sábado, 24 de abril de 2021

Quarup, Antonio Callado



Quarup, Antonio Callado



Assim, de repente, deu-me uma grande vontade de reler esse livro, do qual me lembrava de poucos episódios: o medo do padre Nando, o protagonista, de ir para uma missão no Xingu e sucumbir aos apelos da carne diante das índias peladas; a personagem Sonia, mulher acossada por dois amantes, que, no Xingu, apaixona-se por um índio e some na mata com ele, deixando como último rastro um vestido colorido, preso a um arbusto; a cerimônia do quarup, quando os índios constroem totens para homenagear os seus mortos e fazem uma grande festa, e a expedição ao centro geográfico do país, onde encontram uma imensa panela de formigas saúvas (um dos mais longos e belos capítulos do livro). Mas, o que a memória não guardou: que esse é um dos livros emblemáticos da nossa busca de entendimento do que é realmente o Brasil. A história começa em 1954, e a cerimônia do quarup, para a qual haviam sido convidadas muitas autoridades da república, inclusive o próprio presidente, coincide com o suicídio de Getúlio, e termina emblematicamente logo após o golpe de 1964 (o livro foi escrito em 66). O Brasil, durante esse período, passava por grandes transformações, em todas as áreas, principalmente na economia, com um desenvolvimento expressivo, alavancado a um custo alto, sem dúvida, mas havia a perspectiva de saída do terceiro-mundismo crônico. No aspecto social, muito havia por fazer e a ebulição nos campos, principalmente conduzida a partir da discussão de uma reforma agrária e de outras reformas de base, propostas por João Goulart, prometia um país mais justo, menos pobre. A trajetória do padre Nando, que abandona a batina pela liberdade e até por uma certa libertinagem feliz, simboliza bem esse momento. Após sua estada no Xingu, na luta pelo estabelecimento das primeiras reservas indígenas, volta para sua terra, Pernambuco, onde desenvolve um intenso trabalho de alfabetização e conscientização dos homens do campo oprimidos e explorados pelos usineiros. Mas, aí vem a porrada do golpe e todos os planos se esboroam, como se esboroa o sonho de um país melhor. Porém, a luta continua, e o final do livro sinaliza claramente que, sem essa luta, sem muito esforço, os problemas não serão superados. E então eu entendi por que meu inconsciente me levou a reler esse livro: guardadas as devidas diferenças históricas, o momento presente tem muito a ver com a paulada que levamos em 1964.

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