Salvar o fogo, Itamar Vieira Junior
Manto tupinambá. Costurado pelas mulheres indígenas, com penas de vários pássaros, colhidas na floresta, o manto cerimonial era usado pelos homens em ocasiões especiais, e devia dar ao seu possuidor um grande poder. As penas coloridas deviam ser cosidas uma a uma, num mosaico de cores variadas. Assim também, Itamar Vieira Junior vai juntando pacientemente os relatos de vidas de uma família numerosa da vila Tapera do Paraguaçu, no recôncavo baiano. O centro, porém, da narrativa é Luzia, moça estuprada ainda muito jovem, na qual nasce uma corcunda que a torna uma espécie de maldição ou feiticeira capaz de botar fogo em casas e pessoas, segundo os preconceitos da aldeia, cujo povo a persegue a pedradas, às vezes, pelas ruas tortas e miseráveis, como culpada de vários melefícios. A narrativa começa com uma mulher – que incialmente não sabemos quem é – dando à luz um menino nas águas do rio Paraguaçu, salvo da morte por uma das irmãs, filha do quase sempre ausente Mundinho, entregue à lida diária, à bebida e às mulheres. Da família de Mundinho, só ficaram mesmo na Tapera o “Menino”, batizado com o nome significativo de Moisés – agora também órfão de mãe – e Luzia, que o cria e educa com muita dificuldade. Para isso, ela se torna lavadeira do mosteiro da cidade, cujos padres (na verdade, monges) dominam a população local, não só em termos de fé, mas também economicamente, exigindo dos moradores o pagamente anual de um imposto para a igreja (que, significativamente também, Mundinho se recusa teimosamente a pagar). A proximidade com os padres permite que Luzia garanta a Moisés, o “Menino”, que comece a estudar e possa ter uma vida melhor. Mas ele interrompe bruscamente os estudos e também parte a cidade grande, levando as economias de Luzia. Motivos muito fortes provocaram esse rompimento. Motivos que marcarão profundamente a vida de toda a família. A narrativa ganha foros de catarse, de uma espécie de vingança que, se não alivia todo o sofrimento de Luzia e de suas irmãs e irmãos, leva o leitor ao regozijo de chegar ao final do livro pelo menos não tão amargurado, através de eventos que se vão revelando pouco a pouco, na escrita lenta e detalhista do manto tupinambá tecido pelo autor. Um resgate catártico, repito, sem dúvida, de nossas populações afro-indígenas desprezadas e espezinhadas ao longo de séculos de dominação religiosa, que lhes destrói a cultura e os costumes tradicionais; de dominação política e econômica, que os mantém em condição subumana, no Brasil profundo, de vilas e vilarejos esquecidos pelo poder público, mesmo em tempos muito recentes, já que a história se passa nos trinta e poucos anos finais do século passado. Confesso, sem constrangimento, e até com muita satisfação: um grande livro, sem dúvida nenhuma. Seus – poucos, pouquíssimos – defeitos literários não empanam a efusão dos meios literários ao surgimento desse autor que, esperamos, nos brindem com outras joias preciosas, que nossa cultura anda precisando, e muito, de bons autores que se debrucem a trazer à tona a cultura de nosso povo, seja dos escravizados, seja dos povos originários, que formam um cadinho vigoroso de esperança de uma nação enfim livre de racismos e preconceitos.
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