segunda-feira, 15 de agosto de 2022

A mulher do próximo, Gay Talese

 A mulher do próximo, Gay Talese


Um retrato em branco e preto, e bem preto, do conservadorismo estadunidense, na pena de um brilhante escritor. Gay Talese expõe, neste livro, o que é “a alma podre e hipócrita” de uma sociedade formada sob os auspícios do puritanismo. Para uma parcela significativa – e influente – dessa sociedade, qualquer conduta sexual fora dos “padrões bíblicos” deve ser veementemente condenada, com prisão e multas pesas, embora matar negros e índios não seja sempre crime nem pecado, apenas defesa da branquitude e da expansão territorial. No entanto, até mesmo pastores com a bíblia na mão fundaram colônias de amor livre, desde o século XIX, como nos conta Gay Talese. E se o moralismo e o puritanismo exacerbado levaram a leis absurdas de perseguição a tudo que fosse erótico ou considerado pornográfico, de uma forma ou outra, muitos lutaram contra essas leis, mesmo à custa de prisão e perseguição, porque tinham consciência de que a famosa primeira emenda da Constituição, se fosse rasgada, levaria a que a perseguição se estendesse a outros campos da política e da própria sociedade, com sérios danos à liberdade de expressão. Tentar conceituar pornografia, como fizeram os juízes da Suprema Corte, para dar aval a condenações absurdas, foi o mote que percorreu todo o século XX, para combater revistas como Playboy e muitas outras, para proibir filmes e materiais considerados inadequados à consciência média da sociedade estadunidense, através de artifícios legais. No entanto, sob o manto do puritanismo – que quase sempre é hipócrita – muitos editores e produtores de material erótico, muitos criadores de clubes de sexo ou de clínicas de massagem erótica obtiveram significativas vitórias, mesmo sob a constante ameaça da volta de leis restritivas e absurdas. É essa luta, com detalhes jornalísticos, que o livro “A mulher do próximo”, relata de forma brilhante, dando nomes, detalhes biográficos e trajetórias de inúmeros homens e mulheres que não se deixaram intimidar pelos “velhinhos retrógrados” da Corte Suprema e pela perseguição implacável de “ligas de moralidade”, a fuçar e denunciar qualquer transgressão às normas escritas e estabelecidas por eles, quanto a sexo e formas de fornicação, como verdadeiros fiscais do corpo alheio e das práticas sexuais dos cidadãos. Não há muito sexo ou muitas descrições de orgias ou de invasão de intimidades no livro, somente o necessário, mas há muito da luta das pessoas e também muito de matéria sobre as lides em tribunais, em julgamentos históricos, nos quais muitos foram condenados, mas cada absolvição podia ser considerada uma vitória importante na defesa da liberdade de expressão e da liberdade sexual. O livro foi publicado em 1980 e foca, principalmente, as décadas de 60 e 70, mas, se fosse publicado hoje, com as devidas atualizações, ficaríamos estarrecidos com o fato de que as mesmas lutas daqueles anos se repetem hoje em um novo diapasão de tentativa de censura e de ameaças à liberdade de expressão, inaugurando um novo puritanismo plenamente em vigor, ainda que a sociedade – tanto estadunidense quanto mundial – tenha mudado. No entanto, os puritanos e moralistas estão ainda por aí a nos ameaçar a todo instante, recordando-nos a máxima de que o preço da liberdade é a eterna vigilância. “A mulher do próximo”: um livro atual e fundamental, ainda hoje, portanto.

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