

A confissão da leoa, Mia Couto

A confissão da leoa, Mia Couto

Por que estão os leões atacando aquela aldeia perdida nas savanas de Moçambique? Há razões ecológicas, claro, mas há também razões enigmáticas, ligadas a tradições e mitos milenares. Quando o alarme dos ataques chega à capital, Arcanjo Baleiro, um experiente caçador é enviado à região, onde ele já estivera 16 anos antes e conhecera uma jovem, Mariamar, quando lá fora matar um perigoso crocodilo. Ele não se lembra mais da jovem, mas ela se lembra de “seu caçador”, que lhe prometera levá-la consigo para a cidade, e não cumprira a promessa. Uma das irmãs de Mariamar, Silência, foi uma das vítimas mais recentes do ataque dos animais. E Mariamar, uma jovem mulher com um histórico de problemas com a família, tem suas próprias ideias sobre a origem e a natureza dos ataques das feras. E ela é uma das narradoras, em primeira pessoa, de tudo o que acontece na aldeia, alternando a narrativa com o próprio caçador. E ambos se veem envolvidos numa trama política, cultural e de fatos que se misturam a lendas e mitos. Há muito mais do que os ataques de leões, naquela aldeia. E alguns desses mistérios só serão revelados ao final, pela mãe de Mariamar, uma espécie de protagonista oculta, que pouco aparece ao longo da trama, em momentos cruciais e pontuais e, quando se revela totalmente, é para deixar no leitor a certeza de que as verdadeiras leoas daquela tribo são as mulheres, eternamente deixadas de lado, sem voz e submissas a seus homens, mas que agora estão dispostas a começar a lutar por seus direitos. Sem dúvida, uma bela fábula, que não só nos fazem pensar em como o mundo masculino pode ser terrivelmente machista em qualquer parte do mundo, mas também nos leva a desvelar e entender os usos e costumes de povos cujas vozes raras vezes chegam até nós. Mia Couto, como sempre, não nega fogo em suas narrativas. E é sempre bom lê-lo e relê-lo.

 

quinta-feira, 27 de março de 2025

A polícia da memória, Yoko Ogawa

A polícia da memória, Yoko Ogawa


Nota inicial e interessante sobre essa obra: nenhum personagem tem seu nome revelado, a não ser o cão Dom e uma família, nomeada genericamente de família Inui. A narradora da história é órfã: seu pai, um ornitólogo, morreu quando os pássaros desapareceram; a mãe, uma escultora, pouco depois, levada pela polícia da memória e morta num ataque cardíaco, segundo a versão oficial. Ela é escritora e vive numa ilha onde não há referência a governos, mas sim a uma polícia que faz desaparecer as coisas e a memória das coisas, pouco a pouco. A população vai-se acostumando às perdas, porque não se lembra de que elas existiram um dia. Porém, algumas conseguem manter intacta essa memória das coisas perdidas e, por isso, são diuturnamente perseguidas, presas e também desparecem. A escritora percebe que seu editor, o homem que revisa seus romances, está em perigo. Resolve ajudá-lo, levando-o para um esconderijo em sua casa, contando para isso com o auxílio de um velho balseiro, cujo barco desapareceu, e que vive numa balsa à beira do rio que deságua próximo, no oceano. São muitos, claro, os perrengues por que passam, para driblar a polícia da memória. Enquanto isso, ela está escrevendo um romance sobre uma aluna de datilografia que perde a voz e torna-se prisioneira de seu instrutor. No entanto, um dia os romances desaparecem e todos são obrigados a queimar os livros e ela perde a memória do que estava escrevendo. A história toda é contada com muita perícia e sensibilidade, com muitos detalhes, e nos leva a pensar sobre a nossa capacidade de lembrar e de como não só certas doenças degenerativas, mas também o autoritarismo nos obrigam à perda da memória, à perda do nosso passado, que é onde buscamos energia para continuar vivendo e para construir o futuro. Não pode haver futuro para um povo e, individualmente, para as pessoas que não têm memória. E há uma outra pergunta que nos provoca a leitura: que lembranças gostaríamos de preservar para sempre em nossa memória? Enfim, um livro para se ler com o prazer da inventividade e da criatividade, numa escrita lenta e envolvente dessa grande escritora japonesa contemporânea.

