terça-feira, 27 de setembro de 2022

A biblioteca de Paris, Janet Skeslien Charles

A biblioteca de Paris, Janet Skeslien Charles


Eu gosto tanto de ler que, quase sempre, o melhor livro que já li é o que terminei de ler. E mais: quem gosta de ler gosta de ler sobre livros, sobre leitura, sobre bibliotecas, isto é, histórias que envolvam livros. E foi o que me “pegou” ao me ver diante deste livro – A Biblioteca de Paris. Esperava encontrar uma história da biblioteca americana de Paris, mas ele é muito, muito mais do que isso. Um enredo que simplesmente me enredou numa teia de vidas que se dedicam a salvar uma biblioteca em plena segunda guerra mundial, com seus dramas, dificuldades e temores. A história, na verdade, passa-se em dois momentos e em dois lugares absolutamente distantes entre si: na Paris dos anos 1930 a 1945, narrados por Odile e em Froid, uma cidadezinha rural perdida no estado de Montana, nos Estados Unidos, narrados por Lily, uma adolescente inquieta e, às vezes, mexeriqueira, entre os anos de 1983 e 1989. O que une a velha senhora francesa à menina estadunidense? Um pouco o amor aos livros, um pouco esse gênio inquieto e indomável que leva a que tenham, ambas, problemas. Odile, jovem, em Paris, tem um irmão gêmeo que vai para a guerra e não volta. Sua paixão pelos livros faz que consiga um emprego na Biblioteca Americana de Paris, onde convive, durante os anos de guerra, com muitos amigos e amigas, com quem divide os sustos da ocupação nazista, a ameaça constante de fechamento da biblioteca, a proteção aos sócios judeus etc. O jovem por quem se apaixona e com quem se casa comete um despropósito imperdoável, logo após o término da guerra, na época da vingança, o que a leva a abandoná-lo e fugir para os Estados Unidos com um soldado que conhece num hospital de feridos de guerra, com quem se casa em Froid, Montana, onde passa a viver e onde muitos anos depois curte sua viuvez. Lily, por sua vez, a garota inquieta e enxerida, invade sua vida num momento de desespero e solidão. Tornam-se amigas, e a ela confessa sua complicada trajetória de vida, desde a França. Há muitas surpresas e dramas nessa trajetória, muitas lições de resistência à crueldade humana e à capacidade que tem a guerra de modificar o ser humano e torná-lo até mesmo rígido em seus princípios e a cometer enganos. Mas, a melhor surpresa, mesmo, é acompanhar a alternância dessas vidas e desses momentos e desses dramas entre as duas épocas e os dois lugares tão distantes e descobrir, ao final, quando se leem as notas da autora, que a narrativa foi baseada em fatos reais, mas de tal forma bem enredada, que nos deixa o sabor não só da surpresa, mas principalmente a certeza de que acabamos de ler um grande livro.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Ano zero – uma história de 1945, Ian Buruma



Ano zero – uma história de 1945, Ian Buruma


A segunda guerra mundial terminou em 8 de maio de 1945, na Europa, com a rendição da Alemanha. Na verdade, não é bem assim. A matança continuou durante do todo o ano, sem contar que, na Ásia, o Japão só se rendeu em setembro, depois das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. As comemorações pelo mundo todo, em maio, com fotos de fogos, bailes, beijos, abraços etc. escamoteiam uma triste realidade: o após-guerra foi o tempo da vingança. E a vingança foi tão cruel quanto a própria guerra. No livro “Inferno: o mundo em guerra 1939-1945”, Max Hastings relata a invasão da Alemanha pelos russos. Na esteira do exército vermelho, milhares e milhares de pessoas tomaram cidades, ruas e casas de cidadãos alemães, pilhando, matando, estuprando, numa vingança desenfreada, pelos sofrimentos infringidos pelo exército de Hitler aos russos, durante os anos de guerra, que foram extremamente sofridos. Mas, para por aí. Já o livro de Ian Buruma traz um relato sucinto do que foram os dias e meses após o término da guerra, tanto na Europa, quanto na Ásia. As descobertas dos campos de concentração e dos campos de extermínio, com milhares e milhares de corpos de, principalmente judeus, empilhados ou mal enterrados em covas rasas; esses mesmos judeus encontrados ainda vivos nesses locais, em condições de extremo sofrimento e, enfim, a percepção da política de extermínio nazista de minorias e do povo judeu, tudo isso ainda seria uma parte do sofrimento que os seres humanos padeceriam após o término do conflito. Os julgamentos sumários e a consequente execução de alemães, de colaboradores, principalmente mulheres que se prostituíram durante a ocupação nazista, por uma questão de sobrevivência, a perseguição a qualquer pessoa que fosse simpatizante nazista, a libertação de milhares e milhares de prisioneiros que não tinham para onde ir, porque suas cidades e suas casas estavam destruídas (muitos judeus, sempre eles as vítimas - num processo de racismo que não foi extirpado com a queda do nazismo - quando voltaram para suas casas, encontraram-nas ocupadas por “cidadãos de bem” que lhes batiam a porta na cara), os chamados “deslocados”, uma multidão enorme de cidadãos de quase todos os países, e mais: a miséria, a fome, o frio, já que todo o sistema de produção precisava ser reconstruído, tudo isso levou a muitas, muitas mortes e a muito sofrimento. Tanto na Europa, quanto na Ásia, após a rendição japonesa. E sobre toda essa situação caótica perpassa o sentimento de vingança, a sede de sangue dos vencedores, a caçar e trucidar os vencidos, em matanças tanto coletivas quanto individuais. Claro que houve muitos sobreviventes dos antigos regimes nazifascistas – até mesmo os chamados “peixes grandes”, responsáveis diretos pelas políticas de extermínio, em todos os países, da Alemanha, passando pela Itália, até o Japão, porque muitas vezes a vida dessas pessoas interessavam aos vencedores, para continuar funcionando o mínimo possível a burocracia, o sistema produtivo, e também porque era impossível dizimar países inteiros que viveram sob o regime vencido. Mas extirpar as ideias nazifascistas era a finalidade, a todo custo, e o custo foi muito alto, em termos de vidas humanas. Poucos líderes daqueles momentos pensaram em outra solução que não fosse a matança. A criação da ONU, no final do ano, a tentativa de unir os povos num ideal de justiça e, principalmente, de paz – a utópica paz perpétua – ficou na intenção de poucas nações e não se concretizou. A consequência foi a guerra fria e, bem, o que veio depois não é o escopo dessa longa e, às vezes aterrorizante narrativa, que é “Ano zero – uma história de 1945”, um livro para se ler com a mente atenta à capacidade de a humanidade não conseguir se entender, por questões ideológicas, e de continuar fazendo guerras estúpidas e matando em nome de princípios absurdos, como colonialismo, racismo, preconceito e outras tantas mazelas.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O chão que ela pisa, Salman Rushdie

