Torto arado, Itamar Vieira Júnior
Uma narrativa lenta, deliciosamente lenta. Destacam-se várias vozes narrativas: na primeira parte, a voz é de Bibiana; na segunda, Belonísia; e na terceira, são os “encantados”, os espíritos do jarê, a religião de matriz africana típica da Chapada Diamantina, onde se passa a história. Bibiana e Belonísia são irmãs e têm pouca diferença de idade entre si. Mais ou menos aos sete anos, desafiam proibições e abrem o baú da avó Donana, onde encontram um afiadíssimo punhal de cabo de madrepérola que lhes provocará um acidente que mudará suas vidas: uma delas se fere na boca e a outra perde a língua, ficando muda para sempre. Na longa narrativa de Bibiana, não se sabe qual das duas é a muda e esse fato só se esclarece na segunda parte, quando toma a voz de narradora a irmã Belonísia. Contam ambas suas vidas na comunidade negra nas terras de Águas Negras, a pobreza, a exploração da população pelo dono ou pelos donos da fazenda, as relações familiares, as práticas de encantamento do jarê do pai, Zeca Chapéu Grande, uma espécie de líder comunitário que, ao mesmo tempo que protege os habitantes dessa espécie de quilombo, mantém todos eles na situação de um certo conformismo com sua situação de semi-escravizados. Embora não haja um tempo definido, a narrativa se desenrola ao longo da primeira metade do século XX. Essa situação de conformismo será quebrada com a vinda de família de parentes de Zeca, da qual faz parte um jovem que irá se casar com uma das irmãs. O casal buscará uma nova vida longe dali, ao mesmo tempo que encontrarão novos conhecimentos e a aproximação com ideias de igualdade e liberdade. A outra irmã permanecerá na comunidade, passando por todas as dificuldades de sua situação de mulher e de trabalhadora braçal. Quando o casal faz o caminho de volta para a comunidade e as duas irmãs se reencontram, encetarão uma luta contra a situação de injustiça e servidão que há décadas é imposta à família e aos demais negros da região. Costumo plagiar Machado de Assis: “ao cabo, só existem histórias antigas caiadas de novo”. Se o tema do livro de Itamar Vieira Júnior não traz novidades, pode-se afirmar com absoluta certeza de que é preciso contar e recontar sempre a histórias de injustiça, não importa onde sejam cometidas, pois o mundo precisa dessas narrativas para que, quem sabe um dia, possam todas essas vozes unidas – cada uma lançando seu protesto – formar a grande correnteza da construção de uma sociedade melhor. Um belo livro, sem dúvida.
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