A noite de meu bem, Ruy Castro
Uma crônica – talvez a mais longa já escrita – sobre um gênero musical, uma época e uma cidade. A cidade, o Rio de Janeiro. A época, a década de 50, especialmente entre os anos de 1945 e 1964. O gênero musical, o samba-canção, com seus autores, cantores, músicos intérpretes e toda uma geração de ricos e outros nem tanto, na sua relação com um fenômeno da época: a criação de inúmeras boates, na cidade do Rio de Janeiro. Sem dúvida, um dos livros mais musicais que já li: cita o autor dezenas, talvez centenas, de canções compostas nessa época, que foi uma espécie de belle époque tardia da cidade maravilhosa, quando se vivia um tempo de euforia, de deslumbramento numa região específica da cidade, o bairro de Copacabana e adjacências. Nomes endinheirados da sociedade carioca rivalizavam em termos de glamour e de fama com cantores, compositores e músicos, cuja geração talvez tenha sido uma das mais profícuas e inspiradas da história da música brasileira. O próprio título do livro nos remete a um dos mais belos sambas-canção de toda a safra até hoje produzida, obra inspirada de Dolores Duran. Não é ela o eixo do livro, mas uma de suas personalidades marcantes dentre tantas. Dolores trabalhava muito, fumava muito, bebia muito, namorava muito e, dentre todas essas atividades exageradas, só a última não lhe fazia mal ao frágil coração: morreu aos 29 anos, de um infarto, enquanto dormia, depois de mais uma noitada de tudo quanto mais gostava. É o símbolo, portanto, dessa gente que vivia perigosamente numa espécie de limbo esfumaçado das boates e casas de show, retrato de um país que se transformava. Não há espaço na longa obra para muitos dos aspectos políticos e, principalmente, sociais, mas eles estão lá, principalmente nas entrelinhas. A partir da eleição de Dutra, em 1945, com o consequente fechamento dos cassinos, a saída criativa da sociedade carioca foi a proliferação das boates, pequenas, aconchegantes e caras, aonde se ia para namorar, dançar às vezes, beber, fumar e ouvir os grandes cantores e músicos. De 45 a 64, um momento de grande efervescência política, com a volta de Getúlio e seu suicídio, a eleição de Juscelino Kubistchek para a presidência, as armações golpistas de Carlos Lacerda e da UDN, o país deslanchava, apesar de tudo, apesar da imensa desigualdade social. Brasília, com seu projeto urbanístico futurista que parecia um avião, pode ser bem a metáfora do País que taxiava e já tirava as rodas do solo para voos mais altos, quando foi covardemente abatido pela sanha estúpida do povo fardado, a destruir qualquer possibilidade de um progresso e do futuro que se desenhava. Outras tentativas de voo serão futuramente abatidas, em outras circunstâncias, mas naquela época, quando os militares tomaram o poder em 64, quando as boates cariocas foram fechando gradativamente, quando toda uma geração se recolhia e passava o bastão para a geração seguinte, a minha e talvez a sua, você que me lê, uma geração frustrada em seus sonhos de justiça e de igualdade social, quando, repito, os militares tomaram o poder, não se podia nem sonhar que, um dia, em plena democracia, os mesmos arautos do retrocesso iriam retomar o poder, em 2016, para estender mais uma vez a sua asa negra de corvos em busca de carniça, para começar a frustrar os sonhos de mais uma geração. Enfim, ler este livro, que não é absolutamente saudosista, nos remete a uma profunda reflexão sobre os últimos 75 anos de história desse pobre País que não precisa de heróis, mas precisa da “paz de uma criança dormindo”, como diz a letra de Dolores Duran, para encontrar o seu destino tantas vezes interrompido pela estupidez de ideologias liberais, fascistas ou meramente fascistoides, ou por interesses inconfessáveis e mesquinhos de elites estúpidas e entreguistas.
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