sexta-feira, 29 de março de 2024

A casa verde, Mario Vargas Llosa



A casa verde, Mario Vargas Llosa



A isolada e pequena cidade de Piura, no Peru, recebe um dia a visita de um cavaleiro, dom Anselmo, cuja capacidade de tocar harpa e cuja simpatia vai aos poucos conquistando a amizade de todos os seus cidadãos, mesmo desconhecendo sua origem e seus interesses. Um dia a população desperta com a movimentação de materiais de construção e de operários e acompanha, curiosa, num local um pouco afastado da cidade, perto da ponte, a construção de uma casa de dois andares dividida em vários cômodos e depois toda pintada de verde. Aos poucos, os habitantes do vilarejo descobrem que a casa nada mais é do que um prostíbulo, cujo movimento cresce dia a dia. Frequentam-no os militares, os corruptos, os criminosos e uma imensidão de seres em busca de companhia, de prazeres, de boa música e de comida. Torna-se a Casa Verde motivo de desespero para uma parte conservadora da cidade, liderada pelo padre da paróquia local. A história desse prostíbulo perdido no interior do país, já quase em meio à selva amazônica, serve de pretexto para o autor nos levar a uma viagem complexa pela vida de dezenas de personagens, desde as freiras de um convento próximo e suas noviças, até os contrabandistas de peles de animais e de látex; as prostitutas e os políticos corruptos, os indígenas e os preconceitos relacionados à sua condição de “selvagens”, num mosaico fantástico em que se misturam presente, passado e futuro; em que se entrelaçam as vozes do narrador e das personagens, num cipoal barroco de intrincadas relações, num fluxo contínuo que exige do leitor a atenção de quem vai compondo aos poucos um quebra-cabeças literário de tirar o fôlego. Não é, por isso, um romance de leitura fácil, mas quem se aventura em suas páginas encontra a prosa rica e complexa de um dos maiores nomes da literatura latino-americana.


terça-feira, 19 de março de 2024

De moto pela América do Sul, Ernesto Che Guevara

 

De moto pela América do Sul, Ernesto Che Guevara


Confesso que tenho pouquíssimos ídolos dentre os líderes mundiais de todos os tempos. Um deles, sem dúvida, é Che Guevara. Por sua vida, por seus ideais e por suas ideias. Quando me propus a ler seu famoso diário, em forma de narrativa, é óbvio que não espera encontrar o mito, o guerrilheiro que lutou ao lado de Fidel Castro para libertar Cuba nem o ministro e depois o homem que abandonou tudo para levar seus ideais de liberdade à África e à América do Sul, até ser covardemente morto numa emboscada na Bolívia. No entanto, apesar da pouca idade – tinha apenas 24 anos, ao empreender a longa viagem da Argentina até a Venezuela, a bordo de uma motocicleta, com seu amigo Alberto – lá está o embrião do homem idealista que deu sua vida pela liberdade. A narrativa é linear, sem digressões literárias, contando os perrengues por que passaram os dois jovens nessa jornada, relatando fatos e comentando aqui e ali a situação das pessoas que viviam (e vivem ainda) em situação de miséria e de dificuldades, nas aldeias e pequenas cidades andinas, principalmente os povos originários daquelas regiões do Chile, da Colômbia, da Venezuela e da região amazônica. O interesse maior dos dois estudantes de medicina se concentra na leprologia, quando essa doença tinha ainda o estigma do abandono e do preconceito. Há em toda a narrativa um olhar crítico e ao mesmo tempo humano, ressaltando sempre a multiplicidade de aspectos tanto geográficos quanto humanos da América retratada nos diários e a receptividade e acolhimento das pessoas que eles encontraram em todos os lugares por que passaram. Há muitas lacunas, como, por exemplo, a falta de recursos financeiros da dupla e de como, muitas vezes, conseguiram dinheiro para prosseguir viagem; também não nos relata o motivo da ausência – lamentada – do companheiro Alberto Granado, na parte final da viagem. A narrativa se encerra na selva amazônica, quando ele chegou a entrar em território brasileiro, não havendo qualquer relato da esticada até Miami, nos Estados Unidos, onde permaneceu por quase um mês, fato relatado por seu pai, num apêndice.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Big Sur, Jack Kerouac

