Romance de Cordélia, Rosa Lobato de Faria
Podia ser um romance picaresco. Podia. Porque tem a estrutura semelhante aos romances em que se descreve um herói popular e malandro a sobreviver numa sociedade corrupta. Com pitadas de humor ou sarcasmo. Sem dúvida, alguns elementos estão presentes: uma heroína que passa por inúmeros perrengues, desde o seu nascimento: feia, depois coxa, desprezada por uma mãe meio amalucada, só encontrando abrigo junto à avó paterna. Paramos por aí, se é possível alguma comparação com o herói pícaro. Mas há outro elemento literário presente: o romance de cordel de tradição lusitana, que tem na narrativa do cotidiano a sua principal inspiração. A narradora, Cordélia, Lili, Guita Coxa ou Concha dos Pobres, conta sua história de dentro da prisão, onde está por um crime que não cometeu, ou diz que não cometeu, como todas as demais prisioneiras. Suas aventuras e desventuras, numa longa trajetória de dores, sofrimentos, enganos, desenganos, em que é sempre passada para trás, têm traços de humor e resignação. Alternam-se com as breves narrativas da vida de outras prisioneiras e também – o que é significativo, em matéria de estrutura romanesca – com a leitura de livros cordelistas que têm sempre o mesmo enredo: uma jovem se casa com milionário, torna-se vítima de elocubrações de invejosas, tem uma filha roubada e é acusada de algum crime; sai da prisão muitos anos depois, disfarça-se de uma bela mulher, reconquista o antigo amante ou marido e se vinga. Com Cordélia, no entanto, esse enredo fica apenas no sonho: sua vida tem altos e baixos, mais baixos do que altos: em todos os momentos em que podia “se dar bem”, com alguma herança, deixa-se enganar resignadamente. Mesmo quando acusada de um crime, aceita a pena e a cumpre resignadamente. Quando sai da cadeia e podia recuperar seus bens, sua casa, resignadamente busca subempregos dos quais é sempre despedida, pelo seu passado de ex-detenta, e sua vida degringola irremediavelmente. Se o final da longa narrativa tem uma descaída para a resignação cristã e para um drama meloso e triste, como uma metáfora da própria “alma, ou melhor, da mentalidade sofredora das mulheres portuguesas, o enredo todo nos encanta pela prosa realmente fascinante da autora. Um livro para se ler com uma pitada de paciência, para saborear o sotaque lusitano, e outra pitada de paciência de dias chuvosos, para enfrentar as reviravoltas e todas as vicissitudes da vida de Cordélia, talvez o nome feminino de “cordel”.
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