sábado, 22 de março de 2025

O Exército de um Homem só, Moacy Scliar

 O Exército de um Homem só, Moacy Scliar

Um capitão sem tropa, um navegador sem navio, um sonhador de utopias. Assim se pode definir o herói improvável desse livro delicioso, escrito em 1973, e um dos marcos da literatura que mistura o fantástico e a fantasia à realidade, para contar a história de Mayer Guinzburg, um judeu que veio da Rússia ainda menino, no começo do século passado, com sua família, e vai morar em Porto Alegre, no bairro do Bom Fim. Cresce como um garoto rebelde e transforma-se no adulto delirante, que sonha reconstituir a cidade de Birobidjan, a cidade russa de onde ele proveio, como uma utopia socialista de igualdade e liberdade, sob a égide de uma espécie de comunismo mágico. A história é contada com interessantes cortes no tempo, começando em 1970, quando do último delírio de Mayer, o Capitão Birobidjan, como passa a ser chamado, regredindo para 1916 e blocando os capítulos em grupos de anos que correspondem às situações vividas pela personagem, desde os tempos de pobreza, passando pelos anos de prosperidade e novamente pobreza, quando a construtora que ele funda e administra junto com outro amigo judeu vai à falência. É quando ele, tutelado pelo filho, termina numa espécie de asilo para idosos, onde, no seu delírio de fundar uma sociedade igualitária, ele “toma o poder” e a direção da casa de idosos, mas termina sozinho, lutando com seus pequenos demônios interiores. O quixotismo da personagem rende passagens ao mesmo tempo comoventes e hilárias, o que torna a leitura dessa obra realmente importante de nossa literatura um prazer que se desfruta em cada página.

quinta-feira, 20 de março de 2025

China: o Socialismo do Século XXI, Elias Jabbour e Alberto Gabriele

China: o Socialismo do Século XXI, Elias Jabbour e Alberto Gabriele


Confesso que tive de fazer um esforço enorme para chegar ao final desse livro, não porque não fosse muito bom (e ele é!), mas porque não sou afeito às ciências econômicas, que são, para mim, algo misterioso e tão complexo que às vezes penso que nem mesmo os mais renomados economistas entendem completamente suas leis. Desde que o ser humano passou a produzir algo e a fazer trocas entre si e depois entre tribos etc., até os dias de hoje, quando vivemos num mundo de mais de 180 nações a terem cada uma sua moeda e seu sistema econômico, e mais, realizando entre si trocas complexas, que a Economia tem tentado explicar, através de seus ilustres estudiosos, como tudo isso acontece. Então, seduzido pela promessa de que, ao final da leitura, poderia ter pelo menos uma pequena noção, dentro do que me seria possível compreender, dos mistérios que rondam o crescimento espantoso do planeta China, não titubeei um só momento em continuar desbravando as teorias e as explicações dos autores desse livro complicado, mas esclarecedor. Está ele dividido em duas longas partes. Na primeira, os autores discorrem sobre as várias teorias econômicas e nos levam pelos labirintos de pensamentos complexos e a análises nem sempre compreendidas por um simples mortal como eu, mas que podem ser entendidas e assimiladas por quem entenda economia e, pelo menos, vislumbradas por leigos como eu. De tudo quanto compreendi, e não foi muito nem foi pouco, ficaram para mim duas importantes lições, dentre muitas outras: 1. que o mito do homo economicus é só isso mesmo, um mito, que não prevalece diante das novas teorias econômicas, que se utilizam hoje de ferramentas tão variadas quanto a historiografia, a sociologia e até a neurociência, passando a construir até mesmo uma nova e nunca imaginada pelos pensadores clássicos neuroeconomia; 2. que, apesar de todo o medo do comunismo, incrustrado na mentalidade de uma grande parte da humanidade, Marx ainda é talvez o maior teórico da economia política, sendo que o socialismo é plenamente possível e viável como alternativa ao capitalismo selvagem em que vivemos e como etapa de transição para novas formas de economia muito próximas do comunismo. A segunda parte é dedicada pelos autores a dissecar a economia socialista de mercado exercida pela China, desde 1978, que a colocou na vanguarda dos países desenvolvidos em tão poucos anos. Ficamos sabendo, e os detalhes são muitos, assim como os perrengues vividos pelos chineses, que, ao desenvolver uma economia voltada para o mercado, a China não abriu mão de princípios muito caros ao socialismo, como o controle estatal de todo o processo, ainda que muitas empresas estejam hoje privatizadas. Privatizadas, mas controladas pela máquina estatal, assim como toda a produção e os meios de pagamento constituídos pelos bancos. Deixa esse fato para nós, da esquerda, que nunca concordamos com a sanha privatista dos neoliberais, que as privatizações são mesmo um dos males maiores do capitalismo predatório que não consegue e não conseguirá nunca superar as desigualdades sociais, coisa que o sistema chinês tem conseguido, ao encontrar uma espécie de “caminho do meio” da transição em relativamente poucos anos de uma economia semifeudal para uma economia socialista voltada para o mercado, através de mecanismos extremamente complexos, mas de grandes resultados práticos tanto para o povo chinês quanto para assustar os governos arraigadamente capitalistas e de caráter neocolonialista, que tudo já fizeram para impedir que esse grande país se tornasse tecnológica e economicamente o que é hoje. Há, ainda, uma espécie de apêndice, em que os autores analisam dois outros países de escopo e de algumas (não muitas) semelhanças econômicas com a China: o Vietnã e o Laos. Essa resenha já se estendeu muito além do que pretende ser: apenas um comentário sobre um bom livro que deve ser lido por todos os que se interessam pelos destinos do mundo, mesmo que não sejam economistas, mas que tenham a resiliência de percorrer todas as suas páginas, já que o final vale a pena, ou seja, a mensagem que fica é que há esperança para o socialismo e para uma sociedade mais justa, se conseguirmos – algo que eu sei que é muito, muito difícil, mas não impossível – destruir o capitalismo. Leia e comprove.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Correio do tempo, Mario Benedetti

