terça-feira, 22 de julho de 2025

Fim, Fernanda Torres

 Fim, Fernanda Torres



A história me fez lembrar um concerto grosso, em que há vários solistas e uma orquestra. No caso, cinco protagonistas e inúmeras personagens a eles ligadas. A autora disseca a vida, os amores, os casamentos, as frustrações, as traições, as farras, as separações, os arrependimentos de cinco amigos cariocas e suas companheiras e amigas em suas trajetórias de vida e morte, num Rio de Janeiro das décadas de 60 a 80. Álvaro vive sozinho, passa o tempo de médico em médico e não suporta a ex-mulher. Sílvio é um junkie que não larga os excessos de droga e sexo nem na velhice. Ribeiro é um rato de praia atlético que ganhou sobrevida sexual com o Viagra. Neto é o careta da turma, marido fiel até os últimos dias. E Ciro, o Don Juan invejado por todos - mas o primeiro a morrer, abatido por um câncer. A autora não poupa ninguém, em seu mergulho nesta sociedade complexa e em transformação, num estilo ágil, com frases curtas e precisas, para levar o leitor a esse mudo de superficialidade, de sexo e de vidas sem muita perspectiva, que não seja a de conseguir algum lenitivo para suas frustrações. Não se impressione o leitor com a “carioquice” dessas personagens, pois são arquétipos de um mundo que parece livre de peias moralistas, o que nos leva para o terreno dos exageros, mas que, no fundo, ainda tem muito do moralismo “como o de nossos pais”, segundo cantava Elis Regina. O spleen, o cansaço do hedonismo, das farras, do sexo livre e inconsequente, talvez esteja na origem desse novo moralismo por que passamos. Fernanda Torres, em seu romance de estreia, talvez tenha mirado em pássaros livres durante a famosa “revolução de costumes” do final do século XX e acertado em seus descendentes, ou seja, seres humanos ainda presos a preconceitos e ideias retrógradas desses primeiros anos do século XXI. Leia, divirta-se, e comprove.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Dance dance dance, Haruki Murakami

 
Dance dance dance, Haruki Murakami


Tókio, Japão, 1983 : começo da saga do narrador anônimo e protagonista dessas quase 500 páginas do romance de Haruki Murakami. Ele é um escritor de textos e se diz um limpa-neve cultural, fazendo trabalhos para várias revistas e reportagens estranhas. Após um período de depressão, alguns anos antes, hospedou-se com uma prostituta de luxo chamada Kiki no Hotel dos Golfinhos (na verdade, Golphin Hotel) em Sapporo. Agora, depois do sumiço da garota, volta à cidade, para se hospedar no mesmo hotel e tentar encontrar alguma pista de Kiki e buscar talvez um sentido para sua vida. Mas, o hotel não é o mesmo: no lugar daquele prédio decadente, ergue-se agora um imponente e moderno edifício, com um vasto hall de entrada, muitos andares, apartamentos de luxo e funcionários muito bem treinados. Só o que restou foi o antigo nome. Encanta-se por uma das atendentes e consegue fazer amizade com ela. Também conhece uma garota de 13 anos, Yuki, com quem irá compartilhar muitas histórias e vivências depois. Mas, o fato estranho é que, uma noite, de repente se dar conta, ao sair do elevador no 16º andar, de que está um corredor escuro e silencioso, em cujo final encontra um misterioso homem-carneiro. A partir daí, a história toma rumos que vão desde o relato de sua vida em Tóquio, onde reencontra um amigo de infância que é hoje um ator famoso de filmes B, que o envolve em encontros com prostitutas de luxo e com um caso de assassinato de uma dessas garotas, até, entremeado aos encontros e às conversas com o amigo Gotanda, uma viagem para o Havaí com a menina Yuki, para encontrar a mãe dela, uma famosa e estranha fotógrafa, cuja relação com a filha tem lances de esquecimento e desconforto. Tudo é narrado com detalhes, num estilo que leva o leitor a conhecer a fundo o protagonista, sem, no entanto, deixar de interessa-lo pela história, graças à engenhosidade do autor: se nada acontece durante algum tempo, sempre se esperam episódios estranhos ou relacionamentos que se entrelaçam e se confundem, até o desfecho final, quando o protagonista volta ao Hotel dos Golfinhos, para encontrar-se com Yumiyoshi, a atendente do hotel que o encantara, e tentar deslindar os últimos mistérios de sua vida ou encontrar um sentido para a própria existência. O livro é longo, mas a narrativa é tão fluida e bem articulada, que deixa na mente do leitor a certeza de haver lido um grande romance, escrito por um dos mais representativos escritores modernos do Japão.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Meninos, eu conto, Antônio Torres