 O chão que ela pisa, Salman Rushdie


Ormus, Vina e Rai. Você nunca mais vai esquecer esses três nomes, depois que terminar a leitura desse longo (quase 600 páginas) romance de Salman Rushdie. Formam os três um triângulo amoroso, que conduz a narrativa, desde a década de 50 até o final do século XX, com a trajetória complexa de Ormus, indiano de família rica que se torna um astro do rock mundialmente famoso; de Vina, nascida nos Estados Unidos, mas de origem indiana, que se torna também estrela internacional da banda de Ormus, objeto de desejo de todos os homens que assistem a suas performances; e de Rai, fotojornalista, mais novo que Ormus, mas seu amigo desde criança, em Bombaim, a cidade que é, na primeira parte do romance, também personagem do livro. Os dois são apaixonados por Vina, que se casa com Ormus e torna-se amante de Rai. Viajamos com eles da Índia para a Inglaterra e depois para os Estados Unidos, numa história vertiginosa que reconta, em termos modernos, a lenda de Orfeu e Eurídice, em que o apaixonado precisa descer aos infernos para salvar a mulher amada, mas não consegue seu intento. Não há descanso para leitor, nessa narrativa alucinante: a cada linha, a cada página de seus longos capítulos, um fato novo, uma surpresa, uma referência a mitos, a divindades, a seres humanos reais ou fictícios, numa voltagem surpreendente de fatos e acontecimentos que revelam não só a grande erudição do autor, mas também sua incrível capacidade de nos envolver numa narrativa de perder o fôlego. Sem dúvida, a cada livro de Salman Rushdie, Maomé deve se revirar em seu túmulo de ódio e preconceitos, mesmo que ele não cutuque, como o fez, em “Versos Satânicos”, o mau humor de seus seguidores. Um dos grandes escritores do século XX, com sua visão de mundo e sua verve, seu humor sutil, e sua capacidade de misturar o real com o mágico, para retratar a realidade cruel e ao mesmo tempo complexa de nosso tempo. Um romance imperdível.

domingo, 4 de setembro de 2022

20 poemas de amor e uma canção desesperada, Pablo Neruda

 

20 poemas de amor e uma canção desesperada, Pablo Neruda 
(tradução de Domingos Carvalho da Silva)




Reler Neruda é sempre um prazer. Mesmo os seus poemas de juventude e formação, como esses “20 poemas de amor e uma canção desesperada”, nos quais o poeta se esparrama em lirismo, metaforizando o amor físico com elementos da natureza. Assim, o mar, o crepúsculo, as flores, os pássaros, as abelhas, tudo se relaciona a essa paixão primordial e primeira da descoberta do corpo da mulher. Os sentimentos são exacerbados, como as tempestades no mar, e o amor é fluido e inconstante, como os barcos nesse mesmo mar tempestuoso e as nuvens de chuva que se formam no espaço. O jovem poeta, ainda não dominando todas as nuances do verso e do próprio amor, canta a paixão e seu término, de forma sensual, vertiginosa e, principalmente, com a veracidade absoluta daqueles que parecem já saber tudo. Talvez por isso o sucesso desse “livrinho” que se lê ainda com prazer, mesmo passados muitos anos; que ainda encanta jovens e adultos de todas as idades, tornando quase mítico o seu título, com esse apêndice maravilhoso: “y una canción desesperada”. Teve vários tradutores para a língua portuguesa e esta, que eu li, é uma boa tradução, flui bem e não fica a dever à sonoridade original. Vale dizer que é uma edição bilíngue, como devem ser sempre as obras poéticas.