 Big Sur, Jack Kerouac


Impossível separar a ficção, ou pretensa ficção, de Kerouac de sua vida pessoal, marcada, principalmente pelo alcoolismo. Neste livro, Big Sur, o autor volta a escrever sobre seus temores e seus fantasmas, durante o período em que ele passou em retiro numa cabana do amigo e poeta beat Lawrence Ferlinghetti, na região de Big Sur, na costa da Califórnia. Na verdade, ele relata dois períodos: no primeiro, sozinho, convivendo apenas com suas neuroses e sua mente conturbada pelo álcool; no segundo, ele volta à cabana em companhia da amante Billie e seu filho, uma criança apegada à mãe e muito birrenta, e também um casal de amigos. A decadência física e mental do autor é retratada por ele mesmo na forma de uma escrita até mais radical do que no romance que o consagrou, On the road: um processo pensadamente caótico, em que o fluxo da consciência se abre para todos os seus dramas pessoais, suas dúvidas existenciais, seus temores e até mesmo uma certa religiosidade confusa e mal resolvida. Muitos nomes da geração beat comparecem na narrativa, com nomes inventados, como Neal Cassady (Cody Pomeray), Carolyn Cassady (Evelyn), Gary Snider (Jarry Wagner), Lenore Kandel (Romana) etc. Em seus delírios, na busca de algo que ele não sabe mais o que é, quando não mais tem domínio de si mesmo, perdido em litros e litros de vinho e outras bebidas, há uma verdade profunda e corajosa, até mesmo aterrorizante, na sua capacidade de autoflagelação literária, sem meias palavras, num dos documentos mais audaciosos da capacidade de um escritor de se desnudar diante de seus leitores, talvez só comparável a Henry Miller, em sua trilogia da Crucificação Encarnada (Sexus, Plexus e Nexus). Ao final do livro, há um longo e também caótico poema onomatopaico e cheio de invenções léxicas que ele escreveu durante seus dias de solidão em Big Sur, para dar sua interpretação do mar, presença constante na obra, assim como o riacho onde ele bebe água, muita água. A água, do mar e do riacho, como uma espécie de metáfora de sua tentativa de se purificar. Sem dúvida, um livro para se ler com a comoção de encontrar não só um grande escritor, mas principalmente um ser humano complexo e extremamente corajoso em sua prosa confessional.

sexta-feira, 8 de março de 2024

O gigante enterrado, Kazuo Ishiguro



O gigante enterrado, Kazuo Ishiguro


A literatura inglesa prodigalizou obras que abordam os tempos do lendário Rei Arthur. “O gigante enterrado”, desse ótimo escritor inglês de origem nipônica, Kazuo Ishiguro, bebe nesta fonte inesgotável, para narrar uma deliciosa história do ciclo arturiano, abordando um tema bastante interessante: a perda coletiva da memória. Vamos a um resumo bem rápido do enredo: numa aldeia medieval, um casal de idosos tem a intenção de viajar para uma terra mais ou menos distante, em busca do filho, de cuja memória eles guardam apenas pequenos traços. Aliás, ninguém naquelas terras guarda lembranças dos acontecimentos, mesmo os mais recentes. Um mistério ocasionado, na visão dos aldeões, por uma espécie de névoa que perpassa a região e apaga da mente das pessoas todas as suas memórias. Na corajosa aventura de sua viagem, o casal de idosos chega a uma aldeia vizinha, onde conhece um cavaleiro que tem uma missão, a de matar uma dragoa que, dizem, seria a responsável por essa névoa. E também um garoto que havia sido sequestrado pelos ogros e, resgatado, voltou com uma ferida de mordida na barriga, o que o torna maldito pelos aldeões e deve ser morto. Para salvá-lo, o tal cavaleiro aceita levá-lo em sua jornada que ele deve reiniciar, agora acompanhando o casal de idosos, para protegê-los. A partir daí, acompanhamos a jornada dos quatro, em várias aventuras, até o desenlace final da história. Então, meus caros leitores e leitoras destas linhas, embarcamos no mundo fantástico e lírico das aventuras instigantes do ciclo arturiano. Embora, à época da história, o lendário rei já estavisse morto, sua influência e o sopro da dragoa, resultado de um feitiço de Merlin, povoam a narrativa até o final. Sem dúvida, uma leitura deliciosamente fácil, que traz, porém, uma mensagem bastante clara de que a memória dos fatos passados nem sempre é a melhor conselheira para os acontecimentos do presente, ao abordar temas como o envelhecimento e a permanência do amor, a guerra e, principalmente, o tema central, a memória. Para ler com prazer e, se você tiver filhos ou filhas adolescentes, pode ter certeza de que eles também apreciarão essa narrativa.