 Correio do tempo, Mario Benedetti


São mais de 30 contos e não é possível escrever sobre cada um deles nesta breve resenha. Então, vou apenas comentar algumas caraterísticas gerais da obra e do estilo desse interessante, para dizer o mínimo, autor uruguaio. São contos mais ou menos curtos, ou seja, quase sempre não ultrapassam cinco ou seis páginas, mas são suficientes para nos dar detalhes importantes da narrativa, aliás, é o que mais importa, os detalhes, com precisão, elegância e sutileza. Também com poucas exceções, não há grandes dramas, mas vidas que se separaram ou se encontraram, visitas inesperadas, encontros e despedidas, cartas reveladoras de sentimentos ou de acontecimentos etc. Às vezes, laivos de humor ou de surrealismo permeiam as narrativas ou nos levam a caminhos de imaginação e onirismo, a conclusões ou inconclusões que se possam imaginar, porém sempre com a delicadeza de quem sabe urdir uma narrativa para encantar o leitor e deixa-lo a pensar e sonhar um pouco mais, além do final de cada conto.

sexta-feira, 7 de março de 2025

O voyeur, Gay Talese


O voyeur, Gay Talese

A primeira reação, quando se começa a ler esse livro, é de repulsa. Afinal, expõe a intimidade de centenas, talvez milhares, de pessoas, de modo clandestino. Expliquemos: Gerald Foos é um homem casado, com dois filhos, que comprou um motel de 21 quartos, perto de Denver, no Colorado, Estados Unidos, e inventou uma espécie de “plataforma de observação” no sótão, para espionar os seus hóspedes, principalmente em suas atividades sexuais. Fez isso diariamente por mais de duas décadas. Viu de tudo e tudo relatou numa espécie de diário, onde não somente acompanha a evolução dos costumes sexuais dos estadunidenses entre os anos 60 e 80, como também observa detalhes de usos e costumes. E sobre tudo a que assistiu e ouviu faz comentários não apenas sobre sexo, mas também sobre o caráter dos hóspedes, observando que os seres humanos são, em geral, mentirosos, falsários, enganadores, com poucas noções de higiene, dizem uma coisa em público e outra em particular, o que tornou o voyeur, segundo ele mesmo, um indivíduo antissocial. Esse extenso relato é enviado, aos poucos, ao jornalista Gay Talese que, confiado nessa única fonte, e depois de muitos anos de correspondência e até mesmo de visita ao Manor House Motel, onde chegou a acompanhar Foos em sua plataforma de observação, escreveu e publicou o livro “The Voyeur’s Motel”, em 1916. O livro causou uma grande polêmica, em virtude de vários fatores, dois deles fundamentais: o aspecto ético e a confiança em uma única fonte. Foos relata que presenciou um assassinato em seu motel e não teve coragem de denunciar o assassino, um traficante. Esse fato não foi comprovado por registros da polícia local, gerando críticas à inconsistência da narrativa, além do debate ético sobre não apenas o assassinato, mas também sobre o crime de espionagem da vida alheia sem permissão. Enfim, mesmo que a polêmica tenha se amainado, com os atuais sistemas de espionagem eletrônica, que praticamente vasculham a vida de qualquer cidadão ao redor do mundo, fica o registro de uma história que parece inverossímil, quase uma ficção, mas que, apesar de algumas inconsistências, é verdadeira e é narrada por um dos maiores mestres do chamado “novo jornalismo” nos Estados Unidos, com textos baseados em fontes detalhadas e narrados em forma literária. Fatos reais transformados em boa literatura. A escrita elegante do autor e mesmo muitas observações do voyeur acabam por amenizar a repulsa inicial e torna a leitura desse livro uma aventura bastante interessante a respeito da complexa natureza humana.


