Rota 66 – A história da polícia que mata, Caco Barcellos
Em abril de 1970, da fusão da Força Pública do Estado de São Paulo com a Polícia Civil surgiu a Polícia Militar. O objetivo dessa fusão era dar instrumentos legais e materiais para o combate ao “inimigo” do momento, os “subversivos”. Portanto, a PM tem no DNA o princípio da Lei de Segurança Nacional da ditadura, que vê em qualquer cidadão que não se enquadre na ideologia oficial da época como inimigo, o chamado “inimigo interno”. Em agosto do mesmo ano, foi criada a ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), com o objetivo de aprimorar as operações de combate ao crime, o tráfico de drogas e atuar em sequestros, roubos a bancos e outras situações de complexidade e perigo. Mas não foi o que aconteceu. Formou-se dentro da ROTA um verdadeiro “esquadrão da morte”, com táticas de extermínio que se tornaram notórias. É esse vasto e estarrecedor rastro de sangue que o repórter Caco Barcellos estende ao olhos do leitor, em relatos aterradores e assustadores, principalmente no período de 1975 a 1992, ano da publicação do livro. A primeira história, ocorrida em 1975, narra com detalhes a perseguição e o assassinato de três jovens da classe média alta do Jardim América, em São Paulo. Resumo os fatos: esses jovens de família, de respectivamente 17, 18 e 21 anos, frequentadores dos clubes da elite paulistana, resolveram, numa madrugada, roubar o toca-fitas do carro de luxo de um de seus companheiros de farras, porque este devia dinheiro de jogo a um deles e estava relutando em pagar. Nessa estúpida tentativa de roubo, são surpreendidos por acaso por uma viatura da ROTA. Fogem. Inicia-se uma complicada perseguição de “bandidos perigosos” pelas ruas do Jardim América. O motorista do fusca era o jovem menor de idade, extremamente hábil ao volante e conhecer das ruas do bairro, o que dificultava a perseguição dos policiais. Pediram reforços e dezenas de viaturas se envolveram na operação. Com o corpo para fora da viatura (atitude que era uma marca da ROTA), um dos policiais metralha o carro dos “bandidos’, atingindo um dos rapazes. O fusca bate numa árvore e os dois rapazes sobreviventes saem de mãos para cima, gritando para não atirarem. Tendo a porta da viatura como escudo, metralham os rapazes, jogam os corpos no “chiqueirinho” e dirigem-se para o Hospital das Clínicas, onde obrigam os médicos a receberem os cadáveres, coisa proibida: deviam ser levados para o IML, aliás, não deviam ter sido retirados do local do crime, já que estavam sabidamente mortos, para não impedir o trabalho da perícia. Mas esse era o “modus operandi” da Rota. Adulterar a cena do crime, colocar armas nas mãos dos mortos, levá-los a hospitais como desconhecidos, sem documentos, encenando uma “ação humanitária” depois da forjada troca de tiros. Ao descobrirem a identidade dos jovens, percebem que fizeram besteira e o caso tem enorme repercussão na imprensa. No entanto, os assassinos dos três jovens só foram julgados oito anos depois, pela própria justiça militar, e... inocentados! Esse o fio puxado pelo autor do livro: se isso acontece com rapazes brancos, ricos, em bairro nobre, o que não fazem esses policiais na periferia, contra jovens negros ou pardos, e pobres? Os números são estarrecedores. Não vou citá-los aqui, porque dão engulhos. A matança é mais cruel do que muitas guerras, no mesmo período investigado. E pior: mais de 60% dos mortos são realmente jovens, negros ou pardos, pobres da periferia e... pasmem! – sem passagem pela polícia, ou seja, sem terem cometido crimes no Estado de São Paulo. Mortos apenas porque ou eram meramente suspeitos ou por “deduragem” de comerciantes amigos dos policiais, por vingança, ou por terem cometido pequenos delitos. A longa história desses matadores, muitos deles com mais de 30 ou 40 crimes (o repórter faz um ranking dos dez mais), não tem fim, mas o livro se encerra com o assassinato do jovem que se tornou famoso por um filme, o Pixote. E a PM de São Paulo continua matando. Basta seguir os noticiários policiais. Os crimes são tão normatizados, que somente alguns de grande repercussão ainda chegam à mídia, como aconteceu recentemente no caso da vingança dos policiais militares contra uma comunidade da cidade litorânea do Guarujá, porque um deles ali foi assassinado por traficantes. Mataram, até a data de hoje, 17 de setembro de 2023, 28 pessoas. Quantas tinham realmente passagem pela polícia ou relação com o crime? E polícia que mata – poderia dizer o repórter – também é polícia que morre. A “vendeta” ocorre dos dois lados, num processo de realimentação que torna o círculo da morte algo muito mais vicioso do possamos imaginar. Enfim, se você ainda confia na Polícia Militar, leia o relato de Caco Barcellos, e ponha suas barbas de molho, porque enquanto a polícia tiver treinamento militar, enquanto existir polícia militar, a matança não vai parar. E nunca se sabe quem pode ser a próxima vítima. Acha que estou exagerando? Então leia, leia e tire suas próprias conclusões.
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