Meninos, eu conto, Antônio Torres


Um pequeno volume com apenas três contos. Todos eles contam histórias de meninos, no interior da Bahia, num lugar que, segundo o autor, “Chamava-se Junco. Hoje se chama Sátiro Dias e é uma cidade até que bonitinha. Com estrada asfaltada e telhados enfeitados de antenas parabólicas. Já não está mais nos confins do tempo”. O primeiro conto, “Segundo Nego de Roseno”, narra com sensibilidade e com um certo humor o rito de passagem de um garoto, visto sob ponto de vista de um amigo bem mais velho. O segundo, “Por um pé de feijão”, narra a resiliência do pai do menino diante de uma tragédia que lhe queimou toda a saca de feijão, colhida num tempo de fartura, e que era a salvação da família, quando viessem os tempos de seca. O terceiro, o mais longo e com uma narrativa mais complexa, intitulado “O dia de são nunca”, conta como três forasteiros roubaram o santo esculpido num toco de pau, para fazer companhia a um menino aleijado, “deficiente físico, como dizemos hoje”, nas palavras do autor. O livro retrata, portanto, personagens simples e inesquecíveis de um Brasil que ainda tem na roça, no ambiente rural, muitos meninos parecidos com esses garotos de que nos fala Antônio Torres em seus contos.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

A casa de barcos, Jon Fosse

A casa de barcos, Jon Fosse


Por que o enredo do livro é fluido, quase nada se pode dizer sobre a história, sem antecipar o prazer da descoberta por parte de algum bissexto leitor deste blog. Então, vou fugir um pouco ao meu estilo, para falando algo do autor. Jon Fosse, norueguês nascido em 1960, tem uma vasta obra em vários gêneros, inclusive no teatro (e ressalto esse aspecto, porque ele será importante no meu comentário). Foi ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2023. Dito isso, vamos ao livro. Publicado em 1989, esse conto estendido tem claramente uma estrutura de monólogo teatral levado ao extremo da reiteração: o narrador-personagem repete à exaustão a mesma situação e os mesmos estados mentais de solidão e angústia que o consomem. E mais: é claramente um conto (classifico como conto, embora longo, porque se constitui de um único núcleo dramático), repito: um conto melodramático. Parêntese para explicar o que entendo por melodrama. No drama (especialmente no teatro e no cinema), o fluxo emotivo parte do enredo, da história, do palco ou da tela, para o leitor, que se emociona (ou não). O drama não engana: apresenta-se tal como é. Já no melodrama, esse fluxo se inverte: o autor da peça teatral ou do enredo do filme engana o espectador (ou leitor), dando-lhe pistas falsas, ocultando fatos e só revelando aqueles que lhe interessam, de tal modo que cabe ao leitor ou ao espectador complementar com sua emoção o que lhe é sugerido. (Dizia meu mestre Chico de Assis que Hitchcock era o rei do melodrama). Assim age o autor de “A casa de barcos”: através do monólogo interior da personagem (não confiável), nós, leitores, complementamos a história de sua solidão e angústia ocorridas a partir do seu reencontro com um amigo de infância Knut e sua esposa e filhas, dez anos depois. Isolado, sem sair de casa, mergulha num fluxo de memórias certas e incertas, num novelo que só se desata parcialmente nas linhas finais, deixando, porém, ao leitor a incumbência de imaginar as motivações e todos os sentimentos e atitudes das personagens evocadas. Enfim, um livro claustrofóbico e complexo, mas apaixonante.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Admirável mundo novo, Aldous Huxley


Admirável mundo novo, Aldous Huxley


A distopia de Huxley nos remete a um estado totalitário capitalista onde o bem maior é a felicidade. Mas felicidade construída à custa de produtos químicos, o soma, que todos são praticamente obrigados a tomar em doses diárias, para continuar a viver numa sociedade de comportamentos condicionados desde a proveta onde são concebidos, já que nascimentos naturais estão proibidos, assim como os conceitos de família, monogamia, paixão, privacidade e pensamento criativo. Pai e mãe, deuses e religião são conceitos históricos e, quando evocados, merecem apenas a chacota, o riso. Noções de higiene são a lei e ninguém é de ninguém: todos se relacionam sexualmente com todos, numa espécie de orgia permanente e controlada, já que relacionamentos duradouros são considerados anormais e, portanto, proibidos, sujeitando os infratores a penas de exílio. As palavras de ordem dos comportamentos sociais são repetidas milhares de vezes, para que todos os indivíduos, homens e mulheres, não consigam sair do controle. E mais: a sociedade está dividida, desde os embriões, em castas, para que os indivíduos alfa, a elite, possam se manter no poder e os demais apenas cumpram ordens e, mesmo executando as tarefas mais repetitivas e miseráveis, continuem se sentindo felizes com o que fazem, graças ao soma. Nessa sociedade, um indivíduo, no entanto, não se conforma às regras: Bernard Max quer se libertar e, para tentar descobrir a origem desse sentimento de liberdade, obtém licença para visitar uma colônia de selvagens, onde os seres humanos vivem de forma “primitiva” e não de acordo com a “civilização”. Este o eixo central do romance: a tentativa do indivíduo de buscar a liberdade numa sociedade que encara o igualitarismo como escravidão. Uma crítica ao “fordismo”, já que essa história se passa no ano 634 d.F. (depois de Ford), e aos governos totalitários dominados pelo capitalismo, que enxergam o ser humano apenas como uma peça na engrenagem social, mantendo a todos, mesmo as classes privilegiadas, como escravos de um bem-estar social falacioso e escravagista. Publicado em 1932, ainda hoje provoca discussões, pela complexidade dos conceitos que o autor traz em sua narrativa.