Nota do blog:

Leia a reportagem sobre o livro e a polêmica neste endereço:

- Trapiche de bagatelas: 

domingo, 2 de março de 2025

E se eu fosse puta, Amara Moira

E se eu fosse puta, Amara Moira

Racionalmente, não tenho nenhum preconceito, nem “racial”, nem sexual, nem social. Porém, como hétero criado numa sociedade preconceituosa, não sei se guardo bem lá no fundo do inconsciente laivos de preconceito, principalmente sexual. Por isso, se escapar algum termo inconveniente na abordagem que vou fazer desse livro “chocante” (explicarei as aspas mais adiante), que me perdoem os leitores. Difícil falar do livro apenas, como gosto de fazer, sem me referir à autora. Amara Moira é uma professora de literatura, formada pela Unicamp, que transicionou um pouco tardiamente, aos 29 anos, e viveu um período como travesti e prostituta nas ruas de Campinas. O livro é uma compilação de relatos publicados no blog da autora, relatos de inúmeras transas ocorridas com homens, a “fina flor” dos machos. Pode chocar as mentes conservadoras, porque não há condescendência para qualquer firula romântica ao falar da prostituição: são relatos crus e diretos, detalhados, que põem em xeque a tal “macheza”. Na minha opinião, e foi o que percebi ao ler o livro, há, no mundo da prostituição de travestis (que muitos diriam “submundo”) uma série de regras e convenções que se repetem ad nauseam, em que o “cliente” dos favores sexuais tem a compulsão do desejo quase irracional e procura por esse tipo de “programa”, ao mesmo tempo que tem em si todos os preconceitos e repulsas por seus desejos e, por isso, se comporta como se fosse “dono” do corpo de quem está se oferecendo a ele. E porque está pagando, se acha no direito de ver o outro não como ser humano, mas como coisa que se usa e se descarta. Ao detalhar cada programa, Amara Moira expõe as contradições, os preconceitos e toda uma concepção de mundo a que sociedade conservadora leva os homens “de bem”, casados, “normais”, a buscar a satisfação de desejos que são considerados proibidos, interditos e pecaminosos nos corpos considerados não convencionais de travestis. Há poucas reflexões ao longo do livro, algumas pontuais e fundamentais, quando, por exemplo, ela diz que é a sociedade que joga travestis para a prostituição, ao não lhes dar oportunidades em outras profissões (“quem se consultaria com um médico travesti?”). Muitos poderão ler esse livro como apenas “relatos de putaria”, mas seria ótimo que, apesar disso, o lessem e buscassem o que se oculta em suas linhas e em suas histórias: um verdadeiro tratado do sexismo, do machismo, do preconceito, que poderiam ser dissecados longamente por psicólogos, sociólogos e outros profissionais dedicados à compreensão do ser humano, coisa que não cabe aqui nessa pequena e descompromissada resenha.