quinta-feira, 9 de setembro de 2021

O livreiro de Cabul, Âsne Seierstad

 O livreiro de Cabul, Âsne Seierstad



Sultan Khan é o livreiro de Cabul. Classe média quase alta do Afeganistão, um homem que já leu muitos livros, que negocia livros, que viaja a vários países em busca de livros para suas livrarias. Teve problemas com o Talibã, que queimou seus livros, quando dominou o país entre 1996 e 2001. É liberal, na política. Só na política. Agora, depois que o Talibã foi alijado do poder pelos Estados Unidos, que caça o terrorista Bin Laden em cada canto das longínquas províncias e cavernas do país, tem uma situação estável, embora viva numa casa pequena com uma família numerosa, a mãe, os irmãos, as duas esposas, os filhos e sobrinhos. É com essa família que a autora do livro convive durante três meses, na primavera de 2002. Registra o dia a dia dos componentes da família. Conta histórias ouvidas em longas conversas com as mulheres da casa. Acompanha-as em seus afazeres e constata que, apesar da mudança do regime, Sultan, embora se diga um liberal que até incentive que as mulheres da casa não mais usem a burca, ainda conserva todo o machismo patriarcal sedimentado ao longo dos séculos de doutrinação islâmica. As mulheres que, sob o regime do Talibã não podiam frequentar a escola, agora podem fazê-lo, mas continuam dominadas e escravizadas no regime doméstico. Não têm voz, não têm domínio sobre suas vidas. Não podem escolher o homem com quem queiram se casar: os casamentos continuam sendo arranjados pela família, de acordo com os interesses do clã, principalmente interesses econômicos e de manutenção da situação vigente dentro do ambiente familiar. Aliás, os homens também não têm o direito de escolha, devem obediência ao chefe do clã, ao pai ou ao irmão mais velho. Os noivos só se conhecem no dia da festa de noivado e raríssimamente obtêm licença para um mínimo de convivência. No entanto, homens mais ricos conseguem até mesmo dormir com a noiva antes do casamento, com o suborno dos sogros, contrariando a lei, a lei islâmica. Que proíbe o sexo antes do casamento, para homens e mulheres, que proíbe bebidas alcoólicas e drogas, que proíbe... a lista é grande. E a autora vai desfiando histórias de pequenas e grandes contravenções da lei islâmica; de tristezas e decepções por amores contrariados; de casamentos arranjados; de mulheres que têm muitos filhos, para se valorizarem; de filhos que são doados para mulheres que não conseguem parir; de vinganças, até com o assassínio, por pequenas traições; de pequenos furtos que, descobertos, levam o ladrão para a prisão por longos anos e a família à miséria absoluta; de viagens pelo interior do Afeganistão, em regiões conflagradas por conflitos étnicos e por disputas de poder por clãs inimigas, todas, no entanto, colaboracionistas dos espiões e dos soldados dos Estados Unidos... Enfim, o retrato de um país paupérrimo, onde poucos conseguem trabalho, destruído por anos e anos de guerras e revoluções, mergulhado no fundamentalismo islâmico que nos leva a pensar que, apesar de todas as mazelas do cristianismo ocidental, temos nós a sorte de ter um Cristo como o profeta máximo e não Maomé, cuja doutrina continua a mesma, com todos os seus princípios de há mais de quinhentos anos, mais aterrorizante que todos os terroristas que se explodem para matar dezenas, centenas de infiéis, como se a vida humana não valesse absolutamente nada. O islamismo fundamentalista foi mitigado, mas não eliminado pela ocupação militar estadunidense. E pior: quase vinte anos depois, de novo o Afeganistão mergulha no terror sanguinário do Talibã, cujas vítimas principais são as mulheres, para mais um ciclo de miséria, de ódio, de assassinatos e escravização de todo um povo a um grupo de terroristas que, sob a inspiração de um livro “sagrado” impõe sua lei, sua vontade e seus costumes bárbaros, como se fossem donos da vida e senhores da morte.


Nenhum comentário:

Postar um comentário