sexta-feira, 24 de junho de 2022

O avesso da pele, Jeferson Tenório

 O avesso da pele, Jeferson Tenório


Quando, pela repetição no noticiário midiático, normatizamos o absurdo, só a ficção nos salva da insensibilidade. O racismo é um desses absurdos que nos insensibiliza por sua repetição, principalmente o racismo contra a população preta. “O avesso da pele” desperta-nos para a realidade, através da ficção: não se pode mais ignorar o sofrimento individual provocado por atitudes, gestos e palavras racistas que o dia a dia nos traz. A história se passa quase toda em Porto Alegre, “a cidade mais racista do país”, onde uma família de negros tenta viver, sobreviver e ascender socialmente contra todas as injunções de pobreza, discriminação e demais percalços que a vida num país de imensa desigualdade social nos reserva. Uma crítica incisiva e pertinente às nossas misérias sociais, como o ensino público precário, uma polícia racista, uma sociedade insensível. O enredo é simples: conta a história de Pedro que, depois do assassinato do pai, numa abordagem policial estúpida, procura resgatar o passado da família e refazer a trajetória paterna como homem, pai e professor negro. Há passagens comoventes, como quando o pai, aos 52 anos, desiludido de sua profissão, ouve seus apáticos alunos conversarem sobre um assassino em sua comunidade. Numa atitude meio intempestiva, diz a eles que conhece um assassino de duas pessoas e que pode apresentá-lo a eles, para que conheçam suas motivações. Desperta, então, a curiosidade dos jovens e traz para a sala de aula uma profunda discussão sobre “Crime e castigo”, de Dostoievski, o que não apenas liberta da apatia seus alunos, mas redime o professor das aulas que ele achava medíocres, na sua autocrítica desesperada. A literatura feita por autores negros, desde Machado de Assis, Cruz e Souza, Lima Barreto, passando por Carolina Maria de Jesus e tantos outros, tem mais uma voz atual e potente, não só pela temática antirracista, mas principalmente pela habilidade do autor de nos envolver numa história bem articulada e muito bem contada, com uma estrutura literária consistente e sensivelmente desenvolvida para nos encantar e nos despertar para a dura realidade, através da ficção.


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