Olualê Kossola – as palavras do último homem escravizado – Zora Neale Hurston
Estados Unidos, 1927. Zora Neale Hurston, uma socióloga e estudiosa do folclore novaiorquina, viaja até a comunidade de Plateu, no Alabama, perto da cidade de Mobile, para entrevistar um homem negro, Cudjo Lews, de 86 anos, considerado o último homem escravizado ainda vivo. A história da escravização de seres humanos africanos, de longa tradição, tem sempre a narrativa dos escravizadores e nunca a palavra dos que sentiram na pele a captura, a longa viagem para destinos desconhecidos e ignorados pela chamada passagem do meio, até o continente americano. Durante vários meses, Zora Hurston teve a oportunidade de ouvir o relato de Cudjo, ou Olualê Kossola, seu nome africano, sobre o ataque dos comandados do rei do Daomé, que tinha negócios com os brancos, para capturar jovens – homens e mulheres – e vendê-los como escravos. Isso aconteceu em 1860, quando ele tinha19 anos e a proibição de tráfico de pessoas nos Estados Unidos já completava 50 anos, mas ainda ocorria de forma esporádica, por navios que burlavam a lei. Nesse ano, em conluio com Timoty Meaher, um senhor de escravos que queria manter o tráfico transatlântico, William Foster construiu o “Clotilda”, um navio para transportar “carga de contrabando” e partiu para a África. Obteve do rei do Daomé 110 escravizados, entre homens, mulheres e crianças. Burlando a lei, conseguiu levá-los para os Estudos Unidos e distribuí-los entre os fazendeiros de Mobile, ficando com uma parte deles. Após a guerra de secessão, eles foram libertados, tentaram convencer os brancos a levá-los de volta à África, mas a viagem era muito cara, acima de suas posses. Com o trabalho, esses africanos obtiveram dinheiro suficiente para comprar terras e fundar a primeira cidade negra dos Estados Unidos, a Africatown, próxima de Mobile. Cudjo Lewis, o Olualê, foi um dos líderes dessa construção. Seu encontro com a autora do livro, em 1927, permitiu que ele lembrasse como foi capturado – uma narrativa extremamente impactante -, como foi a viagem e toda a sua vida até aquela data. Ele se casou, teve cinco filhos, quatro homens e uma mulher. A garota faleceu aos 14 anos. Os outros filhos sofriam muita perseguição por parte da comunidade negra nascida nos Estados Unidos e já aculturada, porque eram filhos de africano e, por isso, chamados de selvagens – esse um capítulo também complicado para a história negra, o fato de não terem acolhimento entre seu povo. Pelo fato de reagirem a essa perseguição, dois foram mortos e um deles foi preso, acusado de assassinato. O quarto filho homem casou e teve uma filha, mas também desapareceu. À época das entrevistas Olualê era viúvo, pois a esposa também falecera, depois de muito sofrimento pela falta dos filhos, e vivia com a nora e uma neta. As narrativas de Olualê são registradas exatamente como ele as contou para a autora, com a linguagem típica do africano que assimilou a língua inglesa a seu modo, como aconteceu também no Brasil, com os negros que falavam um português arrevesado, com uma gramática especial. Por essa razão, as editoras da época não quiseram publicar o livro, o que só aconteceu mais de 50 anos depois. É uma das narrativas mais impressionantes que se possa ler, a voz daqueles que nunca tiveram voz para contar suas histórias, num apagamento criminoso de fatos criminosos pela cultura branca, pela primeira e talvez a única vez que alguém que passou pelo processo de captura, quando presenciou seu povo ser degolado e dizimado pelos guerreiros e guerreiras do rei do Daomé, e depois ser afastado de sua cultura, de sua língua, de seus hábitos e costumes, para ser levado para um lugar completamente desconhecido e longínquo, sem qualquer possibilidade de retorno, essa pessoa ainda se lembrar – não esqueçamos que era um jovem assustado de 19 anos – de muitos detalhes e conseguir – com toda a emoção do mundo – recriá-los e contar a uma jovem pesquisadora, que lhe conquistou a confiança. Sem dúvida, um documento importantíssimo para a cultura negra, para compreensão de certos fatos obscuros, como a escravização de negros por outros negros, o preconceito até mesmo de negros contra negros, por imposição de uma situação de vulnerabilidade e de sobrevivência. E mais: a capacidade de resiliência de seres humanos desumanizados pela imposição de leis que os nivelava a animais, mesmo depois da libertação, e que até hoje são perseguidos e assassinados, simplesmente porque a sociedade que os subjugou não tem capacidade de compreender que são seres humanos dignos de terem a mesma oportunidade de viver como cidadãos e não como seres degradados de segunda classe. E isso devia ser compreendido não apenas nos Estados Unidos, mas, e principalmente, aqui também, nesse nosso país preconceituoso e racista. Eu achei que já sabia de muita coisa sobre a escravização de africanos, mas esse livro – a voz de um escravizado – me deu outra dimensão de um problema que nossa “civilização” (com todas as aspas) criou e ainda não soube equacionar.
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