As coisas que perdemos no fogo, Mariana Enriquez
O uso do terror com pitadas de humor negro e de elementos surreais ou, às vezes, do realismo fantástico fazem parte dos doze contos dessa escritora contemporânea argentina. Não é possível ficar indiferente à sua prosa incisiva e irônica, com personagens e lugares comuns que ocultam o insólito, o absurdo da existência, como um garoto assassino, a menina que arranca pedaços de si mesma em sala de aula, adolescentes que buscam emoções numa casa assombrada, mulheres que ateiam fogo a si mesmas, enfim, tudo quanto parece fazer parte de mentes conturbadas por mitos e superstições numa Argentina ainda assustada e devastada por anos e anos de desgovernos, por assassinatos promovidos por ditadores e presidentes despóticos. A crueldade humana de seres aparentemente comuns é a metáfora desse país, talvez da própria América Latina, que ainda não encontrou caminhos sadios de desenvolvimento e de superação de seu passado sombrio de colônias dominadas pelo europeu destruidor e demolidor de sua cultura milenar, pelo genocídio de seus povos originários, pelo escravismo e atualmente por preconceitos e racismos absurdos. Talvez a autora não quisesse escrever sobre tudo isso, mas seus contos não deixam de nos remeter a essa triste história de nosso continente, em metáforas perturbadoras e emocionantes. A moderna literatura latina, tão pouco valorizada no momento, após o boom de grandes autores como García Marques, Jorge Amado, Jorge Luís Borges etc., etc., etc. saúda o surgimento de uma escritora que tem o poder de trazer novos olhares para uma ficção de precisa urgentemente conquistar de novo um lugar na mente dos leitores, pela sua tradição e pela sua qualidade. Um livro de contos para se ler com arrepio, mas também com o prazer de uma prosa que encanta e emociona.
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